Sócrates

I.Sócrates e a fundação da filosofia moral ocidental

Sócrates (470/469 - 399 a.C.) não deixou escritos, mas confiou seu saber aos discípulos mediante o diálogo, na dimensão da pura oralidade. Daí a dificuldade de reconstruir sua doutrina, servindo-se de múltiplos testemunhos freqüentemente divergentes entre si, porque cada uma das testemunhas colhia apenas alguns aspectos do ensinamento do mestre, aqueles que lhe interessavam. Entre as fontes de Sócrates, por exemplo, Platão, pelo fato de idealizar o mestre, coloca-se no oposto de Aristófanes, que ao invés o põe em ridículo; Xenofonte, pelo fato de tender a banalizar os motivos filosóficos, se contrapõe a Aristóteles, que ao invés os torna excessivamente rigorosos. Para conhecer o pensamento de Sócrates é, portanto, necessário levar em conta todos os testemunhos, considerando em particular as novidades que se registram em campo filosófico, em geral, depois de Sócrates, e que nascem como efeitos do seu ensinamento. A sabedoria humana de que Sócrates se diz mestre consiste na busca de justificação filosófica (isto é, de um fundamento) da vida moral. Este fundamento consiste na própria natureza ou essência do homem. À diferença dos Sofistas, Sócrates chega a estas conclusões: o homem é a sua alma. E por alma ele entendia a consciência, a personalidade intelectual e moral (hoje o homem diríamos a capacidade de entender e de querer). “Conhecer a sua alma e a si mesmo” significa, portanto, reconhecer tal verdade. Se o homem é a alma, a virtude do homem se atua com a “cura da alma”, fazendo com que ela se realize da melhor forma possível. E como a alma é atividade cognoscitiva, a virtude será essencialmente potencialização dessa atividade, ou seja, será “ciência”, “conhecimento”. Dado que o corpo é instrumento da alma, também os valores ligados ao corpo serão instrumentais em relação aos da alma e, portanto, a eles subordinados.

Se a virtude é ciência, temos duas conseqüências:

1) existe uma só virtude, que é, ao mesmo tempo, o minimo denominador comum e o fundamento de todas as múltiplas virtudes em que o grego acreditava;

2) ninguém pode pecar voluntariamente, porque quem peca se engana sobre o valor daquilo a que a própria ação tende; considera um bem aquilo que é mal, aquilo que é bem apenas na aparência. Bastaria mostrar a quem erra a verdade, e este corrigiria o próprio erro.

Ainda do conceito de psyché deriva a descoberta socrática da liberdade, entendida como liberdade interior e, em última análise, como “autodomínio”. Uma vez que a alma é racional, ela alcança sua liberdade quando se livra de tudo o que é irracional, ou seja, das paixões e dos instintos. Dessa forma, o homem se liberta o mais possível das coisas que pertencem ao mundo externo e que alimentam suas paixões.

Também a felicidade assume valência espiritual e se realiza quando na alma prevalece a ordem. Tal ordem se realiza justamente mediante a virtude. Dessa forma, afirma-se o princípio ético que a virtude é prêmio para si mesma, e deve ser buscada por si mesma.

Dessa forma, assume relevo considerável o tema da “persuasão” e da educação espiritual. Nas relações com os outros a violência jamais vence: o verdadeiro vencer consiste em “convencer” (tema da não-violência).

Sócrates também teve uma particular concepção de Deus, deduzida da constatação de que o mundo e o homem são constituídos de modo tal - isto é, segundo tal ordem e tal finalidade - que exige uma causa adequada. Esta Causa é justamente Deus, entendido como inteligência ordenadora e providência. Uma providência que, porém, não se ocupa do homem ‘individual, mas do homem em geral, fornecendo-lhe o que lhe permite a sobrevivência. Todavia, enquanto Deus é bom, ocupa-se, ao menos indiretamente, também do homem bom, como acontece no caso específico de Sócrates com a voz divina (o daimónion) que lhe indica algumas coisas a evitar.

O método usado por Sócrates no seu ensinamento foi o do diálogo articulado em dois momentos: o irônico-refutatório e o maiêutico.

Além disso, seu método era montado sobre a figura do não-saber. Com efeito, ele não recorria a discursos de parada e a longos monólogos, mas seguia com seus interlocutores um método de pergunta-resposta, apresentando-se como aquele que não sabe e pede para ser instruído, e - pelo fato de efetivamente afirmar que todo homem, em relação a Deus, é não-sapiente -, muito freqüentemente esta atitude era uma simulação irônica, para constranger o adversário a expor completamente suas teses.

Sócrates, representando o aluno, começava o diálogo com o métodoo interlocutor, apresentado na falsa parte do mestre, e constrangia este a definir de modo preciso os termos de seu discurso e a escandir logicamente suas passagens. No mais das vezes, o resultado era que o interlocutor se confundia e caía em incuráveis contradições. E, de tal modo, atuava-se a “refutação”, e o interlocutor obrigava-se a reconhecer os próprio erros.

Neste ponto Sócrates punha em ação a pars construens do seu ensinamento e, sempre mediante perguntas e respostas, conseguia fazer nascer a verdade na alma do dialogante, quando esta dela estava grávida. Notemos a expressão: “fazer nascer”; como em grego a arte de fazer nascer própria da obstetra se diz “maiêutica”, Sócrates caracterizou justamente com tal nome este momento conclusivo de seu método.

Nestas operações dialógicas Sócrates punha em ato uma série de elementos lógicos de primeira ordem, alguns dos quais constituíam verdadeiras e próprias antecipações de figuras lógicas explicitadas e desenvolvidas em épocas sucessivas: por exemplo, o conceito, a definição (o “o que é”) e o procedimento indutivo.

Trata-se de antecipações significativas, mas não de descobertas verdadeiras, pelo simples motivo que o interesse de Sócrates era de tipo ético e não lógico, e tais formas não eram o fim da sua especulação, mas o meio para obter determinado escopo, justamente moral ou educativo.

Sócrates levou o pensamento filosófico a um plano bastante mais elevado em relação ao dos Sofistas, mas levantou uma série de questões que, por sua vez, punham ulteriores problemas que ele não resolveu. Ancorou a moral no conceito de alma, mas definiu a alma apenas em termos funcionais, indicou suas atividades e não a natureza, ou seja, qual é seu ser. O mesmo pode-se dizer de Deus: disse como Deus age, mas não precisou sua natureza ontológica. Desses problemas Platão e Aristóteles apresentarão soluções detalhadas.

