A ilusão da modernidade

In: Cadernos do Expogeo, #10. Salvador: Editora do Expogeo, 1999. p. 71-76.

A ilusão da modernidade

Isaías Carvalho

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1 A cidade como um projeto da Modernidade e o homem pós-moderno

A maioria esmagadora da população, especialmente no mundo ocidental, concentra-se em áreas urbanas. Essa urbis é um conhecido projeto moderno na “grande marcha da humanidade em busca da sociedade perfeita”[1]. Quanto a esse objetivo, a modernidade falhou glamourosamente, mas deixou suas marcas profundas no modo como os homens se organizam espacialmente em sociedade e como esse espaço os cerceia e os faz buscar ar na superfície das rotinas estafantes, como alguém que se afoga. Isso significa que vivemos em um espaço moderno, mas com uma atitude pós-moderna, na qual “a comunidade humana transborda de vitalidade”[2], ou seja, o cotidiano das cidades, com sua pretensão de disciplina e uniformidade, “não consegue sufocar o orgiástico [...] como energia vital que move os desejos humanos.”[3]

Essa tensão entre o espaço metropolitano e o desejo de viver o presente, as pequenas coisas da vida e o corpo é ironicamente retratada por Affonso Romano de Sant’anna em “A Ilusão do Fim de Semana”: “Há algo de errado nisto. E persistimos”, sinaliza esse autor ao final de sua crônica apropriada para o nosso tema aqui. É a ilusão da modernidade ou de seu grande projeto homogeneizador que se mostra ao homem produtivo e eficiente exigido pelo mercado tido como globalizado e mais exigente do que nunca. Qualquer feriado ou momentos livres são motivos de busca do prazer ou do natural, a corrida para as praias do litoral ou para o interior, um êxodo que se repete em escala monumental, uma operação de guerra. Podemos ver nos noticiários pessoas que passam até dez horas presas em engarrafamentos quilométricos para chegar às praias do litoral de São Paulo, por exemplo. De qualquer modo, este parece ser um movimento comum aos aglomerados urbanos - desde as pequenas cidades até as grandes metrópoles - em graus distintos, mas tendo em comum a necessidade de "consumo de lazer", um tipo específico de consumismo, marca dos nossos tempos. É dessa ilusão que trato nesse ensaio: o apelo ao consumo, que atinge a maioria da população (não toda ela, como mostrarei a seguir), faz com que se estenda ao tempo livre a mesma dinâmica competitiva dos dias “úteis”. Entretanto, há ainda espaço para o diverso.

Se para a modernidade o corpo era um “instrumento de trabalho”[4], no nosso tempo pós-moderno (termo em si já desgastado e insuficiente para descrever a transformação do cotidiano e suas relações[5]) ele passa a ser (ou volta a sê-lo?) um lugar de prazer e sensações. Entretanto, o que tento perceber neste ensaio, através dos textos de Sant’anna e de Ana Lúcia Rezende (ver nota 1) e do caso analisado na segunda parte, é a contradição ou convivência não pacífica entre o espaço moderno da metrópole e a visão pós-moderna do corpo e o debruçar-se sobre “os comezinhos prazeres” (Sant’anna). O futuro do projeto anterior é o presente de hoje: “assim, foram procedidas a massificação das individualidades e a asfixia do presente” (Rezende) e, ao voltarmos do fim de semana com a sensação de que viemos de uma guerra, “aí começaremos a fazer novos planos para fugir da cidade. Planejaremos outro feriado e contaremos quanto tempo falta para a aposentadoria” (Sant’anna). Há definitivamente “algo de errado nisto”, mas ao ter consciência da necessidade de prazer e de viver o presente, o homem de hoje tem a possibilidade de viver o seu dia, mesmo que seja enquanto uma promessa do próximo fim de semana. Ou seria tudo uma ilusão?

Falemos um pouco do nosso lugar. Salvador é um bom exemplo de uma cidade perpassada ao mesmo tempo pela modernidade estruturadora e pelo desordenado crescimento da população. A cidade literalmente quase não comporta a explosão de vitalidade, para utilizar o termo bem aplicado por Rezende, demonstrada em seu carnaval de rua de dimensões incomensuráveis em termos de espaço(s) ocupado(s) e de energia lúdica e sensual dispendida. Além dessa festa mor, as chamadas festas de largo, dentre tantas outras manifestações populares e/ou de guetos étnicos e culturais, que acontecem com uma frequência estonteante, reproduzem essa mesma configuração descrita por Rezende: "a pós-modernidade, do estilhaçamento de todos os discursos, é o retorno cíclico para a fruição de um encontro com o prazer de partilhar" e de "se espalhar por aí". A cidade também, mesmo que seja redundante dizê-lo, não comporta o seu povo harmonicamente, o que parece ser um problema comum às cidades todas, mas em especial àquelas que estão nas ex-colônias, como a nossa, onde a distribuição de renda lembra as relações econômicas na idade média. Não é meu objetivo aqui aprofundar o tema da exclusão social e cultural, mas é pertinente relembrá-la, pois é minha tese de que essa exclusão é facilitada ou até mesmo propiciada por esse projeto urbano que não deu certo.

