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Aquífero- literatura

João Cabral de Melo Neto  


Algumas obras do autor

Os Três Mal-Amados

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

Tecendo a Manhã

1.

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito que um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.


2.

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão.



Publicado no livro A educação pela pedra (1966).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.345. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

A Educação pela Pedra

Uma educação pela pedra: por lições;

para aprender da pedra, frequentá-la;

captar sua voz inenfática, impessoal

(pela de dicção ela começa as aulas).

A lição de moral, sua resistência fria

ao que flui e a fluir, a ser maleada;

a de poética, sua carnadura concreta;

a de economia, seu adensar-se compacta:

lições da pedra (de fora para dentro,

cartilha muda), para quem soletrá-la.


Outra educação pela pedra: no Sertão

(de dentro para fora, e pré-didática).

No Sertão a pedra não sabe lecionar,

e se lecionasse, não ensinaria nada;

lá não se aprende a pedra: lá a pedra,

uma pedra de nascença, entranha a alma.



Publicado no livro A educação pela pedra (1966).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.338. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

Rios sem Discurso

A Gabino Alejandro Carriedo



Quando um rio corta, corta-se de vez

o discurso-rio de água que ele fazia;

cortado, a água se quebra em pedaços,

em poços de água, em água paralítica.

Em situação de poço, a água equivale

a uma palavra em situação dicionária:

isolada, estanque no poço dela mesma,

e porque assim estanque, estancada;

e mais: porque assim estancada, muda,

e muda porque com nenhuma comunica,

porque cortou-se a sintaxe desse rio,

o fio de água por que ele discorria.


*


O curso de um rio, seu discurso-rio,

chega raramente a se reatar de vez;

um rio precisa de muito fio de água

para refazer o fio antigo que o fez.

Salvo a grandiloquência de uma cheia

lhe impondo interina outra linguagem,

um rio precisa de muita água em fios

para que todos os poços se enfrasem:

se reatando, de um para outro poço,

em frases curtas, então frase e frase,

até a sentença-rio do discurso único

em que se tem voz a seca ele combate.



Publicado no livro A educação pela pedra (1966).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.350-351. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

O Engenheiro

A Antônio B. Baltar


A luz, o sol, o ar livre

envolvem o sonho do engenheiro.

O engenheiro sonha coisas claras:

superfícies, tênis, um copo de água.


O lápis, o esquadro, o papel;

o desenho, o projeto, o número:

o engenheiro pensa o mundo justo,

mundo que nenhum véu encobre.


(Em certas tardes nós subíamos

ao edifício. A cidade diária,

como um jornal que todos liam,

ganhava um pulmão de cimento e vidro).


A água, o vento, a claridade

de um lado o rio, no alto as nuvens,

situavam na natureza o edifício

crescendo de suas forças simples.



Publicado no livro O engenheiro (1945).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.69-70. Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)

A Mulher e a Casa

Tua sedução é menos

de mulher do que de casa:

pois vem de como é por dentro

ou por detrás da fachada.


Mesmo quando ela possui

tua plácida elegância,

esse teu reboco claro,

riso franco de varandas,


uma casa não é nunca

só para ser contemplada;

melhor: somente por dentro

é possível contemplá-la.


Seduz pelo que é dentro,

ou será, quando se abra;

pelo que pode ser dentro

de suas paredes fechadas;


pelo que dentro fizeram

com seus vazios, com o nada;

pelos espaços de dentro,

não pelo que dentro guarda;


pelos espaços de dentro:

seus recintos, suas áreas,

organizando-se dentro

em corredores e salas,


os quais sugerindo ao homem

estâncias aconchegadas,

paredes bem revestidas

ou recessos bons de cavas,


exercem sobre esse homem

efeito igual ao que causas:

a vontade de corrê-la

por dentro, de visitá-la.



Publicado no livro Quaderna (1960).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.241-242. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

Descoberta da Literatura

No dia-a-dia do engenho,

toda a semana, durante,

cochichavam-me em segredo:

saiu um novo romance.

E da feira do domingo

me traziam conspirantes

para que os lesse e explicasse

um romance de barbante.

Sentados na roda morta

de um carro de boi, sem jante,

ouviam o folheto guenzo ,

a seu leitor semelhante,

com as peripécias de espanto

preditas pelos feirantes.