1. A vida de Sócrates e a questão socrática (o problema das fontes)

Sócrates nasceu em Atenas em 470/469 a.C. e morreu em 399 a.C., após condenação por “impiedade” (foi acusado de não crer nos deuses da cidade e de corromper os jovens; mas, por trás de tais acusações, escondiam-se ressentimentos de vários tipos e manobras políticas). Era filho de um escultor e uma obstetra. Não fundou uma Escola, como os outros filósofos, realizando o seu ensinamento em locais públicos (nos ginásios, praças públicas etc.), como uma espécie de pregador leigo, exercendo imenso fascínio não só sobre os jovens, mas também sobre homens de todas as idades, o que lhe custou inúmeras aversões e inimizades.

Parece sempre mais claro que se devam distinguir duas fases na vida de Sócrates. Na primeira fase, ele esteve próximo dos Físicos, particularmente de Arquelau, que, como vimos, professava uma doutrina semelhante à de Diógenes de Apolônia (que misturava ecleticamente Anaxímenes e Anaxágoras). Sofrendo a influência da Sofistica, tornou próprios seus problemas, embora polemizando firmemente contra as soluções dos mesmos, dadas pelos maiores Sofistas. Assim sendo, não é estranho o fato de que Aristófanes, na célebre comédia As nuvens, representada no ano de 423 (portanto, quando Sócrates estava na metade de sua quarta década de vida), tenha apresentado um Sócrates bem diferente do apresentado por Platão e Xenofonte, que é o Sócrates da velhice.

Sócrates nada escreveu, considerando que a sua mensagem era transmissível pela palavra viva, através do diálogo e da “oralidade dialética”, como já se disse muito bem. Seus discípulos fixaram por escrito uma série de doutrinas a ele atribuídas. Mas tais doutrinas frequentemente não concordam entre si e, por vezes, até se contradizem.

Aristófanes caricatura um Sócrates que, como vimos, não é o de sua maturidade última.

Na maior parte de seus diálogos, Platão idealiza Sócrates e o torna porta-voz também de suas próprias doutrinas: desse modo, é dificílimo estabelecer o que é efetivamente de Sócrates nesses textos e o que, ao contrário, representa repensamentos e reelaborações de Platão.

Em seus escritos socráticos, Xenofonte apresenta um Sócrates de dimensões reduzidas, com traços que às vezes beiram até mesmo a banalidade (certamente, seria impossível que os atenienses tivessem motivos para condenar à morte um homem como o Sócrates descrito por Xenofonte).

Aristóteles fala de Sócrates ocasionalmente. Entretanto, suas afirmações são consideradas mais objetivas. Mas Aristóteles não foi contemporâneo de Sócrates. Pôde ter-se documentado sobre o que registra, mas faltou-lhe o contato direto com o personagem, contato que, no caso de Sócrates, revela-se insubstituível.

Por fim, os vários Socráticos, fundadores das assim chamadas “Escolas socráticas menores”, deixaram pouco, e esse pouco lança luz apenas sobre um aspecto parcial de Sócrates.

Desse modo, alguns chegaram a sustentar a tese da impossibilidade de reconstruir a figura “histórica” e o pensamento efetivo de Sócrates. Por alguns lustros as pesquisas socráticas caíram em séria crise. Mas hoje está abrindo caminho, não o critério da escolha entre as várias fontes ou de sua combinação eclética, mas sim o critério que pode ser definido como “a perspectiva do antes e depois de Sócrates”.

Expliquemos melhor. A partir do momento em que Sócrates atua em Atenas, pode-se constatar que a literatura em geral, e particularmente a filosófica, registram uma série de novidades de porte bastante considerável, que depois, no âmbito do helenismo, permaneceriam como aquisições irreversíveis e pontos de referência constantes.

Mas há mais: as fontes a que nos referimos (e também outras fontes, além das mencionadas) concordam na indicação de Sócrates como o autor de tais novidades, seja de modo explícito, seja implícito. Assim, podemos creditar a Sócrates, com elevado grau de probabilidade, as doutrinas que a cultura grega recebeu no momento em que Sócrates atuava em Atenas e que os nossos documentos a ele creditam. Relida com base nesse critério, a filosofia socrática revela ter exercido peso tal no desenvolvimento do pensamento grego, e do pensamento ocidental em geral, que pode ser comparada a uma verdadeira revolução espiritual.

2. A descoberta da essência do homem - (o homem é a sua psyché)

Depois de um período de tempo ouvindo a palavra dos últimos Naturalistas, mas sem se considerar de modo algum satisfeito, como já dissemos, Sócrates concentrou definitivamente seu interesse na problemática do homem. Procurando resolver os problemas do “princípio” e da physis, os Naturalistas se contradisseram a ponto de sustentar tudo e o contrário de tudo (o ser é uno, o ser é múltiplo; nada se move, tudo se move; nada se gera nem se destrói, tudo se gera e tudo se destrói), o que significa que se propuseram problemas insolúveis para o homem. Conseqüentemente, Sócrates se concentrou no homem, como os Sofistas, mas, ao contrário deles, soube chegar ao fundo da questão, a ponto de admitir, malgrado sua afirmação geral de não-saber (da qual falaremos adiante), que era sábio nessa matéria: “Na verdade, atenienses, por nenhuma outra razão eu granjeei este nome senão por causa de certa sabedoria. E que sabedoria é essa? Essa sabedoria é precisamente a sabedoria humana (ou seja, a sabedoria que o homem pode ter sobre o homem), e pode ser que, dessa sabedoria, eu seja realmente sábio.”

Os Naturalistas procuraram responder à seguinte questão: “O que é a natureza ou a realidade última das coisas?” Sócrates, ao contrário, procura responder à questão: “O que é a natureza ou realidade última do homem?”, ou seja: “O que é a essência do homem?”. A resposta é, finalmente, precisa e inequívoca: o homem é a sua alma, enquanto é precisamente sua alma que o distingue especificamente de qualquer outra coisa. E por “alma” Sócrates entende a nossa razão e a sede de nossa atividade pensante e eticamente operante. Em poucas palavras: para Sócrates a alma é o eu consciente, ou seja, a consciência e a personalidade intelectual e moral conseqüentemente, com essa descoberta, como foi justamente salientado, Sócrates criou a tradição moral e intelectual sobre a qual a Europa espiritualmente se construiu.

