Coração. Desde tempos remotos, é tido como sede da alma, do sentimento, da coragem (já em Homero), da consciência (no budismo) e da razão. Entre os egípcios antigos, "sem coração" significava tanto quanto "pobre de espírito". A verdadeira essência do homem não está no seu exterior, por isso Deus olha para o coração do homem (1SM 16,7). Já no antigo mito mesopotâmico o "medo da morte se aloja no coração" e leva Gilgamesh a procurar pela erva da imortalidade. Para os egípcios, era impossível uma continuação da vida sem esse órgão central; no embalsamento, todos os órgãos internos eram retirados, menos o coração, que permanecia em seu lugar. O coração desempenha também papel decisivo no renascimento de Dionísio. Segundo a filosofia naturalista de Aristóteles, o coração - numa visão conjunta com falo e útero - se encontra no início da vida e é local de saída tanto do sangue como do esperma. A mãe "carrega a criança sob o coração".
O coração é -simbolicamente - centro do homem e do mundo. O termo grego kardia (coração), os latinos cor (coração) e cardo (polo, eixo terrestre, eixo principal) têm radical igual. Segundo a tradição egípcia, o deus primordial Ptah imaginou o universo com o seu coração e conferiu-lhe forma através de sua palavra criadora. Em escritos chineses, encontra-se a ideia de que o soberano é o coração de seu país. Zeus irá "elevar todos os seres de dentro de seu coração sagrado para a luz plena da alegria" (hino órfico). O coração é o nó através do qual homens e Deus são ligados um ao outro. No seu íntimo, o homem pode entrar em contato com Brahma, o absoluto divino (crença hindu). Segundo Santo Agostinho, este órgão é o recipiente do amor divino, centro da personalidade religiosa. Sendo o coração ponto de partida de toda ação humana, Deus deseja gravar suas leis no coração do homem (Hb 8, 10). Quem não tem sentimentos, se afasta de Deus, tem um coração de pedra. Como forma especial de devoção a Cristo e sob a influência dos místicos alemães surgiu a imagem do coração de Jesus. A partir da Idade Média o coração tornou-se cada vez mais símbolo do amor, tanto no sentido religioso como no profano. É atributo de diversos santos: Catarina de Siena (coração com cruz), Francisco Xavier (coração com lírio), Teresa de Ávila (trespassado por flecha), Agostinho e Antônio de Pádua (coração em chamas). (Lurker, 2003)
Coração. No esquema vertical do corpo humano três são os pontos principais: o cérebro, o coração e o sexo. Mas o central é o segundo e por esta própria situação adquire o privilégio de concentrar de certo modo os outros dois. O coração era a única víscera que os egípcios deixavam no interior da múmia, como centro necessário ao corpo para a eternidade (todo centro é simbolo de eternidade, dado que o tempo é o movimento externo da roda das coisas e, no meio, encontra-se o "motor imóvel" segundo Aristóteles). Na doutrina tradicional, o coração é a verdadeira sede da inteligência, sendo o cérebro apenas um instrumento de realização; por isto ao cérebro corresponde à lua e ao coração o sol, no sistema analógico antigo, que demonstra a profundidade dos conceitos e sua persistência. Todas as imagens do "centro" relacionaram-se com o coração, quer como correspondências, quer como substituições, tais como a taça, o cofre e a caverna. Segundo os alquimistas, o coração é a imagem do sol no homem, como o ouro é a imagem do sol na terra. A importância do amor na mística doutrina da unidade explica que aquele que se funde também com o sentido simbólico do coração, já que amar é apenas sentir uma força que impulsiona num sentido determinado para um centro dado. Nos emblemas, pois, o coração significa o amor como centro de iluminação e felicidade, pelo que aparece arrematado por chamas, uma cruz, a flor de lis ou uma coroa. (Cirlot, 2005)
Coração. "É o coração que faz germinar todo tipo de conhecimento" e "o movimento dos braços, das pernas e de todas as partes do corpo ocorre segundo o comando dado pelo coração". Assim se exprimem alguns textos do antigo Egito a respeito das funções atribuídas ao coração, sobretudo aquelas que nos dias de hoje se referem ao cérebro. Como órgão central da circulação sanguínea, indispensável à circulação da vida e capaz de registrar certas situações mediante "palpitações", acentuadas, em muitas culturas antigas lhe foram atribuídas funções que, analisadas racionalmente, não lhe pertencem. Não é fácil distinguir nesses casos entre o mero artifício retórico e o sentido literal. Para os egípcios da época dos faraós, o coração era sede do intelecto, da vontade e dos sentimentos. O deus criador Ptah projetou o cosmo em seu coração, antes de dar-lhe forma mediante sua palavra. Na Bíblia, o coração é o "homem interior", pois, enquanto o homem vê nos olhos, Deus vê no