Digo, pois, que nos Estados hereditários e afeitos à ascendência do seu príncipe são muito menores as dificuldades de manutenção do que nos novos, porque basta apenas não desprezar as regras dos antepassados e, a par, contemporizar diante dos acontecimentos; de modo que, se tal príncipe possui engenho apenas ordinário, manterá sempre o seu Estado, a não ser que dele o prive força extraordinária e excessiva; e, mesmo que dele seja privado, readquire-o, não importa quanta malignidade possua o usurpador.
Em, primeiro lugar, se não é ele inteiramente novo, e sim membro ajuntado a outro (quando, então, pode-se denominá-lo quase misto), suas variações nascem antes de tudo de uma dificuldade natural, a qual é peculiar a todos os principados novos, a saber, que os homens mudam de bom grado de senhor, acreditando melhorar, esta crença levando-os a tomar armas contra o senhor do momento.
Dessa maneira tens por inimigos todos os que ofendeste ao ocupar um principado, e não podes manter a amizade dos que nele te puseram, por não poderes satisfazê-los da forma que haviam esperado e por não poderes usar contra eles remédios extremos, impedido disso por dever de gratidão, dado que, embora poderosos em armas, sempre necessitamos do favor dos naturais de uma província a fim de dominá-la.
Digo, portanto, que esses Estados, que com a conquista se acrescentam a um Estado herdado por quem a fez, são ou de uma mesma província e têm língua idêntica, ou não o são. Quando o são, é muito fácil mantê-los, principalmente quando não estão afeitos a existir com independência; e para firmar com segurança o seu domínio, basta aniquilar a casa do príncipe que sobre eles imperava, porque, em relação ao mais, conservando-se neles as condições antigas e não havendo disparidade de costumes, os homens convivem pacificamente,
Quem os conquistou deve, a fim de conservá-los, ter dois propósitos: um, que se extinga a casa do seu antigo príncipe; outro, que não se alterem nem suas leis nem seus tributos. Dessa maneira, o Estado conquistado e o hereditário transformam-se em brevíssimo tempo num corpo único.
A vista do que, é de notar que os homens devem ser ganhos com agrados ou destruídos, pois que, se podem vingar-se das ofensas leves, das graves não o podem fazer. Assim, a ofensa que se faz a alguém deve ser tal, que não se tema a vingança.
Os romanos, nas províncias que conquistaram, observaram bem estas máximas: estabeleceram colônias, lisonjearam os menos fortes, sem permitir o crescimento’ de sua força, abateram os fortes e não permitiram que estrangeiros poderosos nelas adquirissem prestígio.
Ocorre assim com as coisas do Estado: conhecendo-se antecipadamente os *.. males que nele irrompem (o que não é dado senão ao príncipe prudente), são logo curados; quando, porém, por não os haver reconhecido, se permite que progridam de tal maneira que todos os reconheçam, não há mais médio.
Jamais lhes agradou o que está sempre nos lábios de entendedores de nosso tempo: o gozo do bem-estar da hora presente; preferiram, antes, prevalecer-se de seu valor e sabedoria, pois o tempo é propício a todas as coisas e pode dar azo a que ao bem se suceda o mal e ao mal sobrevenha o bem.
Disto se extrai uma regra geral, a qual nunca ou raramente falha: aquele que toma outrem poderoso “arruína-se a si próprio, pois esse poderio é causado pela astúcia ou pela força, e uma e outra são suspeitas a quem se tomou poderoso.
QUOMODO ADMINISTRANDAE SINT CIVITATES VEL PRINCIPATUS, QUI ANTEQUAM OCCUPARENTUR, SUIS LEGIBUS VIVEBANT
DE COMO GOVERNAR CIDADES OU PRINCIPADOS QUE, ANTERIORMENTE A OCUPAÇÃO, SE REGIAM POR LEIS PROPRIAS
Quando os Estados que se conquistam são, como se .disse, acostumados a viver regidos por suas próprias .leis e em liberdade, há três maneiras de mantê-los: a primeira, é arruiná-los; a segunda, ir pessoalmente habitar neles; a terceira, permitir-lhes viver regidos por suas leis, fazendo-os, porém, pagar um tributo ao conquistador e organizando neles governos de pouca gente, que saiba conservá-los amigos.