É evidente que, se a essência do homem é a alma, cuidar de si mesmo significa cuidar da própria alma mais do que do corpo. E ensinar os homens a cuidarem da própria alma é a tarefa suprema do educador, precisamente a tarefa que Sócrates considera ter recebido de Deus, como se lê na Apologia: “Que esta (...) é a ordem de Deus; e estou persuadido de que não há para vós maior bem na cidade do que esta minha obediência a Deus. Na verdade, não é outra coisa o que faço nestas minhas andanças a não ser persuadir a vós, jovens e velhos, de que não deveis cuidar do corpo, nem das riquezas, nem de qualquer outra coisa antes e mais do que da alma, de modo que ela se torne ótima e virtuosíssima; e de que não é das riquezas que nasce a virtude, mas da virtude nascem a riqueza e todas as outras coisas que são bens para os homens, tanto individualmente para os cidadãos como para o Estado.”

Um dos raciocínios fundamentais de Sócrates para provar essa tese é o seguinte: uma coisa é o “instrumento” que se usa e outra é o “sujeito” que usa o instrumento. Ora, o homem usa o próprio corpo como instrumento, o que significa que o sujeito, que é o homem, e o instrumento, que é o corpo, são coisas distintas. Assim, à pergunta “o que é o homem?”, não se pode responder que é o seu corpo, mas sim que é “aquilo que se serve do corpo”. Mas “o que se serve do corpo é a psyché, a alma (= a inteligência)”, de modo que a conclusão é inevitável: “A alma nos ordena conhecer aquele que nos adverte: Conhece a ti mesmo.” Sócrates levou esta sua doutrina a tal ponto de consciência e de reflexão crítica que chegou a deduzir todas as conseqüências que logicamente dela brotam, como veremos.

3. O novo significado de “virtude” e o novo quadro dos valores

Aquilo que hoje chamamos de “virtude” os gregos denominavam areté, significando aquilo que torna uma coisa boa e perfeita naquilo que é; ou, melhor ainda, areté significa a atividade ou modo de ser que aperfeiçoa cada coisa, fazendo-a ser aquilo que deve ser. (Os gregos, portanto, falavam de virtude dos vários instrumentos, de virtude dos animais etc. Por exemplo: a “virtude” do cão é a de ser um bom guardião, a do cavalo é a de correr velozmente e assim por diante.) Conseqüentemente, a “virtude” do homem outra não pode ser senão aquilo que faz com que a alma seja tal como sua natureza determina que seja, isto é, boa e perfeita. E, segundo Sócrates, esse elemento é a “ciência” ou o “conhecimento”, ao passo que o “vício” seria a privação de ciência ou de conhecimento, ou seja, a “ignorância”.

Desse modo, Sócrates opera uma revolução no tradicional quadro de valores. Os verdadeiros valores não são os ligados às coisas exteriores, como a riqueza, o poder, a fama, e tampouco os ligados ao corpo, como a vida, o vigor, a saúde física e a beleza, mas somente os valores da alma, que se resumem, todos, no “conhecimento”. Naturalmente, isso não significa que todos os valores tradicionais tornam-se necessariamente “desvalores”; significa, simplesmente, que “em si mesmos não têm valor”. Tornam-se ou não valores somente se forem usados como o “conhecimento” exige, ou seja, em função da alma e de sua areté; em si mesmos, nem uns nem outros têm valor.

4. Os paradoxos da ética socrática

A tese socrática que apresentamos implicava duas consequências, que foram logo consideradas como “paradoxos”, mas que são muito importantes e devem ser oportunamente clarificadas.

1) A virtude (cada uma e todas as virtudes: sabedoria, justiça, fortaleza, temperança) é ciência (conhecimento), e o vício (cada um e todos os vícios) é ignorância.

2) Ninguém peca voluntariamente; quem faz o mal, fá-lo por ignorância do bem.

Essas duas proposições resumem tudo o que foi denominado “intelectualismo socrático”, enquanto reduzem o bem moral a um dado de conhecimento, uma vez que se considera impossível conhecer o bem e não fazê-lo. O intelectualismo socrático influenciou todo o pensamento grego, a ponto de tornar-se quase um mínimo denominador comum de todos os sistemas, seja na época clássica, seja na época helenística. Entretanto, malgrado seu excesso, as duas proposições enunciadas contêm algumas instâncias muito importantes.

1) Em primeiro lugar, cabe destacar a forte carga sintética da primeira proposição. Com efeito, a opinião corrente entre os gregos antes de Sócrates (até mesmo a dos Sofistas, que, no entanto, pretendiam ser “mestres da virtude”) considerava as diversas virtudes como uma pluralidade (uma coisa é a “justiça”, outra a “santidade”, outra a “prudência”, outra a “temperança”, outra a “sabedoria”), mas da qual não sabiam captar o nexo essencial, ou seja, aquele algo que faz com que as diversas virtudes sejam uma unidade (algo que faça precisamente com que todas e cada uma sejam “virtudes”). Além disso, todos viam as diversas virtudes como coisas fundadas nos hábitos, no costume e nas convenções aceitas pela sociedade. Sócrates, no entanto, tenta submeter a vida humana e os seus valores ao domínio da razão. E como, para ele, a própria natureza do homem é sua alma, ou seja, a razão, e as virtudes são aquilo que aperfeiçoa e concretiza plenamente a natureza do homem, ou seja, a razão, então é evidente que as virtudes revelam-se como uma forma de ciência e de conhecimento, precisamente porque são a ciência e o conhecimento que aperfeiçoam a alma e a razão, como já dissemos.

2) Mais complexas são as motivações que estão na base do segundo paradoxo. Sócrates, porém, viu muito bem que o homem, por sua natureza, procura sempre seu próprio bem e que, quando faz o mal, na realidade não o faz porque se trate do mal, mas porque espera daí extrair um bem. Dizer que o mal é “involuntário” significa que o homem engana-se ao esperar dele um bem e que, na realidade, está cometendo um erro de cálculo e, portanto, se enganando. Ou seja, em última análise é vítima de “ignorância”.

Ora, Sócrates tem perfeitamente razão quando diz que o conhecimento é condição necessária para fazer o bem (porque, se não conhecermos o bem, não poderemos fazê-lo), mas engana-se ao considerar que, além de condição necessária, seja também condição suficiente. Em suma, Sócrates cai em excesso de racionalismo. Com efeito, para fazer o bem também é necessário o concurso da “vontade”. Mas os filósofos gregos não detiveram sua atenção na “vontade”, que se tornaria central e essencial na ética dos cristãos. Para Sócrates, por conseguinte, é impossível dizer “vejo e aprovo o melhor, mas no agir me atenho ao pior”, porque quem vê o melhor necessariamente também o faz. Em conseqüência, para Sócrates, como para quase todos os filósofos gregos, o pecado se reduz a um “erro de cálculo”, a um “erro de razão”, justamente a “ignorância” do verdadeiro bem.