Embora as coisas contadas

e todo o mirabolante,

em nada ou pouco variassem

nos crimes, no amor, nos lances,

e soassem como sabidas

de outros folhetos migrantes,

a tensão era tão densa,

subia tão alarmante,

que o leitor que lia aquilo

como puro alto-falante,

e, sem querer, imantara

todos ali, circunstantes,

receava que confundissem

o de perto com o distante,

o ali com o espaço mágico,

seu franzino com o gigante,

e que o acabassem tomando

pelo autor imaginante

ou tivesse que afrontar

as brabezas do brigante.

(E acabaria, não fossem

contar tudo à Casa-grande:

na moita morta do engenho,

um filho-engenho, perante

cassacos do eito e de tudo,

se estava dando ao desplante

de ler letra analfabeta

de curumba, no caçanje

próprio dos cegos de feira,

muitas vezes meliantes. )

Graciliano Ramos:

Falo somente com o que falo:

com as mesmas vinte palavras

girando ao redor do sol

que as limpa do que não é faca:


de toda uma crosta viscosa,

resto de janta abaianada,

que fica na lâmina e cega

seu gosto da cicatriz clara.


***


Falo somente do que falo:

do seco e de suas paisagens,

Nordestes, debaixo de um sol

ali do mais quente vinagre:


que reduz tudo ao espinhaço,

cresta o simplesmente folhagem,

folha prolixa, folharada,

onde possa esconder-se a fraude.


***


Falo somente por quem falo:

por quem existe nesses climas

condicionados pelo sol,

pelo gavião e outras rapinas:


e onde estão os solos inertes

de tantas condições caatinga

em que só cabe cultivar

o que é sinônimo da míngua.


***


Falo somente para quem falo:

quem padece sono de morto

e precisa um despertador

acre, como o sol sobre o olho:


que é quando o sol é estridente,

a contrapelo, imperioso,

e bate nas pálpebras como

se bate numa porta a socos.



Publicado no livro Terceira feira (1961). Poema integrante da série Serial.


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.311-312. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

Pescadores Pernambucanos

A Rubem Braga



Onde o Goitá vai mais parado

e onde nunca passa nada;

onde o Goitá vai tão parado

que nem mesmo ele rio passa,


um pescador, numa redoma

dessas em que sempre se instalam,

espera um peixe: e tão parado

que nem sequer roça a vidraça.


Mas não está parado

por estar na emboscada:

não é ele quem pesca,

a despeito da vara:


mais bem, é ele a pesca,

e a pose represada

é para não fugir

de algum peixe em que caia.


----------


No mangue lama ou lama mangue,

difícil dizer-se o que é,

entre a espessura nada casta

que se entreabre morna, mulher,


pé ante pé, persegue um peixe

um pescador de jereré,

mergulhando o jereré, sempre,

quando já o que era não é.


Contudo, continua

sem se deter sequer:

fazer e refazer

fazem um só mister;


e ele se refaz, sempre,

a perseguir, até

que tudo haja fugido

ao passo de seu pé.


----------


Qualquer pescador de tarrafa

arremessando a rede langue

dá a sensação que vai pescar

o mundo inteiro nesse lance;


e o vôo espalmado da rede,

planando lento sobre o mangue,

senão o mundo, os alagados,

dá a sensação mesmo que abrange.


Depois, pouco se vê:

como, ao chumbo tirante,

se transforma em profundo

o que era extenso, antes;


vê-se é como o profundo

dá pouco, de relance:

se muito, uma traíra

do imenso circunstante.


----------


Aproveitando-se da noite

(não é bem um pescador, este)

coloca o covo e vai embora:

que sozinho se pesque o peixe;


coloca o covo na gamboa

e se vai, enxuto e terrestre:

mais tarde virá levantá-lo,

quando o bacurau o desperte.


Não é um pescador

aquele que não preze

o fino instante exato

em que o peixe se pesque;


este abandona o covo

e vai, sem interesse:

nem de fazer a pesca

nem de vê-la fazer-se.


Imagem - 00730007



Publicado no livro Terceira feira (1961). Poema integrante da série Serial.


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.312-314. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

Fábula de um Arquiteto

A arquitetura como construir portas,

de abrir; ou como construir o aberto;

construir, não como ilhar e prender,

nem construir como fechar secretos;

construir portas abertas, em portas;

casas exclusivamente portas e teto.