Será tudo mesmo ilusório ou há espaços e atitudes alternativas e diversas a essa tensão entre o homem em busca de prazeres, inclusive o prazer de "um tal de fazer nada, como a natureza mandou" (Rezende)? Mais uma vez é Rezende quem nos aponta uma direção possível a ser tomada nessa reflexão: "compreender e não necessariamente explicar, este é o grande desafio que nos é imposto". A cidade comporta, sim, multiplicidades (múltiplas cidades) e diferentes vivências que podem e já começam a viver sem hostilidades ou exclusão mútua. No item II desse trabalho, tentarei "compreender" ou talvez apenas apresentar um caso que pode servir de amostra de como essa multifacetada existência urbana pode ser enriquecedora para aqueles que desejem "reconhecer" o outro, ou pelo menos experimentar "olhar" para o outro, o "olhar" do outro ou ser "olhado" pelo outro.

2 Maria Cruz dos Santos, um caso

Brasileira, baiana, casada, empregada doméstica de uma família de classe média do centro de Salvador, negra, mãe de quatro filhos, escolaridade até o quarto ano primário já em idade adulta, cristã praticante da Assembleia de Deus, moradora da Travessa Machado (sem pavimentação, portanto, sem tráfego de veículos, sem saneamento básico, próximo à Barragem do Cobre), no bairro de Pirajá, periferia de Salvador-Bahia. Esse poderia ser o currículo de Maria Cruz dos Santos, mas seria apenas uma possibilidade. O que pode alcançar toda a extensão de um ser humano em uma metrópole? Que rótulos e epítetos podem dar conta desse universo tão diversificado? O fato de todos os significantes de seu nome completo serem repletos de referências bíblicas/cristãs pode ser considerado? (Sim, mas em outro momento)

Sobre a ilusão do fim de semana ou sobre a explosão de vitalidade pós-moderna, temas abordados na primeira parte deste pequeno e modesto ensaio, em que lugar poderíamos colocar Maria e suas circunstâncias? Como se analisar imparcialmente, sem uma visão específica do lugar de que se fala, o lugar que ela ocupa? São muitas as perguntas, mas a resposta não pode ser definitiva. De qualquer modo, a seguir ofereço a transcrição de um trecho da entrevista que fiz com Maria da Cruz dos Santos acerca de algumas questões abordadas nesse trabalho:

Entrevistador: Onde você nasceu e cresceu?

Maria: Nasci em Nazaré das Farinhas e vim pra Salvador com 11 anos.

Entrevistador: Para onde você veio em Salvador?

Maria: Sempre morei no Pirajá.

Entrevistador: Você faz viagens ou já fez muitas viagens?

Maria: Não. Nunca viajei não. A não ser pro meu interior [Nazaré das Farinhas].

Entrevistador: Com que freqüência você viaja para Nazaré?

Maria: Freqüência como?

Entrevistador: Se você viaja sempre para lá.

Maria: Não. Vai fazer uns cinco anos que eu fui.

Entrevistador: Você gostaria de viajar muito?

Maria: Não.

Entrevistador: Você gosta de morar em Pirajá?

Maria: Eu gosto.

Entrevistador: Por quê?

Maria: Porque, por exemplo, o lugar que eu moro é um lugar calmo afastado assim das vizinhanças.

Entrevistador: Você gostaria de morar no centro da cidade?

Maria: Eu não.

Entrevistador: Por que não?

Maria: Eu?!!...

Entrevistador: Você gosta de vir ao centro da cidade?

Maria: Eu só gosto assim a passeio.

Entrevistador: Quais os lugares que você já freqüentou na cidade?

Maria: Na avenida 7 é que eu sempre vou quando eu vou para o médico.

Entrevistador: O que você faz nos fins de semana e feriados?

Maria: Eu lavo roupa e fico fazendo a faxina da casa.

Entrevistador: Apenas isso?

Maria: Nos domingos eu vou pra igreja.