5. A descoberta socrática do conceito de liberdade

A mais significativa manifestação da excelência da psyché ou razão humana se dá naquilo que Sócrates denominou de “autodomínio” (enkráteia), ou seja, no domínio de si mesmo nos estados de prazer, dor e cansaço, no urgir das paixões e dos impulsos: “Considerando o autodomínio como a base da virtude, cada homem deveria procurar tê-lo.” Substancialmente, o autodomínio significa domínio da própria racionalidade sobre a própria animalidade, significa tornar a alma senhora do corpo e dos instintos ligados ao corpo. Conseqüentemente, podemos compreender perfeitamente que Sócrates tenha identificado expressamente a liberdade humana com esse domínio da racionalidade sobre a animalidade. O verdadeiro homem livre é aquele que sabe dominar seus instintos, o verdadeiro homem escravo é aquele que, não sabendo dominar seus instintos, torna-se vítima deles. Estreitamente ligado a esse conceito de autodomínio e de liberdade encontra-se o conceito de “autarquia”, isto é, de “autonomia”. Deus não necessita de nada, e o sábio é aquele que mais se aproxima desse estado, sendo portanto aquele que procura ter necessidade apenas de muito pouco. Com efeito, para o sábio que vence os instintos e elimina todas as coisas supérfluas, basta a razão para viver feliz. Como justamente ressaltou-se, estamos aqui diante de uma nova concepção de herói. O herói, tradicionalmente, era aquele que é capaz de vencer todos os inimigos, os perigos, as adversidades e o cansaço externos. Já o novo herói é aquele que sabe vencer os inimigos interiores, que se lhe aninham na alma.

6. O novo conceito de felicidade

A maior parte dos filósofos gregos, e justamente a partir de Sócrates, apresentou ao mundo sua mensagem como mensagem de felicidade. Em grego, “felicidade” se diz “eudaimonía ”, que, originalmente, significava ter tido a sorte de possuir um demônio-guardião bom e favorável, que garantia boa sorte e vida próspera e agradável. Mas os Pré-socráticos já haviam interiorizado esse conceito. Heráclito escrevia que “o caráter moral é o verdadeiro demônio do homem” e que “a felicidade é bem diferente dos prazeres”, ao passo que Demócrito dizia que “não se tem a felicidade nos bens exteriores” e que “a alma é a morada de nossa sorte”.

Com base nas premissas que ilustramos, o discurso de Sócrates aprofunda e fundamenta esses conceitos de modo sistemático. A felicidade não pode vir das coisas exteriores, do corpo, mas somente da alma, porque esta e só esta é a sua essência. E a alma é feliz quando é ordenada, ou seja, virtuosa. Diz Sócrates: “Para mim, quem é virtuoso, seja homem ou mulher, é feliz, ao passo que o injusto e malvado é infeliz”. Assim como a doença e a dor física são desordem do corpo, a saúde da alma é ordem da alma, e essa ordem espiritual ou harmonia interior é a felicidade.

Dessa forma, segundo Sócrates, o homem virtuoso entendido nesse sentido “não pode sofrer nenhum mal, nem na vida, nem na morte”. Nem na vida, porque os outros podem danificar-lhe os haveres ou o corpo, mas não arruinar-lhe a harmonia interior e a ordem da alma. Nem na morte, porque, se existe um além, o virtuoso será premiado; se não existe, ele já viveu bem no aquém, e o além é como um ser no nada. De qualquer forma, Sócrates possuía firme convicção de que a virtude já tem o seu prêmio em si mesma, isto é, intrinsecamente. Portanto, vale a pena ser virtuoso, porque a própria virtude já constitui um fim. E, sendo assim, para Sócrates o homem pode ser feliz nesta vida, quaisquer que sejam as circunstâncias em que lhe cabe viver e seja qual for a situação no além. O homem é o verdadeiro artífice de sua própria felicidade ou infelicidade.

7. A revolução da “não-violência”

Muitíssimo se discutiu sobre as razões que levaram Sócrates à condenação. Do ponto de vista jurídico, está claro que os crimes que lhe foram imputados procediam. Ele “não acreditava nos deuses da cidade” porque acreditava num Deus superior, e “corrompia os jovens” porque lhes ensinava essa doutrina. Entretanto, depois de se ter defendido corajosamente no tribunal, tentando demonstrar que estava com a verdade, mas não tendo conseguido convencer os juizes, aceitou a condenação e recusou-se a fugir do cárcere, apesar dos amigos terem organizado tudo para a sua fuga. Suas motivações eram exemplares: a fuga teria significado violação do veredito e, portanto, violação da lei. A verdadeira arma de que o homem dispõe é a sua razão e, portanto, a persuasão. Se, fazendo uso da razão, o homem não consegue alcançar seus objetivos com a persuasão, então deve conformar-se, porque, como tal, a violência é coisa ímpia. Platão põe na boca de Sócrates: “Não se deve desertar, nem retirar-se, nem abandonar o posto, mas sim, na guerra, no tribunal e em qualquer lugar, é preciso fazer aquilo que a pátria e a cidade ordenam, ou então persuadi-las em que consiste a justiça, ao passo que fazer uso da violência é coisa ímpia”. E Xenofonte escreve: “Preferiu morrer, permanecendo fiel à lei, a viver, violando-a”.

Ao dotar Atenas de leis, Sólon já proclamara em alta voz: “Não quero valer-me da violência da tirania”, mas sim da justiça. Mas a posição assumida por Sócrates foi ainda mais importante. Com ele, além de ser explicitamente teorizada, a concepção da revolução da não-violência foi demonstrada até com a própria morte, sendo desse modo transformada em “conquista para sempre”.

8. A teologia socrática

E qual era a concepção de Deus que Sócrates ensinava, a ponto de oferecer a seus inimigos o pretexto para condená-lo à morte, já que era contrária aos “deuses em que a cidade acreditava”? Era a concepção indiretamente preparada pelos filósofos naturalistas, culminando no pensamento de Anaxágoras e de Diógenes de Apolônia: o Deus-inteligência ordenadora. Sócrates, porém, desliga essa concepção dos pressupostos próprios desses filósofos (sobretudo de Diógenes), “desfisicizando-a” e deslocando-a para um plano o mais possível afastado dos pressupostos próprios da “filosofia da natureza” anterior.