DE PRINCIPATIBUS NOVIS QUI ARMIS PROPRlIS ET VIRTUTE ACQUIRUNTUR
DOS PRINCIPADOS NOVOS QUE SÃO CONQUISTADOS MERÇE DE ARMAS Próprias E VALOR
Caminhando os homens quase sempre por estradas já palmilhadas por outros e guiando-se nas suas ações pela imitação, muito embora não possam as pegadas alheias seguir inteiramente nem atingir o grau de valor daqueles que imitam, devem os que sejam prudentes seguir sempre por caminhos palmilhados por grandes vultos e imitar os que mais se tenham notabilizado, de modo a que, se não alcançam todo o valor deles, pelo menos lhes ganhem alguma aproximação. Farão como os arqueiros experientes, os quais, notando que o alvo que devem atingir é demasiado remoto e conhecendo a capacidade do seu arco, visam local mais ao alto do seu alvo, não para alcançar com sua flecha tal altura, mas para atingir, com a ajuda de pontaria elevada, o ponto desejado.
É portanto necessário, para que bem se exponha esta parte, verificar se tais inovadores se sustentam mercê de suas próprias forças ou se dependem de outros, isto é, se para realizar sua obra precisam rogar, ou se podem agir pela força. No primeiro caso, acabam sempre mal e não chegam a coisa alguma; mas quando dependem apenas de si próprios e podem agir pela força, então raras vezes deixam de alcançar êxito. Daí o fato de todos os profetas armados terem vencido e de os desarmados se terem arruinado. :e que, além do que já se disse, a natureza dos povos é vária; e se é fácil persuadi-los em relação a alguma coisa, é difícil mantê-los nessa persuasão, razão por que é necessário estar preparado para, quando eles não mais acreditarem, fazê-los acreditar pela força.
DE HIS QUI PER SCELERA AD PRINCIPATUM PARVENERE
DOS QUE ASCENDEM AO PRINCIPADO PELO CRIME
A esta altura há que notar que, ao apossar-se de um Estado, deve o que o tomou verificar todas as ofensas que precisa fazer; e fazê-las todas de uma vez, a fim de não ter de repeti-las todos os dias e poder, assim, não as repetindo, tranqüilizar os homens e, beneficiando-os, conquistá-los. Quem age diferentemente, ou por timidez ou por mal aconselhado, necessitará sempre estar com a faca em punho; não poderá nunca confiar nos seus súditos, por não poderem estes, em virtude das novas e contínuas injúrias, sentirem-se seguros sob o seu governo. É que as injúrias se devem fazer todas de uma vez, a fim de que, tomandose-lhes menos o gosto, ofendam menos; os benefícios devem ser feitos pouco a pouco, a fim de que melhor sejam saboreados.
DE PRINCIPATU CIVILI
DO PRINCIPADO CIVIL
Aquele, porém, que ascende ao principado pelo favor popular vê-se sozinho no poder e tem ao seu redor ninguém, ou pouquíssimos, que não se possa fazer obediente. Além disso, não se pode honestamente satisfazer os grandes sem prejuízo de outros, mas pode-se beneficiar o povo, eis que o objetivo do povo é mais honesto que o dos grandes, porque estes querem oprimir e aquele, não ser oprimido. Contra a inimizade do povo, o príncipe jamais pode ter segurança, por se tratar de muita gente; contra a dos grandes, pode ter segurança, por serem eles poucos. O pior que um príncipe pode esperar do povo que não lhe vota amizade é ser por ele abandonado; mas dos grandes que sejam hostis, deve não só temer ser por eles abandonado, como ainda que o ataquem, pois que, havendo nestes maior alcance de vista e maior astúcia, previnem-se sempre com tempo de salvarem-se e buscam as boas graças daquele que esperam que vença. Precisa ainda o príncipe viver sempre com o próprio povo; mas pode bem dispensar-se de agir sem os grandes, estando nele o poder de favorecê-los e desfavorecê-los a qualquer momento e darlhes e retirar-lhes prestígio, a seu talante.
Deve, portanto, aquele que se torna príncipe mediante o favor do povo conservar a sua estima, coisa que lhe é fácil por não querer o povo senão não ser oprimido. Mas quem, contra a vontade do povo, se torna príncipe com o favor dos grandes deve, antes de mais nada, procurar ganhar a estima do povo, o que lhe é fácil quando decide ser protetor dos seus interesses. E porque os homens, quando recebem o bem de quem esperava o mal, ficam mais gratos ao seu benfeitor, torna-se o povo, depressa, tão mais agradecido àquele do que se ele houvesse sido conduzido ao principado mediante o seu favor. Pode o príncipe ganhar-lhe a estima de muitas maneiras, às quais, por variarem, de acordo com cada caso, não se podem dar regras determinadas: por isso não tratarei delas. Concluirei, apenas, por dizer que a um príncipe é necessário ter o povo como amigo; de outra maneira não encontrará ele apoio na adversidade.
