Idéia de Culturas x Idéia de Verdades

O que é Cultura?

 

Desde a antigüidade, tem-se tentado explicar as diferenças de comportamento entre os homens, a partir das diversidades genéticas ou geográficas. As características biológicas não são determinantes das diferenças culturais: por exemplo, se uma criança brasileira for criada na França, ela crescerá como uma francesa, aprendendo a língua, os hábitos, crenças e valores dos franceses. Podemos citar, ainda, o fato de que muitas atividades que são atribuídas às mulheres numa cultura são responsabilidade dos homens em outra.

 

O ambiente físico também não explica a diversidade cultural. Por exemplo, os lapões e os esquimós vivem em ambientes muito semelhantes – os lapões habitam o norte da Europa e os esquimós o norte da América. Era de se esperar que eles tivessem comportamentos semelhantes, mas seus estilos de vida são bem diferentes. Os esquimós constróem os iglus amontoando blocos de gelo num formato de colméia e forram a casa por dentro com peles de animais. Com a ajuda do fogo, eles conseguem manter o interior da casa aquecido. Quando quer se mudar, o esquimó abandona a casa levando apenas suas coisas e constrói um novo iglu.

 

Os lapões vivem em tendas de peles de rena. Quando desejam se mudar, eles tem que desmontar o acampamento, secar as peles e transportar tudo para o novo local. Os lapões criam renas, enquanto os esquimós apenas caçam renas. Outro exemplo são as tribos de índios que habitam uma mesma área florestal e têm modos de vida bem diferentes: algumas são amigáveis, enquanto outras são ferozes; algumas alimentam-se de vegetais e sementes, outras caçam; têm rituais diferentes; etc

O comportamento dos indivíduos depende de um aprendizado, de um processo chamado endoculturação ou socialização. Pessoas de raças ou sexos diferentes têm comportamentos diferentes não em função de transmissão genética ou do ambiente em que vivem, mas por terem recebido uma educação diferenciada.

Assim, podemos concluir que é a cultura que determina a diferença de comportamento entre os homens. O homem age de acordo com os seus padrões culturais, ele é resultado do meio em que foi socializado.

 

 

Para Edward Tylor, 1871:

Cultura é o todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade.

Tylor, foi o primeiro a formular o conceito de cultura do ponto de vista antropológico da forma como é utilizado atualmente. Na verdade, ele formalizou uma idéia que vinha crescendo desde o iluminismo. John Locke, em 1690, afirmou que a mente humana era uma caixa vazia no nascimento, dotada de capacidade ilimitada de obter conhecimento, através do que hoje chamamos de endoculturação.

Tylor enfatizou a idéia do aprendizado na sua definição de cultura.

 

 

O homem é um ser predominantemente cultural. Graças à cultura, ele superou suas limitações orgânicas. O homem conseguiu sobreviver através dos tempos com um equipamento biológico relativamente simples. Um esquimó que deseje morar num país tropical, adapta-se rapidamente, ele substitui seu iglu e seus grossos casacos por um apartamento refrigerado e roupas leves – enquanto o urso polar não pode adaptar-se fora de seu ambiente.

A cultura é o meio de adaptação do homem aos diferentes ambientes. Ao invés de adaptar o seu equipamento biológico, como os animais, o homem utiliza equipamentos extra-orgânicos. Por exemplo, a baleia perdeu os membros e os pêlos e adquiriu nadadeiras para se adaptar ao ambiente marítimo. Enquanto a baleia teve que transformar-se ela mesma num barco, o homem utiliza um equipamento exterior ao corpo para navegar.

 

 

A cultura é um processo acumulativo. O homem recebe conhecimentos e experiências acumulados ao longo das gerações que o antecederam e, se estas informações forem adequada e criativamente manipuladas, permitirão inovações e invenções. Assim, estas não são o resultado da ação isolada de um gênio, mas o esforço de toda uma comunidade. Não existe um consenso, na antropologia moderna, sobre o conceito de cultura.

