“A Educação deixou de ser uma prioridade”

Paulo Guinote é um dos professores portugueses que mais tem escrito e opinado sobre a Educação em Portugal na última década. O seu blogue A Educação do Meu Umbigo foi lido e seguido por dezenas de milhares de professores durante uma década, especialmente por professores que se reviam na forma desassombrada, independente e opinativa como o professor Paulo Guinote abordava os diversos desafios com que a Escola Portuguesa se debate neste início de século XXI.

Amavelmente, o professor de História mais conhecido da classe, concedeu ao Comregras uma entrevista que publicaremos em duas partes.

Parte I

A escola pública portuguesa está parada no tempo?

Não, de forma alguma. Esse discurso de bota-abaixo está muito vulgarizado, mas a evolução tem sido notória, tanto ao nível dos processos como dos meios usados em sala de aula e fora dela. Quem diz isso e está sempre a clamar pela necessidade de “mudança” esquece-se que desde final do século XVIII que existem visões conflituantes sobre o que deve ser a escola, não sendo uma “nova” e outra “velha”.

Os governos sucedem-se e cada vez há um maior desencanto dos professores faces às diversas equipas do Ministério da Educação. Eles são manifestamente impreparados ou a Educação deixou de ser importante para os governos?

A Educação deixou de ser uma prioridade – ou paixão – passando a existir uma espécie de pacto oculto entre os principais partidos (PS e PSD, com os seus apêndices em termos de coligações a acabar por colaborar nisso) no sentido da institucionalização de uma Educação low cost definida a partir de rácios e custos médios por aluno.

Muita gente refere que a escola deixou de ser um fator diferenciador na ascensão social, pois os filhos dos mais desfavorecidos não conseguem concluir os seus estudos superiores. Concorda com esta corrente de opinião?

Essa é uma discussão que começou a ter bastante relevância no pós-II Guerra Mundial e gerou diversas políticas ligadas à discriminação positiva de minorias raciais ou sociais (em especial nos EUA) ou de promoção de igualdade de oportunidades para os mais desfavorecidos (Europa Ocidental). Infelizmente, apesar de imensas conquistas, a Educação não consegue eliminar todas as desigualdades socio-económicas e permanecem factores que condicionam os trajectos educacionais dos filhos de famílias que, ao verem o investimento que necessitam fazer e a crescente incerteza do retorno, acabam por optar “racionalmente” pelo abandono prematura dos estudos em busca de uma inserção precoce no mercado de trabalho. Embora os estudos que existem provem os ganhos financeiros de uma escolarização mais prolongada, cada vez mais os indicadores do desemprego contrariam uma visão mais optimista, com um terço ou mais dos recém-licenciados sem emprego.

Acha defensável, na sociedade portuguesa, que os professores tenham uma carreira especial dentro da função pública, nomeadamente quanto ao horário de trabalho e na idade de aposentação?

Sim, sem qualquer margem de dúvidas. Essa especificidade não é qualquer novidade. Uma duração específica, com redução do horário com o avançar da idade e dos anos de serviço é algo que não surgiu com a Democracia, sendo uma evidência em Portugal mesmo durante o Estado Novo.

No seu entender, o que mais contribuiu para a acentuada perda de estatuto social dos professores, em Portugal, nas últimas duas décadas?

Dois factores no curto ou médio prazo: o primeiro, de ordem material, foi a sua proletarização com o congelamento das progressões de uma carreira que foi reescalonada de modo a limitar os encargos com salários. O segundo, de ordem simbólica, passou pela forma como os políticos optaram por colocar o ónus de tudo o que corre mal na Educação (mesmo quando não corre) nos professores. A esses factores, podemos juntar historicamente, a massificação da docência.

Os sindicatos de professores deviam apenas discutir questões laborais ou pugnar por um modelo global de política educativa?

É meu entendimento que os sindicatos devem agir no sentido de defender as condições laborais daqueles que representam, sendo que isso não se limita a discutir remunerações e horários de trabalho. No entanto, deve existir um limite para a sua intervenção, que não se deve confundir com o papel de partidos políticos ou de outro tipo de organizações representativas dos professores.

Se fosse Ministro da Educação e tivesse folga orçamental, que áreas de intervenção prioritária escolheria?

Intervenção precoce na determinação de dificuldades de aprendizagem por parte dos alunos do 1º ciclo com equipas multidisciplinares; inversão da política de encerramento e concentração de escolas em disformes “unidades de gestão”. Descongelamento da carreira docente e colocação dos professores nos escalões certos de acordo com os seus anos de serviço.

Os alunos passam demasiado tempo nas escolas?

Sim. E não falo apenas de aulas. Muitos são obrigados a ficar na escola devido à desregulação dos horários de trabalho dos pais.

O que pensa da Educação para Adultos, que o atual governo parece querer reintroduzir? Em que moldes devia fazer-se?

Penso que qualquer intervenção nesta área deve ser no sentido de qualificar efectivamente não apenas de certificar como aconteceu em grande medida com as Novas Oportunidades. E os meios devem ser canalizados para essa qualificação e não para uma burocracia certificadora ou para lobbys de entidades formadoras.