QUOMODO OMNIUM PRINCIPATUUM VIRES PERPENDI DEBEANT
COMO SE DEVEM MEDIR AS FORÇAS DE TODOS OS PRINCIPADOS
Convém seja feita, ao examinarem-se as qualidades destes principados, uma outra consideração, a saber: se um príncipe dispõe de poder suficiente para, se precisar, por si mesmo conduzir-se, ou se tem sempre necessidade de auxílio alheio.
QUOT SINT GENERA MILITIAE ET DE MERCENARIlS MILITIBUS *
DAS VARIAS ESPÉCIES DE MILlCIAS E DOS SOLDADOS MERCENÁRIOS
Direi, pois, que as armas com as quais um príncipe defende o seu Estado são ou próprias ou mercenárias, ou auxiliares ou mistas 77. As mercenárias e auxiliares são prejudiciais e perigosas; e se um príncipe fundamenta o seu poder nas armas mercenárias, não o terá jamais sólido nem gozará de segurança, porque os soldados não se lhe afeiçoam, são ambiciosos, indisciplinados e infiéis, animosos entre os amigos, vis diante do inimigo; e não temem a Deus nem usam de lealdade para com os outros.
DE MILITIBUS AUXILIARIIS, MIXTIS ET PROPRIIS *
DAS TROPAS AUXILIARES, MISTAS E NACIONAIS
Em resumo: as armas dos outros ou te caem do corpo ou te pesam ou te sufocam.
QUOD PRINCIPEM DECEAT CIRCA MILITIAM *
DAS OBRIGAÇõES DO PRINCIPE EM RELAÇÃO ÀS TROPAS
Deve, portanto, jamais afastar o pensamento do exercício da guerra, preocupando-se com ele mais ainda na paz do que na guerra, o que pode fazer de duas maneiras: uma, com a ação física, e outra, mediante o espírito. Quanto à ação física, além de conservar bem organizados e exercitados os seus homens, deve dedicar-se assiduamente à caça, a fim de habituar o corpo aos incômodos e, a par, conhecer a natureza das regiões, saber como se erguem as montanhas, como se aprofundam os vales, como se estendem as planícies e familiarizar-se com a peculiaridade dos rios e dos pântanos, pondo nisto atenção extrema. Esse conhecimento é útil por dois motivos: primeiro, aprende-se a conhecer o território e pode-se melhor organizar a sua defesa; segundo, mediante o conhecimento e a freqüência das suas regiões, tem-se fácil noção da natureza de outras regiões que ainda se tenha necessidade de conhecer. :f; que, por exemplo, as colinas, os vales, as planícies, os rios e os pântanos que há na Toscana têm certa semelhança com os de outras províncias, de modo que, com o conhecimento das regiões de uma província, pode-se chegar com facilidade ao conhecimento das de outras. O príncipe falto desta experiência é falto da principal qualidade inerente a um capitão, pois ela ensina a descobrir o inimigo, estabelecer os acampamentos, conduzir os exércitos, planear as campanhas, sitiar vantajosamente as cidades.
Filopemen quando andava pelo campo na companhia de amigos, freqüentemente se detinha para com eles debater: “Se os inimigos estivessem no cimo daquela colina e nós aqui com o nosso exército, quem teria vantagem? Como poderíamos chegar até eles em boa ordem? Se quiséssemos bater em retirada, como o faríamos? Se eles batessem em retirada, como faríamos para persegui-los?” E lhes propunha, a andar, todos os casos que a um exército podem ocorrer; ouvia a opinião deles, dava a sua, apoiando-as com suas razões. Assim, mercê desse contínuo excogitar, não lhe podia nunca, quando na condução dos exércitos, deparar acidente algum para o qual não tivesse remédio.
Agora, quanto ao exercício do espírito, deve o príncipe ler a história, e nela considerar as ações dos grandes homens, ver como se conduziram nas guerras, examinar as causas das suas vitórias e derrotas, a fim de poder evitar estas e alcançar aquelas; deve, sobretudo, fazer como no passado fizeram alguns grandes homens, os quais, propondo-se imitar alguém de tempos anteriores ao seu que alcançou glórias e louvores, revestiram suas atitudes e repetiram suas ações.