O arquiteto: o que abre para o homem

(tudo se sanearia desde casas abertas)

portas por-onde, jamais portas-contra;

por onde, livres: ar luz razão certa.


Até que, tantos livres o amedrontando,

renegou dar a viver no claro e aberto.

Onde vãos de abrir, ele foi amurando

opacos de fechar; onde vidro, concreto;

até refechar o homem: na capela útero,

com confortos de matriz, outra vez feto.



Publicado no livro A educação pela pedra (1966).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.345-346. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

Paisagem pelo Telefone

Sempre que no telefone

me falavas, eu diria

que falavas de uma sala

toda de luz invadida,


sala que pelas janelas,

duzentas, se oferecia

a alguma manhã de praia,

mais manhã porque marinha,


a alguma manhã de praia

no prumo do meio-dia,

meio-dia mineral

de uma praia nordestina,


Nordeste de Pernambuco,

onde as manhãs são mais limpas,

Pernambuco do Recife,

de Piedade, de Olinda,


sempre povoado de velas,

brancas, ao sol estendidas,

de jangadas, que são velas

mais brancas porque salinas,


que, como muros caiados

possuem luz intestina,

pois não é o sol que as veste

e tampouco as ilumina,


mais bem, somente as desveste

de toda sombra ou neblina,

deixando que livres brilhem

os cristais que dentro tinham.


Pois, assim, no telefone

tua voz me parecia

como se de tal manhã

estivesse envolvida,


fresca e clara, como se

telefonasses despida,

ou, se vestida, somente

de roupa de banho, mínima,


e que por mínima, pouco

de tua luz própria tira,

e até mais, quando falavas

no telefone, eu diria


que estavas de todo nua,

só de teu banho vestida,

que é quando tu estás mais clara

pois a água nada embacia,


sim, como o sol sobre a cal

seis estrofes mais acima,

a água clara não te acende:

libera a luz que já tinhas.



Publicado no livro Quaderna (1960).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Org. Marly de Oliveira.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.225-227.

(Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)

O Sertanejo Falando

A fala a nível do sertanejo engana:

as palavras dele vêm, como rebuçadas

(palavras confeito, pílula), na glace

de uma entonação lisa, de adocicada.

Enquanto que sob ela, dura e endurece

o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,

dessa árvore pedrenta (o sertanejo)

incapaz de não se expressar em pedra.


2.


Daí porque o sertanejo fala pouco:

as palavras de pedra ulceram a boca

e no idioma pedra se fala doloroso;

o natural desse idioma fala à força.

Daí também porque ele fala devagar:

tem de pegar as palavras com cuidado,

confeitá-las na língua, rebuçá-las;

pois toma tempo todo esse trabalho.



Publicado no livro A educação pela pedra (1966)


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.335-336. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

Menino de Engenho

A cana cortada é uma foice.

Cortada num ângulo agudo,

ganha o gume afiado da foice

que a corta em foice, um dar-se mútuo.


Menino, o gume de uma cana

cortou-me ao quase de cegar-me,

e uma cicatriz, que não guardo,

soube dentro de mim guardar-se.


A cicatriz não tenho mais;

o inoculado, tenho ainda;

nunca soube é se o inoculado

(então) é vírus ou vacina.



Publicado no livro A escola das facas (1980).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.417-418. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

O Mar e o Canavial

O que o mar sim aprende do canavial:

a elocução horizontal de seu verso;

a geórgica de cordel, ininterrupta,

narrada em voz e silêncio paralelos.

O que o mar não aprende do canavial:

a veemência passional da preamar;

a mão-de-pilão das ondas na areia,

moída e miúda, pilada do que pilar.


*


O que o canavial sim aprende do mar:

o avançar em linha rasteira da onda;

o espraiar-se minucioso, de líquido,

alagando cova a cova onde se alonga.

O que o canavial não aprende do mar:

o desmedido do derramar-se da cana;

o comedimento do latifúndio do mar,

que menos lastradamente se derrama.



Publicado no livro A educação pela pedra (1966).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio deJaneiro: Nova Aguilar, 1994. p.335. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

A Escola das Facas

O alísio ao chegar ao Nordeste

baixa em coqueirais, canaviais;

cursando as folhas laminadas,

se afia em peixeiras, punhais.


Por isso, sobrevoada a Mata,

suas mãos, antes fêmeas, redondas,

ganham a fome e o dente da faca

com que sobrevoa outras zonas.