Não foi meu objetivo abordar todas as questões relacionadas a classe, gênero ou etnia, que estão explicitadas nesse caso. Porém, de uma forma alegórica, poderia dizer que, nessa visita que fiz a Maria e no que lá vi (qualquer semelhança com a carta de Pero Vaz de Caminha é mera coincidência?), deu-se o encontro do dominador com o dominado, do senhor com o escravo, do branco com o negro, do patrão com o empregado, do capital com o trabalho, do civilizado com o primitivo, do letrado com o iletrado, da racionalidade com o fanatismo, da ciência com o misticismo, do homem com a mulher, do centro com a periferia, bem como tantas outras dicotomias desgastadas ou ainda por se desgastarem. Tudo isso eu poderia dizer, mas novamente não seria exato nem totalmente apropriado, mesmo que haja a factualidade das circunstâncias para legitimá-lo até certo ponto.

O diálogo acima é esclarecedor dessa possibilidade de coexistência entre os vários grupos e estratos culturais dentro do mesmo (diverso) espaço instável gerado pelo choque entre um mundo que se via em um futuro iluminado e o mundo que hoje se nos oferece enquanto um lugar de vivência do momento, enquanto quebra e queda de utopias e paradigmas, enquanto plural e desafio. É tudo isso, mas isso não é tudo. Não quero, nem posso, pela própria natureza da abordagem, generalizar ou gerar números a respeito do caso Maria, mas ela certamente não é a única que se encaixa em seu lugar.

Provavelmente há várias outras Marias espalhadas pela cidade, senão em todos os pormenores, pelo menos na maioria deles. Ou seja, a vitalidade, ou a vivência, desses "prazeres comezinhos" está se dando de forma diversificada e pulverizada pela urbis. Isso é humano, "demasiado humano" [6], é a resposta da pós-modernidade vivida nas mentes dos homens, mas não correspondida pelo espaço urbano. Enquanto outros “grupos” vivem a planejar "escapadas" da cidade, congestionando as estradas em direção às praias do litoral norte de salvador ou outros “paraísos”, Maria faz o que ela faz, assim como vários outros grupos da(s) cidade(s) de Salvador. Espero que o caso Maria tenha servido para ilustrar o meu trabalho, que me rendeu muitas "descobertas" a respeito do "outro", desmistificando-o, e a meu próprio respeito, revelando-me relacionalmente em minha comunidade.

Notas

[1] REZENDE, Ana Lúcia. Pós-modernismo: o vitalismo no caos. Revista Plural, v. 03, no. 04, 1993.

[2] Ibidem.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem.

[5] Há de fato a contraposição entre os termos "pós-moderno" e "pós-colonial", reflexão já bastante avançada na área de estudos culturais e humanidades em geral em relação aos países chamados “periféricos” ou ex-colônias e que se torna relevante no nosso contexto. Em linhas gerais: o Pós-moderno mistifica a abrangência do conceito de "diferença" e de "outro"; é um discurso imperialista universalizante, no qual a diversidade forma a unidade, além de não levar em conta que, no sentido histórico, as ex-colônias não passaram pela modernidade, portanto, não poderiam estar vivendo uma pós-modernidade; dá uma exagerada ênfase ao "global". Por seu turno, o Pós-colonial busca desconstruir o conceito de "outro"; é uma potencial descolonização conceitual possibilitada pela crise da representação; dá ênfase à história local; é um discurso de transformação das práticas culturais imperialistas.

[6] Torna-se quase desnecessário mencionar a origem dessa citação pretensiosa (de minha parte): Nietzsche, em Humano, demasiado humano. um livro para espíritos livres.

Referências

AZEVEDO, Aluízio. O cortiço. São Paulo: Ática, 1992.

DaMATTA, Roberto. A casa & a rua - espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modrnismo. Trad.: Júlio assis simões. São Paulo: Studio Nobel, 1995.

KINDLER, Ana M. Multiculturalismo e formação da identidade cultural. In: FIGUEIREDO, Eurídice; SANTOS, Eloína Prati dos. (Orgs.). Recortes transculturais. Niterói: EDUFF:ABECAN, 1997.

REZENDE, Ana Lúcia. Pós-modernismo: o vitalismo no caos. Revista Plural, v. 03, n. 04, 1993.

SANTOS, Eloína Prati dos. Intertuextualidade pós-moderna: uma estratégia de descolonização. In: FIGUEIREDO, Eurídice; SANTOS, Eloína Prati dos. (Orgs.). Recortes transculturais. Niterói: EDUFF:ABECAN, 1997.

SILVA, José Bonifácio de. Projetos para o Brasil. Miriam Dolhnikoff. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros - a reflexão francesa sobre a diversidade humana. v. 1. Trad. Sérgio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

TOURAINE, Alan. Crítica da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1995.

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