Maneiras assim deve um príncipe prudente observar e nunca estar ocioso nos tempos pacíficos; ao contrário, deve esforçar-se para capitalizar experiência e dela valerse na adversidade, de modo que, quando esta lhe modifique a sorte, se encontre preparado a resistir-lhe.
DE HIS REBUS QUIBUS HOMINES ET PRAESERTIM PRINCIPES LAUDANTUR AUT VITUPERANTUR
DAS COISAS PELAS QUAIS OS HOMENS, PRINCIPALMENTE OS PRINCIPES, SÃO LOUVADOS OU VITUPERADOS
Assim, o homem que queira em tudo agir como bom acabará arruinando-se em meio a tantos que não são bons. Daí ser necessário a um príncipe, para manter-se, aprender a não ser bom, e usar ou não usar o aprendido, de acordo com a necessidade.
DE CRUDELITATE ET PIETATE; ET AN SIT MELIUS AMARI QUAM TIMERI, VEL E CONTRA
DA CRUELDADE E DA PIEDADE; E SE É MELHOR SER AMADO DO QUE TEMIDO OU O CONTRÁRIO
Examinando as outras qualidades atrás enumeradas, direi que todo príncipe deve desejar ser tido como piedoso, e não como cruel; não obstante, deve cuidar de não usar mal a piedade.
Deve um príncipe, portanto, não se importar com a reputação de cruel, a fim de poder manter os seus súditos em paz e confiantes, pois que, com pouquíssimas repressões, será mais piedoso do que aqueles que, por muito clementes, permitem as desordens das quais resultem assassínios e rapinagens. Estas atingem a comunidade inteira, enquanto que os castigos impostos pelo príncipe atingem poucos.
Deve ele, entretanto, ser cauto no crer e no agir e não temer a própria sombra; e proceder de maneira a que, temperadas as suas ações com a prudência e a humanidade, a confiança demasiada não o torne incauto e a desconfiança exagerada não o torne intolerável.
É melhor ser amado que temido ou o contrário? Responder-se-á que se desejaria ser uma e outra coisa; mas, como é difícil casálas, é muito mais seguro ser temido que amado, quando se haja de optar por uma das alternativas. É que dos homens pode-se dizer geralmente o seguinte: que são ingratos, volúveis, dissimulados, esquivadores dos perigos, ambiciosos de ganho; que, enquanto os beneficias, são inteiramente teus, oferecendo-te o próprio sangue, os bens, a vida, os filhos, como atrás se disse, desde que não se mostre a necessidade disso. Quando, porém, ela se apresenta, eles se vão. E o príncipe que haja confiado inteiramente na palavra dada perde-se se estiver desprevenido de outras medidas, pois as amizades baseadas no interesse, e não na grandeza e nobreza de alma, não se têm à altura do que se merece, e na ocasião necessária não se podem usar. E os homens receiam menos ofender aquele que se faz amar do que aquele que se faz temer: o amor mantém-se vinculado à gratidão, e esse vínculo, por serem míseros os homens, rompe-o toda ocasião conveniente; ao passo que o temor é mantido pelo receio aos castigos, e jamais faz com que te abandonem.
Deve o príncipe, não obstante, fazer-se temer de modo a que, embora não adquira amor, possa evitar o ódio.
Mas, quando tiver de proceder contra o sangue de alguém, faça-o ele quando houver justificação conveniente e causa manifesta; abstenha-se, porém, sobretudo, de atentar contra os bens dos outros; eis que os homens se esquecem mais depressa da morte do próprio pai que da perda do patrimônio.
QUOMODO FIDES A PRINCIPIBUS SIT SERVANDA
DE QUE MODO DEVEM OS PRíNCIPES MANTER A PALAVRA DADA
Sendo, pois, preciso a um príncipe saber bem usar a natureza dos animais, deve aproveitar-se das qualidades da raposa e do leão, porque o leão não sabe defender-se contra as armadilhas, e a raposa não sabe defender-se contra os lobos. :B
preciso, portanto, ser raposa para reconhecer as armadilhas, e leão para amedrontar os lobos. Os que adotam apenas a natureza do leão não têm êxito.
Não pode e não deve, portanto, um príncipe prudente manter a palavra empenhada quando tal observância se volte contra ele e hajam desaparecido as razões que a motivaram. Se os homens fossem todos bons, esse preceito não seria bom, mas como são pérfidos e não mantêm a sua palavra em relação a ti, da mesma maneira não tens de mantê-la em relação a eles. Nunca faltaram a um príncipe razões legítimas com que mascarar as inobservâncias.