O coqueiro e a cana lhe ensinam,

sem pedra-mó, mas faca a faca,

como voar o Agreste e o Sertão:

mão cortante e desembainhada.



Publicado no livro A escola das facas (1980).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.429. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

Duplicidade do Tempo

O níquel, o alumínio, o estanho,

e outros assépticos elementos,

ao fim se corrompem: o tempo

injeta em cada um seu veneno.


A merda, o lixo, o corpo podre,

os humores, vivos dejetos,

não se corrompem mais: o tempo

seca-os ao fim, com mil cautérios.

Os Vazios do Homem

Os vazios do homem não sentem ao nada

do vazio qualquer: do do casaco vazio,

do da saca vazia (que não ficam de pé

quando vazios, ou o homem com vazios);

os vazios do homem sentem a um cheio

de uma coisa que inchasse já inchada;

ou ao que deve sentir, quando cheia,

uma saca: todavia não, qualquer saca.

Os vazios do homem, esse vazio cheio,

não sentem ao que uma saca de tijolos,

uma saca de rebites; nem têm o pulso

que bate numa de sementes, de ovos.


2.


Os vazios do homem, ainda que sintam

a uma plenitude (gora mas presença)

contêm nadas, contêm apenas vazios:

o que a esponja, vazia quando plena;

incham do que a esponja, de ar vazio,

e dela copiam certamente a estrutura:

toda em grutas ou em gotas de vazio,

postas em cachos de bolha, de não-uva.

Esse cheio vazio sente ao que uma saca

mas cheia de esponjas cheias de vazio;

os vazios do homem ou o vazio inchado:

ou vazio que inchou por estar vazio.



Publicado no livro A educação pela pedra (1966).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.359-360. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

O Vento no Carnaval

Não se vê no canavial

nenhuma planta com nome,

nenhuma planta maria,

planta com nome de homem.


É anônimo o canavial,

sem feições, como a campina;

é como um mar sem navios,

papel em branco de escrita.


É como um grande lençol

sem dobras e sem bainha;

penugem de moça ao sol,

roupa lavada estendida.


Contudo há no canavial

oculta fisionomia:

como em pulso de relógio

há possível melodia,


ou como de um avião

a paisagem se organiza,

ou há finos desenhos nas

pedras da praça vazia.


Se venta no canavial

estendido sob o sol

seu tecido inanimado

faz-se sensível lençol,


se muda em bandeira viva,

de cor verde sobre verde,

com estrelas verdes que

no verde nascem, se perdem.


Não lembra o canavial

então, as praças vazias:

não tem, como têm as pedras,

disciplina de milícias.


É solta sua simetria:

como a das ondas na areia

ou as ondas da multidão

lutando na praça cheia.


Então, é da praça cheia

que o canavial é a imagem:

vêem-se as mesmas correntes

que se fazem e desfazem,


voragens que se desatam,

redemoinhos iguais,

estrelas iguais àquelas

que o povo na praça faz.



Publicado no livro Duas águas: poemas reunidos (1956). Poema integrante da série Paisagens com Figuras.


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.150-151. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

Ademir da Guia

Ademir impõe com seu jogo

o ritmo do chumbo (e o peso),

da lesma, da câmara lenta,

do homem dentro do pesadelo.


Ritmo líquido se infiltrando

no adversário, grosso, de dentro,

impondo-lhe o que ele deseja,

mandando nele, apodrecendo-o.


Ritmo morno, de andar na areia,

de água doente de alagados,

entorpecendo e então atando

o mais irrequieto adversário.



Publicado no livro Museu de tudo (1975).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.383. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

O Sol no Senegal

Para quem no Recife

se fez à beira-mar,

o mar é aquilo de onde

se vê o sol saltar.

Daqui, se vê o sol

não nascer, se enterrar:

sem molas, alegria,

quase murcho, lunar;

um sol nonagenário

no fim da circular,

abúlico, incapaz

de um limpo suicidar.

Aqui, deixa-se manso

corroer, naufragar;

não salta como nasce:

se desmancha no mar.



Publicado no livro Museu de tudo (1975).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.387-388. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

Meu Álcool

Marques Rabelo garantia

que bêbado era quem bebia

por se inventar duplo motivo:

sentir-se invivo ou sobrevivo.


Querer-se lúcido, acordar,

ser todo o agudo que nele há,

ser quando está de todo aceso,

tem o ser na ponta dos dedos.