Sobre esse tema, pouco sabemos por Platão, ao passo que Xenofonte nos informa amplamente. Eis o raciocínio registrado nos Memorabilia, que constitui a primeira prova racional da existência de Deus que chegou até nós e que constituirá a base de todas as provas posteriores.

a) Aquilo que não é simples obra do acaso, mas constituído para alcançar um objetivo e um fim, pressupõe uma inteligência que o produziu por razões evidentes. Ademais, observando particularmente o homem, notamos que cada um e todos os seus órgãos estão constituídos de tal modo que não podem ser absolutamente explicáveis como obra do acaso, mas apenas como obra de uma inteligência que idealizou expressamente essa constituição.

b) Contra esse argumento, poder-se-ia objetar que, ao contrário dos artífices terrenos, que podem ser vistos ao lado de suas obras, essa Inteligência não se vê. Todavia — observa Sócrates — tal objeção não se sustenta, porque nossa alma (= inteligência) também não se vê e, mesmo assim, ninguém ousa afirmar que, pelo fato de a alma (= inteligência) não ser vista, também não existe, e que fazemos ao acaso (= sem inteligência) tudo o que fazemos.

c) Por fim, segundo Sócrates, é possível estabelecer, com base nos privilégios que o homem tem em relação a todos os outros seres (como, por exemplo, a estrutura física mais perfeita e, sobretudo, a posse de alma e de inteligência), que o artífice divino cuidou do homem de modo inteiramente particular.

Como se vê, o argumento gira em torno deste núcleo central: o mundo e o homem são constituídos de tal modo (ordem, finalidade) que apenas uma causa adequada (ordenadora, finalizante e, portanto, inteligente) pode explicá-los. E, com sua ironia, Sócrates lembrava àqueles que rejeitavam esse raciocínio que nós possuímos parte de todos os elementos que estão presentes em grandes massas no universo, coisa que ninguém ousa negar; como então poderíamos pretender que nós, homens, nos assenhoreássemos de toda a inteligência que existe, não podendo haver nenhuma outra inteligência fora de nós? E evidente a incongruência lógica dessa pretensão.

O Deus de Sócrates, portanto, é a inteligência que conhece todas as coisas sem exceção, e é atividade ordenadora e Providência. E uma Providência, porém, que se ocupa do mundo e dos homens em geral, como também do homem virtuoso em particular (para a mentalidade antiga, o semelhante tem comunhão com o semelhante, razão pela qual Deus tem comunhão estrutural com o bom), mas não do homem individualmente enquanto tal (e menos ainda do homem mau). Somente no pensamento cristão é que surgiria uma Providência que se ocupa com o indivíduo enquanto tal.

9. O “daimónion” socrático

Entre as acusações contra Sócrates estava também a de que era culpado “de introduzir novos daimónia”, novas entidades divinas. Na Apologia Sócrates diz, a propósito da questão: “A razão (...) é aquela que muitas vezes e em diversas circunstâncias ouvistes dizer, ou seja, que em mim se verifica algo de divino e demoníaco, precisamente aquilo que Melito (o acusador), jocosamente, escreveu no seu ato de acusação: é como uma voz que se faz ouvir dentro de mim desde quando era menino e que, quando se faz ouvir, sempre me impede de fazer aquilo que estou a ponto de fazer, mas que nunca me exorta a fazer.”

O daimónion socrático era, portanto, “uma voz divina” que lhe vetava determinadas coisas: ele o interpretava como espécie de sortilégio, que o salvou várias vezes dos perigos ou de experiências negativas.

Os estudiosos ficaram muito perplexos diante desse daimónion, e as exegeses que dele foram propostas são as mais díspares. Alguns pensaram que Sócrates estivesse ironizando, outros falaram de voz da consciência, outros do sentimento que perpassa o gênio. E até se poderia incomodar a psiquiatria para entender a “voz divina” como fato patológico ou então interpelar as categorias da psicanálise. Mas é claro que, assim fazendo, caímos no arbítrio.

Se quisermos nos limitar aos fatos, devemos dizer o que segue.

Em primeiro lugar, deve-se destacar que o daimónion nada tem a ver com o campo das verdades filosóficas. Com efeito, a “voz divina” interior não revela em absoluto a Sócrates a “sabedoria humana” de que ele é portador, nem qualquer das propostas gerais ou particulares de sua ética. Para Sócrates, os princípios filosóficos extraem sua validade do logos e não da revelação divina.

Em segundo lugar, Sócrates não relacionou com o daimónion nem mesmo sua opção moral de fundo, que, no entanto, considera provir de uma ordem divina. O daimónion não lhe “ordenava”, mas lhe “vetava”.

Excluídos os campos da filosofia e da opção ética de fundo, resta apenas o campo dos eventos e ações particulares. É exatamente a esse campo que se referem todos os textos à disposição sobre o daimónion socrático. Trata-se, portanto, de um fato que diz respeito ao indivíduo Sócrates e aos acontecimentos particulares de sua existência: era um “sinal” que, como dissemos, o impedia de fazer coisas particulares que lhe teriam acarretado prejuízos. A coisa da qual o afastou mais firmemente foi a participação ativa na vida política.

Em suma, o daimónion é algo que diz respeito à personalidade excepcional de Sócrates, devendo ser posto no mesmo plano de certos momentos de concentração muito intensa, bastante próximos aos arrebatamentos de êxtase em que Sócrates mergulhava algumas vezes e que duravam longamente, coisa da qual nossas fontes falam expressamente. Portanto, o daimónion não deve ser relacionado com o pensamento e a filosofia de Sócrates: ele próprio manteve as duas coisas distintas e separadas — e o mesmo deve fazer o intérprete.

10. O método dialético de Sócrates e sua finalidade

O método e a dialética de Sócrates também estão ligados à sua descoberta da essência do homem como psyché, porque tendem de modo consciente a despojar a alma da ilusão do saber, curando-a dessa maneira a fim de torná-la idônea a acolher a verdade. Assim, as finalidades do método socrático são fundamentalmente de natureza ética e educativa, e apenas secundária e mediatamente de natureza lógica e gnosiológica.