coração (I Samuel 16,7). De Deus diz-se que ele foi "tocado de íntima dor de coração" (Gênesis 6,6). No Novo Testamento, se afirma que, graças à fé, Cristo habita os corações (Efésios 3, 17). Na Índia, o coração é muitas vezes a sede do "atman", o reflexo do absoluto (Brahma) no homem. Segundo uma crença asteca, o Sol, em sua viagem noturna aos infernos, perdera a própria força, tornando-se magro como um esqueleto, e a reconquistaria apenas graças ao sangue extraído do coração das vítimas sacrificadas. O coração trespassado por flechas é símbolo do redentor que ama e sofre pelos homens e é uma imagem bastante difundida sobretudo no Barroco, mas que ainda nos dias de hoje em regiões onde o culto do Coração de Jesus anda prevalece (desde 1765, a festa do Sagrado Coração é comemorada na Sexta-feira ou no Domingo depois de Corpus Christi). (Biedermann, 1993)
Coração. O coração, órgão central do indivíduo, corresponde, de maneira muito geral, à noção de centro. Se o Ocidente fez do coração a sede dos sentimentos, todas as civilizações tradicionais localizam nele, ao contrário, a inteligência e a intuição: talvez o centro da personalidade se tenha deslocado da intelectualidade para a afetividade. Mas Pascal não diz que os grandes pensamentos vêm do coração? Pode-se acrescentar que, nas culturas tradicionais, conhecimento tem sentido muito amplo, que não exclui os valores afetivos. O coração é, de fato, o centro vital do ser humano, uma vez que responsável pela circulação do sangue. Por isso, é ele tomado como símbolo - e não, certamente, como sede efetiva - das funções intelectuais. Essa localização já ocorre na Grécia antiga. Ela é importante na Índia, onde se considera o coração como Bramapura, a morada de Brama. O coração do fiel, diz-se no Islã, é o Trono de Deus. Se, no vocabulário cristão igualmente, o Reino de Deus se contém no coração, é que esse centro da individualidade, para o qual pessoa retorna na sua caminhada espiritual, representa o estado primordial, inicial, o locus da atividade divina. (Chevalier e Gheerbrant, 1998)
Coração. Símbolo da vida mental, vida afetiva, vida interior e da personalidade integral do homem. Aparece entre os primitivos associado com o mundo, a vida da alma e a esfera do mistério e do sobrenatural. Mas não é um símbolo universal. Na Grécia, o coração vai condividir com o cérebro o privilégio de ser o centro principal do ser humano. É o coração que pensa, imagina, reflete, recorda; é o coração que vive, sente e produz as emoções da alegria e da tristeza, da ira e do desejo, da dor e do gozo, do amor e do ódio; é o coração a morada da coragem e do ardor guerreiros. Depois, com a definição da mentalidade filosófica e científica, os Gregos, a partir do séc. V a.C., começam a pôr em questão os dados tradicionais e indicam para a alma, princípio que dirige e governa o homem (hegemonikon), novas sedes. Revalorização do termo kardia. No Novo Testamento, a palavra kardia é tomada, as mais das vezes, no seu sentido metafórico mais geral e designa o interior do homem, o lugar onde nasce e se desenvolve a vida espiritual. Durante a Idade Média, o coração, sem deixar de ser símbolo da coragem, passa a ser, sobretudo, símbolo do Amor. Símbolo da coragem, parece natural que o coração continue a sê-lo, dado que, durante largos sécs. a sociedade medieval é uma sociedade guerreira de pequenos reinos, ducados ou condados em frequente estado de luta, terreno fértil para o florescimento de heróis. Ricardo Coração de Leão (1157-1199), o rei-cruzado que tanto se ilustrou na Terra Santa, personifica bem, por este seu cognome, a persistência da tradição, vinculadora da energia e da valentia à grandeza do coração. Mas é principalmente com símbolo arquétipo do amor que, durante a Idade Média, o coração se afirma. Do amor profano e do amor místico. Troca e compenetração dos corações – do amor-sensualidade ao amor-sensibilidade e deste em amor-idealidade. Mas, “para os poetas provençais, o coração é o lugar onde o amor se concentra. É nele que penetra a flecha – o raio luminoso – e é nele que ela se fixa: os sentidos são apenas as portas do coração. Por isso, o amor recíproco só pode existir quando a mesma flecha atravessou os dois corações”. (ELBC)
LURKER, Manfred. Dicionário de Simbologia. Tradução Mário Krauss e Vera Barkow. 2. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. Tradução de Rubens Eduardo Ferreira Frias. São Paulo: Centauro, 2005.
BIEDERMANN, Hans. Dicionário Ilustrado de Símbolos. Tradução de Glória Paschoal de Camargo. São Paulo: Melhoramentos, 1993.
CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). 12. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1998.
ELBC - ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DE CULTURA. Lisboa: Verbo, [s. d. p.]