Ou estar num ser tão extreme

que ser é insuportavelmente,

que ser é estar-se num incêndio

e sentir-se esse incêndio sendo.


Por isso, é que o bêbado bebe:

porque triste quer ser alegre,

e bebe porque chega a demais

a alegria de que ele é capaz.


2


Um pôde achar álcool melhor,

não tóxico, sem qualquer depois,

um álcool que não tem veneno

nem contém amanhãs de inferno.


Que, se é preciso, apaga o incêndio

e se é preciso, vem e acende-o;

um álcool que possui duas pontas,

que age a favor como age contra,


nem precisa que alguém lhe diga

quando dar mais ou menos vida

(como lâmpada do escritor russo,

põe o quarto aceso ou escuro).


Mais: que não se bebe, contempla;

é um álcool para a convivência,

álcool que dá a chama e o sopro

com tê-lo ao alcance do corpo.


3


Esse álcool não é de vender:

ninguém engarrafou um ser.

É álcool sem quandos, sem ondes,

de perto, ou pelo telefone.


Vê-lo e usá-lo foi de imediato:

depois de álcoois mais variados,

da familiar cana de cana

de suas várzeas pernambucanas,


viajou por outros tão diversos

(os de Appolinaire, o dos versos)

que até empregou como bebida

o fluido ambíguo de Sevilha.


E de nenhum deles renega:

nem das úlceras que eles legam

nem da intestina homorragia

em hospitais ao fio da vida.


3


Se a um novo álcool se entregou,

se o vê como álcool superior,

não foi por causa de conselho,

prescrição de médico, ou medo.


É que no novo álccol de agora

pode alcançar mais alta quota

de álcool na vida, e é mais contínua

a vida que acende, e seu clima:


um clima mais claro, e tão limpo

como toalha ou lençol de linho,

e ao mesmo tempo tão intenso

de um ser vivo vivendo pleno.


(E isso, só, com a convivência

de mulher, com a nua presença

de mulher, que como Sevilha

é interna-externa, é noitedia.)

O Sol em Pernambuco

O sol em Pernambuco leva dois sóis,

sol de dois canos, de tiro repetido;

o primeiro dos dois. o fuzil de fogo.

incendeia a terra: tiro de inimigo).

O sol ao aterrissar em Pernambuco,

acaba de voar dormindo o mar deserto; mas ao dormir

se refaz, e pode decolar mais aceso;

assim, mais do que acender incendeia,

para rasar mais desertos no caminho;

ou rasá-los mais, até um vazio de mar

por onde ele continue a voar dormindo.

*

Pinzón

diz que o cabo Rostro Hermoso (que se diz hoje de Santo Agostinho)

cai pela terra de mais luz da terra(mudou o nome, sobrou a luz a pino);

dá-se que hoje dói na vida tanta luz: ela revela real

o real, impõe filtros: as lentes negras, lentes de diminuir,

as lentes de distanciar, ou do exílio. (O sol em Pernambuco leva

dois sóis, sol de dois canos, de tiro repetido; o segundo dos

dois, o fuzil de luz, revela real a terra: tiro de inimigo).

Num Monumento à Aspirina

Claramente: o mais prático dos sóis,

o sol de um comprimido de aspirina:

de emprego fácil, portátil e barato,

compacto de sol na lápide sucinta.

Principalmente porque, sol artificial,

que nada limita a funcionar de dia,

que a noite não expulsa, cada noite,

sol imune às leis da meteorologia,

a toda hora em que se necessita dele

levanta e vem (sempre num claro dia):

acende, para secar a aniagem da alma,

quará-la, em linhos de um meio-dia.


*


Convergem: a aparência e os efeitos

da lente do comprimido de aspirina:

o acabamento esmerado desse cristal,

polido a esmeril e repolido a lima,

prefigura o clima onde ele faz viver

e o cartesiano de tudo nesse clima.

De outro lado, porque lente interna,

de uso interno, por detrás da retina,

não serve exclusivamente para o olho

a lente, ou o comprimido de aspirina:

ela reenfoca, para o corpo inteiro,

o borroso de ao redor, e o reafina.



Publicado no livro A educação pela pedra (1966).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.360-361. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

O Retirante Explica ao Leitor Quem é e a Que Vai

— O meu nome é Severino,

não tenho outro de pia.