Mas é necessário saber bem disfarçar essa natureza e ser grande simulador e dissimulador. E são tão simples os homens e tanto obedecem às necessidades presentes, que aquele que engana encontrará sempre quem se deixe enganar.
Não é preciso, todavia, que um príncipe possua efetivamente todas as qualidades atrás enumeradas; mas é bem preciso aparentar possuí-las. Eu ousaria, ao contrário, dizer isto: possuir e observar sempre essas qualidades é nocivo; aparentar possuí-las é útil. Assim, é útil parecer e ser piedoso, fiel, humanitário, íntegro, religioso; mas devese ter o espírito prevenido, a fim de que, precisando não sê-lo, se possa e se saiba ser o contrário.
E, pois, é necessário que o príncipe possua espírito capaz de modificar-se de acordo com o que lhe ditam a direção dos ventos e o variar das circunstâncias; e que, como acima se disse, não se afaste do bem, se possível, mas saiba valer-se do mal, se necessário. Deve um príncipe, contudo, ter grande cuidado para que jamais lhe saia da boca algo que não esteja prenhe daquelas cinco qualidades, parecendo, assim, aos que o vêem e ouvem, todo piedade, todo lealdade, todo integridade, todo humanidade, todo religião. E nada é mais necessário .aparentar possuir do que esta última qualidade. Os homens, em geral, julgam mais com a vista do que com o tato, eis que ver é dado a todos, sentir, a poucos. Todos vêem o que pareces ser, poucos sentem o que és; e estes poucos não ousam opor-se à opinião dos muitos que contam com a majestade do Estado para a sua defesa. Nas ações de todos os homens, especialmente os príncipes, contra os quais não há tribunal a que recorrer, os fins é que contam. Faça, pois, o príncipe tudo para alcançar e manter o poder; os meios de que se valer serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, porque o vulgo atenta sempre para aquilo que parece ser e para os resultados. No mundo não há senão o vulgo que valha; e os poucos não têm oportunidades quando os muitos têm em que se apoiar.
DE HIS QVOS A SECRETIS PRINCIPES HABENT
DOS MINISTROS DOS PRÍNCIPES
E é que há três gêneros de cérebros: um, o dos que entendem as coisas por si próprios; outro, o dos que discernem o que os outros entendem; o terceiro, o dos que não entendem nem por si próprios nem sabem discernir o que os outros entendem. O primeiro é excelentíssimo, o segundo, excelente, o terceiro, inútil.
QUOMODO ADULATORES SINT FUGIENDI
DE COMO EVITAR OS ADULADORES
Concluo, portanto, dizendo que os bons conselhos, venham eles de onde vierem, devem nascer da prudência do príncipe, e não a prudência do príncipe nascer dos bons conselhos.
QUANTUM FORTUNA lN REBUS HUMANIS POSSIT, ET QUOMODO ILLI SIT OCCURRENDUM
QUANTO PODE A SORTE NAS COISAS HUMANAS E DE QUE MODO SE LHE RESISTE
Não ignoro que muitos homens têm sido e são de opinião que as coisas do mundo são de tal maneira dirigidas pela sorte e por Deus, que os homens não podem com sua prudência corrigi-las, e nem mesmo têm recursos para fazê-lo; e que, por isso, julgarão que não convém afadigar-se muito em relação às coisas, mas deixar-se conduzir pela sorte. Essa opinião tem sido mais aceita em nossos tempos, em virtude das grandes mudanças que se viram e vêem fazer a todo momento, fora de toda humana previsão. Pensando nisso, eu, algumas vezes e em certos casos, tenho-me inclinado a aceitar tal opinião.
Não obstante, desde que o nosso livre arbítrio não se extinguiu, julgo poder ser verdade que a sorte seja árbitro da metade das nossas ações, mas que certamente nos deixe governar a outra metade ou quase. Comparo-a a um rio desastroso que, quando se enfurece, inunda as planícies, destrói árvores e edifícios, carrega terra de um ponto para outro, e diante do qual todos fogem e a cujo ímpeto cedem, sem poder coisa alguma intentar para contê-lo. Mas, apesar desta sua natureza, não é impossível aos homens, quando esse rio estiver em calma, tomar medidas preventivas, construindo barragens e diques, de maneira que, avolumando-se ele depois, ou correrá por um canal ou o seu ímpeto não será tão violento nem tão danoso.