 

A cultura é uma lente através da qual o homem vê o mundo - pessoas de culturas diferentes usam lentes diferentes e, portanto, têm visões distintas das coisas. O fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura tem como conseqüência a propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural (isso é denominado etnocentrismo), depreciando o comportamento daqueles que agem fora dos padrões de sua comunidade – discriminando o comportamento desviante.

Comportamentos etnocêntricos resultam em apreciações negativas dos padrões culturais de povos diferentes, práticas de outros sistemas culturais são vistas como absurdas.

 

 

O etnocentrismo é um comportamento universal. É comum a crença de que a própria sociedade é o centro da humanidade. A reação oposta ao etnocentrismo é a apatia. Em lugar da superestima dos valores de sua própria sociedade, num momento de crise os indivíduos abandonam a crença naquela cultura e perdem a motivação que os mantém unidos. Por exemplo, os africanos, quando foram trazidos como escravos para uma terra estranha, com costumes e línguas diferentes, perdiam a motivação de continuar vivos e muitos praticavam suicídio.

Embora nenhum indivíduo conheça totalmente o seu sistema cultural, é necessário que o indivíduo tenha um mínimo de conhecimento da sua cultura para conviver com os outros membros da sociedade. Nenhum indivíduo é perfeitamente socializado. São estes espaços que permitem a mudança. Qualquer sistema cultural está num contínuo processo de mudança.

 

Existem dois tipos de mudança cultural: interna, resulta da dinâmica do próprio sistema cultural. Esta mudança é lenta; porém, o ritmo pode ser alterado por eventos históricos, como catástrofe ou uma grande inovação tecnológica. A mudança externa é resultado do contato de um sistema cultural com outro. Esta mudança é mais rápida e brusca. O tempo é um elemento importante na análise de uma cultura.

Assim, da mesma forma que é importante para a humanidade a compreensão das diferenças entre os povos de culturas diferentes, é necessário entender as diferenças que ocorrem dentro do mesmo sistema.

 

 

ÍNDIOS BORORO - CAXINAUÁ

Alimento do corpo - Caxinauá

Os Caxinauá vivem na bacia dos rios Juruá e Purus, nos dois lados da fronteira Brasil e Peru. Sua principal atividade é a caça e o mundo da caça faz parte de sua concepção de sociedade. A carne toma uma importância relevante a ponto de existir diferenças entre “estar faminto”, “estar faminto de carne”, e “estar faminto de sexo”.

Os Caxinauá pensam suas atividades sexuais comparando com as necessidades fisiológicas de alimentação, pois acreditam que para a formação do feto é necessário a participação de amantes e esposos tantas vezes precisas para que o sangue feminino e o sêmen se misturem e gerem vida. Isto leva a pensar que o pênis é um instrumento que conduz o alimento ao invólucro feminino e que sacia a “fome sexual”, (Lagrou, p.134).

 

O mito da descoberta do amor

 

O mito se resume nos atepassados que acreditavam que a vagina era uma ferida que somente funciona para urinar, e tentavam com ervas e curativos fechá-la, mas ao urinar abria de novo. Até que um dia, Hidi Xinu saiu para caçar e viu dos macacos copulando, e voltou para à aldeia e passou a curar todas as mulheres. Logo, de tantas iniciações de mulheres seu pênis inchou e amoleceu e Hidi Xinu morreu.

Embora o sexo não seja tabu no cotidiano Caxinauá, mocinhas ainda têm receios quanto à iniciação, (Lagrou, pp.136). O que leva a casos de xingamentos, violências físicas contra o esposo, tendo a família que interferir através de ervas e banhos medicinais para que “os desejo pelo esposo” venha.

 

 

Aije - A expressão Metafórica da Sexualidade entre os Bororo

A expressão metafórica do aije é demonstrada através de três contextos específicos: um animal mítico habitante das águas, um zunidor de madeira (objeto fabricado por eles) e uma representação ritual; que explicam suas significações de maduro/imaturo, proibido/prescrito, homem/mulher, vida/morte.