Como há muitos Severinos,

que é santo de romaria,

deram então de me chamar

Severino de Maria;

como há muitos Severinos

com mães chamadas Maria,

fiquei sendo o da Maria

do finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:

há muitos na freguesia,

por causa de um coronel

que se chamou Zacarias

e que foi o mais antigo

senhor desta sesmaria.

Como então dizer quem fala

ora a Vossas Senhorias?

Vejamos: é o Severino

da Maria do Zacarias,

lá da serra da Costela,

limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:

se ao menos mais cinco havia

com nome de Severino

filhos de tantas Marias

mulheres de outros tantos,

já finados, Zacarias,

vivendo na mesma serra

magra e ossuda em que eu vivia.

Somos muitos Severinos

iguais em tudo na vida:

na mesma cabeça grande

que a custo é que se equilibra,

no mesmo ventre crescido

sobre as mesmas pernas finas,

e iguais também porque o sangue

que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinos

iguais em tudo na vida,

morremos de morte igual,

mesma morte severina:

que é a morte de que se morre

de velhice antes dos trinta,

de emboscada antes dos vinte,

de fome um pouco por dia

(de fraqueza e de doença

é que a morte severina

ataca em qualquer idade,

e até gente não nascida).

Somos muitos Severinos

iguais em tudo e na sina:

a de abrandar estas pedras

suando-se muito em cima,

a de tentar despertar

terra sempre mais extinta,

a de querer arrancar

algum roçado da cinza.

Mas, para que me conheçam

melhor Vossas Senhorias

e melhor possam seguir

a história de minha vida,

passo a ser o Severino

que em vossa presença emigra.



Publicado no livro Duas águas: poemas reunidos (1956). Poema integrante da série Morte e Vida Severina.


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.171-172. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

Catar Feijão

Catar feijão se limita com escrever:

joga-se os grãos na água do alguidar

e as palavras na folha de papel;

e depois, joga-se fora o que boiar.

Certo, toda palavra boiará no papel,

água congelada, por chumbo seu verbo:

pois para catar esse feijão, soprar nele,

e jogar fora o leve e oco, palha e eco.


Ora, nesse catar feijão entra um risco:

o de que entre os grãos pesados entre

um grão qualquer, pedra ou indigesto,

um grão imastigável, de quebrar dente.

Certo não, quando ao catar palavras:

a pedra dá à frase seu grão mais vivo:

obstrui a leitura fluviante, flutual,

açula a atenção, isca-a como o risco

O ferrageiro de Carmona

Um ferrageiro de Carmona,

que me informava de um balcão:

Aquilo? É de ferro fundido,

foi a forma que fez, não a mão.


Só trabalho em ferro forjado

que é quando se trabalha ferro

então, corpo a corpo com ele,

domo-o, dobro-o, até o onde quero.


O ferro fundido é sem luta

é só derramá-lo na forma.

Não há nele a queda de braço

e o cara a cara de uma forja.


Existe a grande diferença

do ferro forjado ao fundido:

é uma distância tão enorme

que não pode medir-se a gritos.


Conhece a Giralda, em Sevilha?

De certo subiu lá em cima.

Reparou nas flores de ferro

dos quatro jarros das esquinas?


Pois aquilo é ferro forjado.

Flores criadas numa outra língua.

Nada têm das flores de forma,

moldadas pelas das campinas.


Dou-lhe aqui humilde receita,

Ao senhor que dizem ser poeta:

O ferro não deve fundir-se

nem deve a voz ter diarréia.


Forjar: domar o ferro à força,

Não até uma flor já sabida,

Mas ao que pode até ser flor

Se flor parece a quem o diga.

Serventia das idéias fixas

Para Vinícius de Morais


Assim como uma bala

enterrada no corpo,

fazendo mais espesso

um dos lados do morto;


assim como uma bala

do chumbo mais pesado,

no músculo de um homem

pesando-o mais de um lado;


qual bala que tivesse

um vivo mecanismo,

bala que possuísse

um coração ativo


igual ao de um relógio

submerso em algum corpo,

ao de um relógio vivo

e também revoltoso,


relógio que tivesse

o gume de uma faca

e toda a impiedade

de lâmina azulada;


assim como uma faca

que sem bolso ou bainha

se transformasse em parte

de vossa anatomia;


qual uma faca íntima

ou faca de uso interno,

habitando num corpo

como o próprio esqueleto


de um homem que o tivesse,

e sempre, doloroso

de homem que se ferisse

contra seus próprios ossos.