Em suma: dialogar com Sócrates levava a um “exame da alma” e a uma prestação de contas da própria vida, ou seja, a um “exame moral”, como bem destacavam seus contemporâneos. Podemos ler em um testemunho platônico: “Quem quer que esteja próximo de Sócrates e em contato com ele para raciocinar, qualquer que seja o assunto tratado, é arrastado pelas espirais do discurso e inevitavelmente forçado a seguir adiante, até ver-se prestando contas de si mesmo, dizendo inclusive de que modo vive e de que modo viveu. E, uma vez que se viu assim, Sócrates não mais o deixa”.

E precisamente a esse “prestar contas da própria vida”, que era o fim específico do método dialético, é que Sócrates atribui a verdadeira razão que lhe custou a vida: para muitos, calar Sócrates pela morte significava libertar-se de ter que “desnudar a própria alma”. Mas o processo posto em movimento por Sócrates já se tornara irreversível. A supressão física de sua pessoa não podia mais, de modo algum, deter esse processo.

E agora que estabelecemos a finalidade do “método” socrático, devemos identificar sua estrutura.

A dialética de Sócrates coincide com o seu próprio dialogar (diálogos), que consta de dois momentos essenciais: a “refutação” e a “maiêutica”. Ao fazê-lo, Sócrates valia-se da máscara do “não saber” e da temida arma da “ironia”. Cada um desses pontos deve ser adequadamente compreendido.

11. O “não saber” socrático

Os Sofistas mais famosos relacionavam-se com os ouvintes na soberba atitude de quem sabe tudo. Sócrates, ao contrário, colocava-se diante dos interlocutores na atitude de quem não sabe e de quem tem tudo a aprender. O que tem uma ampla ligação sobre a idéia de Verdade como sendo algo que os sábios possuiam, mas não se davam ao luxo de se auto questionarem, estavam como Sócrates dizia: “Já nascidos, impassíveis de fazer nascer”.

O significado da afirmação do não-saber socrático pode ser avaliado mais exatamente se, além de relacioná-lo com o saber dos homens, o relacionarmos também com o saber de Deus. Como veremos, para Sócrates Deus é onisciente, e seu conhecimento estende-se do universo ao homem, sem qualquer espécie de restrição. Ora, é precisamente quando comparado com a estatura desse saber divino que o saber humano mostra-se em toda a sua fragilidade e pequenez. E, nessa ótica, não apenas aquele saber ilusório de que falamos, mas também a própria sabedoria humana socrática revela-se um não-saber.

De resto, na Apologia, interpretando a sentença do Oráculo de Delfos, segundo o qual ninguém era mais sábio do que Sócrates, o próprio Sócrates explicita esse conceito: “Unicamente Deus é sábio. E é isso o que ele quer significar em seu oráculo: a sabedoria do homem pouco ou nada vale. Considerando Sócrates como sábio, não quer se referir, creio eu, propriamente a mim, Sócrates, mas somente usar o meu nome como um exemplo. E quase como se houvesse querido dizer: ‘Homens, é sapientíssimo dentre vós aquele que, como Sócrates, tiver reconhecido que, na verdade, sua sabedoria não tem valor.’ ”. Ou seja, somente é sábio aquele que sabe os limites da sua sabedoria.

A contraposição entre “saber divino” e “saber humano” era uma das antíteses muito caras a toda a sabedoria proveniente da Grécia e que Sócrates, portanto, volta a reafirmar. Por fim, devemos salientar o poderoso efeito irônico de benéfico abalo que o princípio do não-saber provocava nas relações com o interlocutor: provocava o atrito do qual brotava a centelha do diálogo.

12. A ironia socrática

A ironia é a característica peculiar da dialética socrática, não apenas do ponto de vista formal, mas também do ponto de vista substancial. Em geral, ironia significa “simulação”. Em nosso caso específico, indica o jogo brincalhão, múltiplo e variado das ficções e dos estratagemas realizados por Sócrates para levar o interlocutor a dar conta de si mesmo.

Em suma: a brincadeira está sempre em função de um objetivo sério e, portanto, é sempre metódica.

Note-se que, às vezes, em suas simulações irônicas, Sócrates fingia até mesmo acolher como próprios os métodos do interlocutor, especialmente quando este era homem de cultura, particularmente um filósofo, e brincava de engrandecê-los até o limite da caricatura, para derrubá-los com a mesma lógica que lhes era própria e amarrá-los na contradição.

Todavia, sob as várias máscaras que Sócrates seguidamente assumia, eram sempre visíveis os traços da máscara essencial, a do não-saber e da ignorância, de que falamos: podemos até dizer que, no fundo, as máscaras policromáticas da ironia socrática eram variantes da máscara principal, as quais, com hábil e multiforme jogo de dissolvências, no fim das contas sempre revelavam a principal. Restam ainda por esclarecer os dois momentos da “refutação” e da “maiêutica”, que são os momentos constitutivos estruturais da dialética.

13. A “Refutação” e “maiéutica” Socráticas

A “refutação” (élenchos) constituía, em certo sentido, a pars destruens do método, ou seja, o momento em que Sócrates levava o interlocutor a reconhecer sua própria ignorância. Primeiro, ele forçava uma definição do assunto sobre o qual a investigação versava; depois, escavava de vários modos a definição fornecida, explicitava e destacava as carências e contradições que implicava; então, exortava o interlocutor a tentar nova definição, criticando-a e refutando-a com o mesmo procedimento; e assim continuava procedendo, até o momento em que o interlocutor se declarava ignorante.

É evidente que a discussão provocava irritação ou reações ainda piores nos sabichões e nos medíocres. Nos melhores, porém, a refutação provocava efeito de purificação das falsas certezas, ou seja, um efeito de purificação da ignorância, a tal ponto que Platão podia escrever a respeito: “(...) Por todas essas coisas, (...) devemos afirmar que a refutação é a maior, a fundamental purificação. E quem dela não se beneficiou, mesmo tratando-se do Grande Rei, não pode ser pensado senão como impuro das mais graves impurezas, privado de educação e até mesmo feio, precisamente naquelas coisas em relação às quais conviria que fosse purificado e belo no máximo grau, alguém que verdadeiramente quisesse ser homem feliz.”

E, assim, passamos ao segundo momento do método dialético. Para Sócrates, a alma pode alcançar a verdade apenas “se dela estiver grávida”. Com efeito, como vimos, ele se professava ignorante e, portanto, negava firmemente estar em condições de transmitir um saber aos outros ou, pelo

menos, um saber constituído por determinados conteúdos. Mas, da mesma forma que a mulher que está grávida no corpo tem necessidade da parteira para dar à luz, também o discípulo que tem a alma grávida de verdade tem necessidade de uma espécie de arte obstétrica espiritual, que ajude essa verdade a vir à luz, e essa é exatamente a “maiêutica” socrática.