 

Aije - animal mítica das águas

O aije é relacionado a um sapo, pois conta o mito que Jokurugua (Clã dos Paiwoe) encontrou sapozinho e colocou-o numa concha com água e na medida que o bichinho foi crescendo trocava-se de vasilhame até que não cabia em mais nada. Mas o bicho não queria ficar com Jokuragua pois não tinha riquezas (diadema de plumas), então Mano Kurieu (Clã dos Aroroe) retirou o aije dos Paiwoe, e mandou que os seus se enfeitassem e fossem ver o bicho onde ele sem encontrava. Mano foi falando e tocando no bicho que começou a se mexer prá lá, pra cá, pra lá, pra cá e quando chegaram no pátio central (Bororo) o sapo gritou e falou: “Quando morrer algum de vocês, então vocês me chamam e eu venho”. E disse, segundo outros, que as mulheres e crianças não poderiam vê-lo, pois a mulher ficaria com a barriga inchada, as pernas moles e se arrastando no chão.

 

Os aije zunidores

Aije é um termo para designar, também, lâminas de madeira ornamentadas, que representam os gritos dos animais míticos ao serem agitados por meio de um cordel e presos numa vara cumprida. Segundo Keuwai o aije que mandou usar estas tabuinhas, e como devem ser passadas as ervas para ele chegar mais rápido. Este aije é utilizado nos rituais funerários que duram dois meses, mas nos últimos três dias do ritual é feita a iniciação dos jovens. E as reprsenatções do ritual iniciático é feito pelos adultos como era feito nos tempos míticos. É sempre um homem do clã dos Aroroe, da metade tugarege, que se dirige À casa dos homens para solicitar que um homem do clã dos Bokodori, da metade oposta - a dos ecerae -, vá buscar os zunidores, que estão enterrados no lodo, e neste local é chamado pela primeira vez o aije. Os zunidores são entregues a um homem do clã dos Aroroe (Baitogogo) e entoa uma canto de agradecimento. Este passa um dos zunidores para um homem Baadojeba Bakoroduku (ecerae) e leva-o pela mão até aporta da casa dos homens e se torna o dono do zuinidor.

 

O Bakorokudu dá simbólicamente o zunidor para todos seus parentes, um por um, e estes agachados imitando os aijes-bichos, recebem, agradecem e devolvem o zunidor. Os zunidores serão agora enfeitados pelos “cunhados” do clã Baadojeba (ecerae) e depois são devolvidos para Bakorokudu.

 

A representação humana do aije - o ritual

O ritual ocorre nos últimos terceiros dias do funeral Bororo. Os homens escolhidos para personificar o aije vão à uma clareira próxima à aldeia, enquanto isso no pátio central há um representante do morto dançando e ao terminá-la vai para a clareira. Um homem do clã Aroroe faz um buraco onde fica todos os zunidores, também pinta o corpo e o rosto de todos com um barro branco e preto para personificar o aije. Cada um deles segura um zunidor e segue pelo caminho que liga a clareira ao pátio onde entregam estes para seus respectivos donos que os tocam. A cerimônia termina quando um homem do clã dos Aroroe bate duas vezes no chão com uma esteria enrolada. O que permite que as mulheres e as crianças, antes em suas casas, possam se dirigir ao pátio, em alguns lugares as mulheres deixam seus filhos para receberem um sopro. E ao se afastarem os pintados de bancos se esfregavam e abraçavam em grande algazarra.

 

Associações de sentido na narrativa mítica

O aije, na verdade, é um cágado e um sapo, pois o primeiro regurgita a água desnecessária após a ingestão dos alimentos, e o segundo por possuir glândulas de veneno que é espesso e leitoso que surge ao fazer certa pressão sobre as parótidas. O que os fazem relacionar a semelhança com o esperma humano quando ejaculado, e outra é que o animal cresce (tal como o pênis) não tendo elemento - concha, tijela, panela (semelhantes a vagina) que possa detê-lo. Assim como, ambos animais gostam da água, ou que um rasteja e outro pula, ainda demonstram referência alegórica a vida sexual.

Os zunidores, pro exemplo, devem ser duros e apresenta um formato fálico, ou seja, características penianas.