A


Seja bala, relógio,

ou a lâmina colérica,

é contudo uma ausência

o que esse homem leva.


Mas o que não está

nele está como bala:

tem o ferro do chumbo,

mesma fibra compacta.


Isso que não está

nele é como um relógio

pulsando em sua gaiola,

sem fadiga, sem ócios.


Isso que não está

nele está como a ciosa

presença de uma faca,

de qualquer faca nova.


Por isso é que o melhor

dos símbolos usados

é a lâmina cruel

(melhor se de Pasmado):


porque nenhum indica

essa ausência tão ávida

como a imagem da faca

que só tivesse lâmina,


nenhum melhor indica

aquela ausência sôfrega

que a imagem de uma faca

reduzido à sua boca;


que a imagem de uma faca

entregue inteiramente

à fome pelas coisas

que nas facas se sente.


B


Das mais surpreendentes

é a vida de tal faca:

faca, ou qualquer metáfora,

pode ser cultivada.


E mais surpreendente

ainda é a sua cultura:

medra não do que come

porém do que jejua.


Podes abandoná-la

essa faca intestina:

jamais a encontrarás

com a boca vazia.


Do nada ela destila

a azia e o vinagre

e mais estratagemas

privativos dos sabres.


E como faca que é,

fervorosa e energética,

sem ajuda dispara

sua máquina perversa:


a lâmina despida

que cresce ao se gastar,

que menos dorme

quanto menos sono há,

cujo muito cortar

lhe aumenta mais o corte

e se vive a se parir

em outras, como fonte.

(Que a vida dessa fac

se mede pelo avesso:

seja relógio ou bala,

ou seja faca mesmo.)


C


Cuidado com o objeto,

com o objeto cuidado,

mesmo sendo uma bala

desse chumbo ferrado,


porque seus dentes já

a bala os traz rombudos

e com facilidade

se em botam mais no músculo.


Mais cuidado porém

quando for um relógio

com o seu coração

aceso e espasmódico.


É preciso cuidado

por que não se acompasse

o pulso do relógio

com o pulso do sangue,


e seu cobre tão nítido

não confunda a passada

com o sangue que bate

já sem morder mais nada.


Então se for faca,

maior seja o cuidado:

a bainha do corpo

pode absorver o aço.


Também seu corte às vezes

tende a tornar-se rouco

e há casos em que ferros

degeneram em couro.


O importante é que a faca

o seu ardor não perca

e tampouco a corrompa

o cabo de madeira.


D


Pois essa faca às vezes

por si mesma se apaga.

É a isso que se chama

maré baixa da faca.


Talvez que não se apague

e somente adormeça.

Se a imagem é relógio,

a sua abelha cessa.


Mas quer durma ou se apague:

ao calar tl motor,

a alma inteira se torna

de um alcalino teor


bem semelhante à neutra

substância, quase feltro,

que é a das almas que não

têm facas-esqueleto.


E a espada dessa lâmina,

sua chama antes acesa,

e o relógio nervoso

e a tal bala indigesta,


tudo segue o processo

de lâmina que cega:

faz-se faca, relógio

ou bala de madeira,


bala de couro ou pano,

ou relógio de breu,

faz-se faca sem vértebras,

faca de argila ou mel.


(Porém quando a maré

já nem se espera mais,

eis que a faca ressurge

com todos seus cristais.)


E


Forçoso é conservar

a faca bem oculta

pois na umidade pouco

seu relâmpago dura


(na umidade que criam

salivas de conversas,

tanto mais pegajosas

quanto mais confidências).


Forçoso é esse cuidado

mesmo se não é faca

a brasa que te habita

e sim relógio ou bala.


Não suportam também

todas as atmosferas:

sua carne selvagem

quer câmaras severas.


Mas se deves sacá-los

para melhor sofrê-los,

que seja algum páramo

ou agreste de ar aberto.


Mas nunca seja ao ar

que pássaros habitem.

Deve ser a um ar duro,

sem sombra e sem vertigem.


E nunca seja à noite,

que estas têm as mãos férteis,

Aos ácidos do sol

seja, ao sol do Nordeste,


à febre desse sol

que faz de arame as ervas,

que faz de esponja o vento

e faz de sede a terra.