Há uma década, criou o blogue Educação do Meu Umbigo, o qual decidiu encerrar há um ano. Este projeto pessoal mudou a sua perceção dos seus colegas e da Educação em Portugal? O que mais o surpreendeu durante esses dez anos de troca de ideias, na blogosfera, com outros agentes educativos?

O nível de confiança que se estabeleceu entre pessoas que raramente se conheciam pessoalmente, algo que permitiu uma partilha de informações e conspirações sem paralelo no passado da profissão docente.

Parte II

Nesta entrevista, Paulo Guinote igual a si próprio: claro, assertivo, não a dar opiniões sobre temas polémicos mas não buscando polémicas gratuitas e estéreis. Opinião livre e absolutamente independente, o professor Paulo Guinote procura contribuir com o seu pensamento para que a Escola portuguesa seja cada vez melhor e que os professores tenham consciência do seu papel preponderante nessa ação de renovação e inovação.

Vários professores de História consideram que cumprir o programa da disciplina, no terceiro ciclo, na carga horária programada é como tentar “meter o Rossio na Betesga”. O que fazer: exigir mais horas para a disciplina ou alterar o programa?

Tentar fazer uma adequação mais correcta entre o que se pretende que os alunos aprendam e o tempo disponível. Pessoalmente, defendo uma unificação dos 2º e 3º ciclos num ciclo único de 5 anos, o que permitiria, no caso específico da escola, uma abordagem diferente do programa, com menos repetições, leccionando-se da Pré-História à queda do Império Romano do Ocidente no 5º e 6º ano e da Idade Média à Contemporânea do 7º ao 9º ano.

Acha que os Diretores dos Agrupamentos de escolas deviam ter limitação de mandatos?

Sim, sem qualquer dúvida. Três mandatos, sem subterfúgios.

Tem crescido o número de alunos com necessidades educativas especiais, em Portugal, assim como as queixas dos seus encarregados de educação relativamente ao pouco acompanhamento das escolas. Como fazer mais e melhor?

Despiste precoce das situações e acompanhamento por equipas multidisciplinares a sério e não apenas por professores “com jeito” para a coisa ou com formações apressadas.

Um dos aspetos fundamentais da política educativa da última década foi a concentração de escolas em Agrupamentos ou Mega Agrupamentos. Agora que o processo está consolidado, pode dizer-se que foi uma estratégia adequada do ponto de vista educativo?

Não. Acho que foi um dos maiores erros da política educativa dos últimos 15 anos, apesar de todos os ministros considerarem adequada essa medida por produzir economias de escala e baixar o custo médio por aluno. Esta estratégia conduz a uma desumanização das relações nos mega-agrupamentos, a uma macrocefalia da gestão e a um cada vez maior distanciamento entre os decisores e os corredores e salas de aula das escolas. Sendo as principais vítimas as escolas do 1º ciclo.

Já consegue fazer um balanço sobre o atual Ministro da Educação?

Não. Embora a evolução mais recente comece a deixar-me muito receoso quanto à possibilidade de se tornar mais um elo num processo de esvaziamento da Educação numa lógica de low cost.

A título mais pessoal, porquê um “Quintal” depois de um “Umbigo” tão bem sucedido?

Porque era necessário encerrar um ciclo, muito intenso. Ter uma pausa para respirar, pensar e arrancar com um projecto – que até apareceu antes do previsto – mais pessoal.

Sobre o livro 08/03/08 – Memórias da Grande Marcha dos Professores, o que o levou a escrevê-lo?

A necessidade que senti de preservar desde já a memória de um acontecimento singular da nossa História recente, principalmente a partir dos seus participantes de base. Evitar que essa memória seja amputada ou manipulada pelos “vencedores”, como acontece muitas vezes com a escrita da História.

Será professor até ao final da carreira ou caminhará para outras paragens no futuro? Alguma vez foi convidado para ocupar outros cargos?

Não sei o que farei daqui a 5 anos, em virtude do desânimo que mais cedo ou mais tarde nos atinge a todos. Mas sei que não tenho qualquer tentação por uma alternativa de tipo “político”. A ter uma aspiração seria a de poder ler e escrever a tempo inteiro e ensinar por prazer, sem cronometragem ao minuto.

Se voltasse atrás no tempo, seria novamente professor?

Não sei. O “efeito borboleta” torna muito aleatório esse tipo de previsão retroactiva. Sei apenas que continuaria a gostar imenso de História e de escrever (e ler).

Por fim sobre o seu Sporting, qual gosta mais: do presidente, do treinador e/ou do futebol praticado pela equipa?

No momento corrente, não gosto muito de nenhum, mesmo se o futebol praticado é o que me desgosta menos. O treinador diverte-me, até pelo facto de ter começado com um discurso que já teve de meter no saco, pois nada ganhará (é o meu prognóstico neste momento). Quanto ao presidente, enfim, no mundo do futebol acontece um pouco de tudo e este tipo de “cromos” nem é dos piores. Acredito que se considera, ele mesmo, uma “muralha d’aço”. Resta saber se o é e se não fragilizou o clube com tantas frentes de batalha.

Gabriel Vilas Boas

Retirado de www.comregras.com em abril 2017