CICLO DAS MÚLTIPLAS SENSAÇÕES (Coroa de Sonetos, MARIA HELENA,

Editôra Quipapá, Rio de Janeiro, Agôsto de 1968) 

sonetos

I


Já que a Vida que vivo não é minha,

Não há viagem que me corra às veias:

Derrota certa de quem vai sòzinha

Entre os cardos hostis de mãos alheias.


Já vindimaram toda a minha vinha

E até ruíram todas as paveias,

E hoje que nada tenho, d'antes tinha

Mundos, Espaços, músicas, idéias.


Emigrei dos meus sonhos de menina

Com longas asas de cortar distância

Sem meta verde de qualquer jardim.


E agora, que outro pélago me inclina,

Morri eu entre o Sol da minha infância,

Ou foi a infância o que morreu em mim?

III



Das asas prisioneiras pela noite

Com seus dedos de trevas renovadas:

O perfume, sem flor onde se acoite

E o impulso hesitando ante as escadas.


Já não há Céu onde o meu sol se afoite

A ser luz de manhãs imaginadas:

É sempre a cruz daquele duro açoite

Chagando mais as carnes já chagadas.


Asas que me voaram, sei lá delas!

Nem rotas que me sejam paralelas

Me indicam um caminho de jardim.


No entanto, a par de tanta e tanta dor,

Inda consigo abrir nem sei que flor

No agreste chão desta raíz sem mim.

V



No rosto das areias movediças.

Com vivências concretas de um Passado

Onde vibraram tantas injustiças

Que rasgada fiquei de lado-a-lado.


Quebradas, minhas mãos já quebradiças!

O trigo que semeei, tão mal cortado!

Ah! bandeiras sem mastros nem adriças

Nem festejos de herói rememorado!


Tudo foi na prisão além das rêdes:

Fomes de Altura, mais que humanas sêdes,

Êste anseio de ser quase luar...


E só ficou aberta em negação

A miséria tão negra do meu chão

A impor distâncias que eu não quis andar.

VII



A imensa voz com que me grito ao mundo

Encheu o mundo do meu largo grito!

E só êste silêncio em que me inundo

É que ordena as escarpas onde habito.


Rosas de solidão abrem no fundo

Do meu total avesso do Infinito

—— Que as semearam as mãos de um vagabundo

Do amor expulso e até de mim proscrito.


O mal da Vida pesa-me nos ombros

E eu que velas soltei num mar de assombros,

Perdi a rota em meio das procelas.


Hoje, açoitada por um louco vento,

Vive-me apenas entre o pensamento

A idéia branca de ter tido velas. 

IX


Num reino de corais imaginados

Sem abraços de Sol nem fôlhas de hera,

Entre beijos sentidos e não dados

Sonhava eu ser... o que afinal não era!


E tudo se esgarçou em mil bocados

Nesta presença que em meu ser impera:

Os meus dedos esguios, já quebrados

De encontro ao sonho lúcido da espera.


Perdidas, as estradas do Futuro!

No chão que eu não pensei, ergue-se o muro

Tornando escravo o anseio de ser livre.


Porque só fui onde chegou meu pranto,

Sou a certeza do meu próprio espanto

Na dúvida do espanto que me vive. 

XI


É sempre o só que dobra cada esquina

Num passo com ausência dos sentidos

E a carne, que ser carne se imagina,

Sofre a cruz de contactos não vividos.


E enquanto os mastros, numa luz menina,

Apontam direções, aos Céus erguidos,

Cantam-me dentro beijos em surdina

E em surdina nos ecos repetidos.


Numa floresta astral de luz sem lanças,

Hão-de passar comigo as tardes mansas

No coração que tanta vez se deu...


E fiquei noite irremediàvelmente,

Pois nem sequer a Lua está presente

Na madrugada que me anoiteceu. 

XIII


—Sou forçada a dormir entre os minutos

—— "Intermezzo" de um drama pôsto em cena:

De olhos que choram para aquém de enxutos,

É quando o Tempo dói e mais condena.


Promessas de raiz e flor e frutos

A par das mãos sem vendavais de pena

—— Que às mãos interrogadas por cem lutos,

Responde a terra em vibração morena.


Ante o impossível é que me condenso!

Que sargaços sem ondas no que penso!

Tempo de amor, nem sei se foi veloz!