14. Sócrates e a fundação da logica

Durante muito tempo, considerou-se que Sócrates, com seu método, descobrira os princípios fundamentais da lógica do Ocidente, ou seja, o conceito, a indução e a técnica do raciocínio. Hoje, entretanto, os estudiosos mostram-se muito mais cautelosos. Sócrates pôs em movimento o processo que levaria à descoberta da lógica, contribuindo de modo determinante para essa descoberta, mas ele próprio não a alcançou de modo reflexo e sistemático.

A pergunta “o que é?”, com que Sócrates martelava seus interlocutores, como hoje se vai reconhecendo sempre mais no plano dos estudos especializados, não implicava já um ganho do conceito universal com todas as implicações lógicas que este pressupõe. Efetivamente, com sua pergunta, ele queria pôr em movimento todo o processo irônico-maiêutico, sem querer em absoluto chegar a definições lógicas. Sócrates abriu o caminho que deveria levar à descoberta do conceito e da definição e, antes ainda, à descoberta da essência platônica, e exerceu também notável impulso nessa direção, mas não estabeleceu a estrutura do conceito e da definição, visto que lhe faltavam muitos dos instrumentos necessários para esse objetivo, e estes, como dissemos, foram descobertas posteriores (platônicas e aristotélicas).

A mesma observação vale a propósito da indução, que Sócrates, sem dúvida, aplicou amplamente, com o seu constante levar o interlocutor do caso particular à noção geral, valendo-se sobretudo de exemplos e analogias, mas que não identificou em nível teorético e, portanto, não teorizou de modo reflexo. De resto, a expressão “raciocínio indutivo” não só não é socrática, mas, propriamente, nem mesmo platônica: ela é tipicamente aristotélica, pressupondo todas as aquisições dos Analíticos.

Em conclusão, Sócrates foi de um formidável engenho lógico, mas, em primeira pessoa, não chegou a elaborar uma lógica em nível técnico. Em sua dialética encontramos os germes de futuras descobertas lógicas importantes, mas não descobertas lógicas enquanto tais, conscientemente formuladas e tecnicamente elaboradas.

E assim se explicam os motivos pelos quais as diferentes Escolas socráticas encaminharam-se para direções tão diversas: alguns seguidores concentraram-se exclusivamente nas finalidades éticas, desprezando as implicações lógicas; outros, como Platão, desenvolveram exatamente as implicações lógicas e ontológicas; já outros escavaram no aspecto dialético até mesmo as nervuras erísticas, como veremos.

O método de Sócrates: ironia-refutação e maiêutica

O método de Sócrates tem como marca de Fundo o ironia, que indica o jogo múltiplo e variado de disfarces e Ficções que ele utilizo para Forçar o interlocutor a perceber a si mesmo em todos os sentidos.

Por trás das várias máscaras que ele pouco a pouco assumia eram sempre bem visíveis os traços da máscara principal do não saber e da ignorância. Poder-se-io também dizer que, em certo sentido, as Figuras policromos da ironia socrática são substancialmente variantes desta principal, e que com um multiforme jogo de dissolvências encabeçam esta. Era justamente isso que deixava Furiosos muitos de seus interlocutores: a máscara da ignorância que Sócrates assumia era o meio mais eFicaz paro desmascarar o aparente saber dos outros e paro revelar suo ignorância, ou seja, paro refutá-los.

Para ilustrar o efeito que provocava este momento essencial do método socrático citamos a passagem do bonachão EutiFrônio, que comparava Sócrates ao Dédalo que Faz girar todas as definições e não deixo que nenhuma permaneça Firme.

Ao momento refutatório-irônico seguia o momento maiêutico.

Sócrates, professando-se ignorante, negava resolutamente estar em grau de comunicar um saber aos outros. Ele afirmava ter ao contrário outra capacidade que se assemelhava, no plano espiritual, à arte que sua mãe, obstetra, exercia. E esta é justamente o “maiêutico” de Sócrates.

Apassagem do Teeteto que citamos é esplêndida descrição em todos os particulares desta celebrada arte socrática e, por tal motivo, tornou-se Famosíssima.

O momento refutatório-irônico

Eutifrônio — Sócrates, não sei mais como dizer-te o que tenho em mente: qualquer definição que propomos nos gira, não sei como, sempre ao redor, e não quer permanecer firme no lugar em que a colocamos.

ócrates — as definições que deste, Eutifrônio, parecem assemelhar-se às obras do meu progenitor Dédalo. €, caso eu formulasse e propusesse tais definições, talvez pudesses ridicularizar-me, como se, por causa do parentesco que tenho com ele, minhas obras feitas de palavras escapassem e não quisessem permanecer firmes no lugar em que as colocamos. Ora, ao contrário, os definições propostas são tuas. Por isso, esta imagem brincalhona não convém ao teu caso: com efeito, não querem permanecer firmes para ti, como tu próprio confessas.

Eutifrónio — Sócrates, parece-me, ao contrário, que a imagem brincalhona convenha muito bem às minhas definições: com efeito, este girar delas e não querer permanecer firmes no mesmo lugar, não sou eu que o produzo, e o Dédalo me parece que sejas exatamente tu, porque, por minha vontade, permaneceriam firmes assim.

Sócrates — Então, amigo, dá-se o caso de que eu tenha me tornado mais hábil na arte do meu antepassado, a tal ponto que, enquanto ele sabia tornar móveis apenas as próprias obras, eu, como parece, além das minhas, torno móveis também as dos outros. €, sem dúvida, o que de mais notável existe na minha arte é o fato de que sou hábil sem querer. £u desejaria, de fato, que meus discursos permanecessem firmes, e que estivessem imóveis, muito mais do que desejaria as riquezas de Tôntalo acrescentadas à habilidade de Dédalo.

Platõo, EutiFrônio.

O momento maiêutico

Sócrates — é que tens as dores do parto, caro Teeteto, porque não estás vazio, mas grávido.

Teeteto — Não sei, Sócrates. Digo-te, porém, o que estou sentindo.

Sócrates — Mas então, ridículo rapaz, não ouviste dizer que sou filho de uma famosa e hábil parteira, fenarete?

Teeteto — Já ouvi dizer isso.

Sócrates — E ouviste dizer que pratico a mesma arte?

Teeteto — De modo nenhum.