F


Quer seja aquela bala

ou outra qualquer imagem,

seja esmo um relógio

a ferida que guarde,


ou ainda uma faca

que só tivesse lâmina,

de todas as imagens

a mais voraz e gráfica,


ninguém do próprio corpo

poderá retirá-la,

não importa se é bala

nem se é relógio ou faca,


nem importa qual seja

a raça dessa lâmina:

faca mansa de mesa,

feroz pernambucana.


E se não a retira

quem sofre sua rapina,

menos pode arrancá-la

nenhuma mão vizinha.


Não pode contra ela

a inteira medicina

de facas numerais

e aritméticas pinças.


Nem ainda a polícia

com seus cirurgiões

e até nem mesmo o tempo

como os seus algodões.


E nem a mão de quem

sem o saber plantou

bala, relógio ou faca,

imagens de furor.


G


Essa bala que um homem

leva às vezes na carne

faz menos rarefeito

todo aquele que a guarde


O que um relógio implica

por indócil e inseto,

encerrado no corpo

faz este mais desperto.


E se é faca a metáfora

do que leva no músculo,

facas dentro de um homem

dão-lhe maior impulso.


O fio de uma faca

mordendo o corpo humano,

de outro corpo ou punhal

tal corpo vai armando,


pois lhe mantendo vivas

todas as molas da alma

dá-lhes ímpeto de lâmina

e cio de arma branca,


além de ter o corpo

que a guarda crispado,

insolúvel no sono

e em tudo quanto é vago,


como naquela história

por alguém referida

de um homem que se fez


memória tão ativa

que pôde conservar

treze anos na palma

o peso de uma mão,

feminina, apertada.


H


Quando aquele que os sofre

trabalha com palavras,

são úteis o relógio,

a bala e, mais, a faca.


Os homens que em geral

lidam nessa oficina

têm no almoxarifado

só palavras extintas:


umas que se asfixiam

por debaixo do pó

outras despercebidas

em meio a grandes nós;


palavras que perderam

no uso todo o metal

e a areia que detém

a atenção que lê mal.


Pois somente essa fraca

dará a tal operário

olhos mais frescos para

o seu vocabulário


e somente essa faca

e o exemplo de seu dente

lhe ensinará a obter

de um material doente

o que em todas as facas é

Camarada diamante!

Não sou um diamante nato

nem consegui cristalizá-lo:

se ele te surge no que faço

será um diamante opaco

de quem por incapaz do vago

quer de toda forma evitá-lo,

senão com o melhor, o claro,

do diamante, com o impacto:

com a pedra, a aresta, com o aço

do diamante industrial, barato,

que incapaz de ser cristal raro

vale pelo que tem de cacto.

A Luz em Joaquim Cardozo

Escrever de Joaquim Cardozo

só pode quem conhece

aquela luz Velásquez

de onde nasceu e de que escreve.


A luz que das várzeas da Várzea

onde nasceu, redonda,

vem até o ex-Cais de Santa Rita

que viveu: luz redoma,


luz espaço, luz que se veste,

leve como uma rede,

e clara, até quando preside

o cemitério e a sede.



Publicado no livro Museu de tudo (1975).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.375. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)

A Lição de Poesia

1. Toda a manhã consumida

como um sol imóvel

diante da folha em branco:

princípio do mundo, lua nova.


Já não podias desenhar

sequer uma linha;

um nome, sequer uma flor

desabrochava no verão da mesa:


nem no meio-dia iluminado,

cada dia comprado,

do papel, que pode aceitar,

contudo, qualquer mundo.


2. A noite inteira o poeta

em sua mesa, tentando

salvar da morte os monstros

germinados em seu tinteiro.


Monstros, bichos, fantasmas

de palavras, circulando,

urinando sobre o papel,

sujando-o com seu carvão.


Carvão de lápis, carvão

da idéia fixa, carvão

da emoção extinta, carvão

consumido nos sonhos.


3. A luta branca sobre o papel

que o poeta evita,

luta branca onde corre o sangue

de suas veias de água salgada.


A física do susto percebida

entre os gestos diários;

susto das coisas jamais pousadas

porém imóveis — naturezas vivas.


E as vinte palavras recolhidas

nas águas salgadas do poeta

e de que se servirá o poeta

em sua máquina útil.


Vinte palavras sempre as mesmas

de que conhece o funcionamento,

a evaporação, a densidade

menor que a do ar.



Publicado no livro O engenheiro (1945).


In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.78-79. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

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