No entanto, espero —— que no lôdo fundo

Sempre há-de haver um rio neste mundo

Que tarde ou cedo encontre a minha foz. 

II


Ou foi a infância o que morreu em mim

Antes da Vida ser qualquer cansaço?

Ao longe, as ondas eram mar sem fim

Ajeitadas à curva do meu braço.


Céu que se abria em leque carmesim

E, apenas côr, me refrescava o passo...

Eu ia sem desvãos, florida em sim,

Por um caminho de visível traço.


Depois... se lá! Das regiões cimeiras

A noite fêz-me as asas prisioneiras

E castigou-me com seu duro açoite.


É que entre o sonho plácido-infantil,

Só me ficou o gosto sem abril

Das asas prisioneiras pela noite.

IV


No agreste chão desta raíz sem mim

Que se ardeu a poder de Sol a mais,

Só existe êste nada de onde eu vim

Em pensamentos, ondas e trigais.


Latejam vôos pelos fins do Fim

Com asas tímidas de ser jamais,

Porque uma adaga por demais ruim,

Me fere os Céus em golpes desiguais.


Debruçada na côr do precipício,

Qualquer febre me chega desde o Início

E me transborda as mãos a si submissas,


Enquanto o mundo esquece o meu desgôsto,

Como se o Tempo me escrevesse o rosto

No rosto das areias movediças.

VI



A impor distâncias que eu não quis andar

Por falta de constantes na viagem:

Passos ousados que, se não têm par,

Ficam presos à dor de cada margem


E pode haver mais sal no sal do mar;

Mais folhagem no cimo da folhagem...

É tudo vão! Ninguém ousou gritar

Meu nome com amor... ou com coragem!


Pastam as nuvens pelo Céu vermelho

E eu só me vejo para aquém do espelho

Que inventei por não ver-me em outro fundo.


É que apesar do Sol em alvorôço,

Não responde ninguém ——  que só eu ouço

A imensa voz com que me grito ao mundo!.

VIII



A idéia branca de ter tido velas

Que me levassem para além das veias

Entre o fulgor de Estrêlas amarelas

E o verde todo azul das marés-cheias.


Liberta do quadrante das janelas

E dos caules atados das paveias...

A minha alma e as ondas! Eu mais elas

Longe dos homens e ao seu modo alheias.


Sem o mêdo ancorado no meu ser,

Tinha em mim um caminho a percorrer

Longe dos passos quantas vezes dados.


Mas tudo se desfez, que eu, por meu mal,

Naufraguei entre escolhos de coral

Num reino de corais imaginados. 

X


Na dúvida do espanto que me vive

Com a côr nítida de antigamente,

Só de sonhar o muito que não tive

Leva minha saudade a ir em frente.


Com sangue de horas a escorrer declive,

Crescem tardes no azul onipotente

E por mais que a minha alma ao Céu se esquive,

Sempre o Sol na minha alma está presente...


O tempo que passei vivendo infância

Vem dos Longes mais longes da distância

E é só na solidão que me reclina.


Porque na rua que deixei suspensa,

Por mais amor que seja a minha crença,

É sempre o só que dobra cada esquina. 

XII


Na madrugada que me anoiteceu 

Por mais Sol que o meu ser imaginasse

E entre orvalhos de um fado que é só meu,

Vivo a sorte sem lance nem trespasse.


Embora a luz que maio concebeu,

Por mais que a Primavera regressasse,

Sou paisagem sem lume de apogeu

Com pés sem flor e lágrimas na face.


Nos vidros bate o vento sem conflito

Trazendo em si minutos de Infinito

Acordados em beijos resolutos.


Ah! pecado de ser não sendo nunca!,

Pois, por ordem da angústia que me junca,

Sou forçada a dormir entre os minutos.

XIV


Que tarde ou cedo encontre a minha foz

Com água exul de refletir  verdura

— Água que vem dos Longes serem sós,

Exausta de esperança e de procura.


Corrente exposta a restrições e nós,

Um dia será curso de água pura:

Sem lianas de mêdos ou cipós,

Há-de ser renda na maré futura.


Muito embora a surpresa dos matizes,

A manhã germinada nas raízes

Será a côr que as rosas encaminha.


Plena de fôlhas e de mim despida,

Eu viverei então a minha vida

 ——  Já que a Vida que vivo não é minha.