Sócrates — Então, saibas que é assim. Porém não o digas aos outros. Com efeito, amigo, mantive escondido que possuo esta arte: eles, não sabendo disso, não dizem isso de mim, e sim que eu sou um homem estranhíssimo e deixo em embaraço os outros. Ouviste dizer também isto?

Teeteto — Sim.

Sócrates — Digo-te, portanto, o motivo?

Teeteto — Sim, por favor.

Sócrates — Pensa bem em tudo o que se refere à condição das parteiras, e aprenderás mais facilmente o que quero dizer. Talvez saíbos, de foto, que nenhum deles, enquanto ela própria está em grau de ser fecundada e de parir, serve como parteira para outras mulheres, mas o fazem aquelas que já não podem parir.

Teeteto — é exatamente assim.

Sócrates—O motivo disso, ao menos pelo que se diz, é Artemis, porque, ela que é virgem, teve como destino a proteção do parto, as mulheres estéreis, portanto, não concedeu servir como parteiras, porque a natureza humana é demasiado frágil para adquirir uma arte relativa aquilo de que não tem experiência. Confiou essa tarefa, ao contrário, às mulheres que, pela idade, no estão mais em grau de parir, para honrar sua semelhança com ela.

Teeteto — é verossímil.

Sócrates — Pois bem, também isso é verossímil, ou melhor, inevitável, que as parteiras reconheçam, mais que as outras mulheres, as que estão grávidas e as que não estão?

Teeteto — Certamente.

Sócrates— E são sempre as parteiras que, fornecendo filtros mágicos e fazendo encantamentos, conseguem estimular as dores do parto e também mitigá-las, se quiserem, fazendo parturir as gestantes em dificuldade, e fazendo abortar, se’ lhes parecer oportuno, um feto imaturo? ^

Teeteto — é verdade. .

Sócrates — Além disso, não notaste que são também habilíssimas mediadoras de núpcias, dado que sabem tudo sobre como reconhecer qual mulher com qual homem deva unir-se para gerar ótimos filhos?

Teeteto — Disso não tenho nenhum conhecimento.

Sócrates — Mas saibas que disso se vangloriam mais do que da sua habilidade em cortar o cordão umbilical. Com efeito, pensa: consideras que seja tarefa da mesma arte, ou de uma diferente, cuidar e recolher os frutos da terra e reconhecer em qual terra qual planta e qual semente devem ser colocadas?

Teeteto — Não de uma arte diferente, mas da mesma.

Sócrates — Cm relação às mulheres, amigo, pensas que seja uma a arte de semear, e outra, diferente, a de colher?

Teeteto — Não creio que seja verossímil.

Sócrates — De fato, não é. Mas, por causa do acoplamento de um homem e uma mulher sem norma e sem arte (coisa que tem o nome de ‘‘alcovitagem”), as parteiras, que são mulheres sérias, também evitam combinar núpcias justas, porque temem, por isso, incorrerem acusação, embora, ao menos conforme penso.

caiba apenas às verdadeiras parteiras também combinar núpcias de modo correto.

Teeteto — Parece.

Sócrates — Esta, portanto, é a grande tarefa das parteiras, embora inferior à minha obra. Com efeito, às mulheres nõo ocorre parturir uma vez fantasmas e outra vez filhos verdadeiros, e isto nõo é demasiado fácil de distinguir. Com efeito, se tal acontecesse, seria, para as parteiras, obra muito grande e muito bela saber julgar o que é verdadeiro e o que não é. Não achas?

Teeteto — Sim, acho.

Sócrates — Minha arte de obstetra possui todas as outras características que competem às parteiras, mas delas difere pelo fato de que serve como parteira para os homens e não para as mulheres, e se aplica a suas almas partu-rientes, não aos corpos. C existe isso de absolutamente grande na minha arte: ser capaz de pôr à prova de todo modo se o pensamento do jovem pare um fantasma e uma falsidade, ou um quê de vital e de verdadeiro. Uma vez que isso ao menos é comum a mim e às parteiras: não posso gerar sabedoria; o que muitos já me reprovaram é que eu, de fato, interrogo os outros, mas depois eu mesmo não manifesto nada sobre nenhum argumento, aduzindo como causa o meu não ser sábio em nada — reprovação que corresponde à verdade. R causa disso é esta: o deus me força a servir como parteira, mas me proibiu gerar. Quanto a mim, portanto, não sou de fato sábio em alguma coisa, nem tenho alguma descoberta sábia que seja como um filho gerado da minha alma. Os que me freqüentam, porém, primeiro alguns parecem ignorantes, e também muito, mas, depois, todos, continuando a freqüentar-me, ao menos aqueles aos quais o deus concede, fazem progressos tão extraordinários, que eles próprios percebem e também os outros. € isto é claro: de mim jamais aprenderam coisa alguma, mas são eles que, por si mesmos, descobrem e geram muitas coisas bonitas. Todavia, fomos o deus e eu que servimos para eles como parteiras. C isto o torna evidente: muitos, que antes ignoravam este fato e atribuíam todo mérito a si mesmos, desprezando a mim, ou por si mesmos ou persuadidos por outros, se afastaram de mim antes do devido tempo; mas, afastados, fizeram abortar todo o resto, por causa de um acoplamento mau, levando falsidades e fantasmas em maior conta do que a verdade, e acabando por parecer ignorantes a si mesmos e aos outros. Platão, Teeteto.

Exercícios:

1. Por que é importante saber que houve um deslocamento das discussões filosóficas dos “cosmos” para o “homem”? O que isso quer dizer?

2.Para conceituar a Teoria de Protágoras é preciso dividí-las em três partes: Homo mensura, Argumentos fortes e fracos e O Utilitarismo. Conceitue cada uma das partes.

3.Segundo Górgias para que serve a Retórica?

4.Por que a noção de alma de Sócrates é tão importante? Construa um esquema auto-explicativo.

5.Por que para Sócrates o pecado se reduz a um “erro de cálculo”, a um “erro de razão”?

6. Por que para Sócrates o autodomínio é sinal de liberdade?

7. Descreva como funcionava a técnica dialética de Sócrates do “Não saber”.

8. Descreva como funciona a técnica dialética de Sócrates da “Maiêutica”.

9. Descreva como funciona a técnica dialética de Sócrates da “Ironia-refutatória”. (Procure a definição de ironia, ou irônico no dicionário)

10. Construa um diálogo “maiêutico-irônico-refutatório” se utilizando de uma técnica indutiva.