 

 

OS NUER

Evans-Pritchard, E. Os Nuer. São Paulo: Perspectiva, 1978.[Capítulo I - Interesse pelo Gado]

Capítulo I: Interesse pelo Gado.

“Um povo cuja cultura material é tão simples quanto a do Nuer depende grandemente do meio ambiente. São eminentemente pastoris, (…). Algumas tribos cultivam mais, outras menias, de acordo com as condições do solo, com a água à flor da terra e com sua riqueza em gado. (…) eles são boiadeiros, e o único trabalho em que têm prazer é no cuidar do gado.” (P. 23)

“A atitude do Nuer e seu relacionamento com povos vizinhos são influenciados pelo amor ao gado e pelo desejo de adquiri-lo.” (P.23)

 

 

“Cada tribo nuer e cada seção tribal possui seus próprios pastos e reservas de água, e a cisão política relaciona-se intimamente com a distribuição desses recursos naturais, cuja propriedade geralmente vem expressada em termos de clãs e linhagens.” (P.25) “A malha de laços de parentesco que liga os membros das comunidades locais é causada pela eficácia de regras exogâmicas, frequentemente colocadas em função de gado. A união do matrimônio é realizada através do pagamento em gado e todas as fases do ritual são marcadas pela transferência ou sacrifício do mesmo. O status legal dos cônjuges e dos filhos é determinado por direitos e obrigações sobre o gado.” (P.25)

“O gado é propriedade das famílias. (…) À medida que cada filho, por ordem de idade, atinge a idade matrimonial, ele se casa retirando vacas do rebanho. O filho seguinte terá de esperar até que o rebanho atinja sua força inicial para que se possa, por sua vez, casar-se. Quando o chefe da família morre, o rebanho ainda continua como centro da vida familiar e os Nuer desaprovam vivamente o fato de desmanchá-lo.” (P.25)

 

 

“O vínculo de gado entre irmãos continua por longo tempo depois que cada um tem sua casa e seus filhos, pois quando a filha de qualquer um deles se casa, os demais recebem uma grande parte de seu dote.” (P.26)

“A importância do fado na vida e pensamento nuer é ainda mais exemplificada nos nomes próprios. Os homens são frequentemente chamados por nomes que dizem respeito à forma e cor de seus bois favoritos, e as mulheres recebem nome de bois e das vacas que elas ordenam. (…) um genealogia nuer pode parecer o inventário de um kraal. A identificação linguística de um homem com seu boi predileto não pode deixar de afetar sua atitude para com o animal, e, para os europeus, esse costume constitui a prova mais notável da mentalidade pastoril dos Nuer.” (P. 26)

“Antes do século atual, os Nuer eram muito mais ricos em gado do que são hoje e é provável que cultivassem menos sorgo. Seu rebanho foi prejudicado por repetidos surtos de peste bovina, que ainda dizima os rebanhos. (…) os Nuer são muito mais ricos em gado do que os Shilluk, mas não tão prósperos quanto as mais favorecidas tribos dinka.” (P.28)

 

 

“Casamentos e epidemias impedem a acumulação do gado e não existe disparidade na riqueza para ofender o sentimento democrático do povo.” (P. 28/29)

“Embora o gado tenha muitos usos, ele é útil principalmente pelo leite que fornece. Leite e sorgo constituem os principais alimentos do Nuer. Em alguns lugares de sua região, especialmente entre os Lou, é difícil que as reservas de sorgo durem o ano todo e, quando se esgotam, as pessoas passam a depender do leite e da pesca. (…) Aos olhos do Nuer, a situação mais feliz é aquela em que uma família possui várias vacas que dão leite (…) .” (P.29)

“(…) enquanto os laticínios ingleses precisam apenas de leite, os boiadeiros nuer precisam de leite e desejam também preservar todos os bezerros. As necessidades humanas têm de se subordinar às necessidades dos bezerros, que constituem o primeiro ponto a ser levado em consideração se se quiser perpetuar o rebanho.” (P. 32)

 

 

“(1) O número e distribuição atuais do gado não permitem que os Nuer levem uma vida inteiramente pastoril como gostariam, como é possível que tenha levado em alguma época. (…) o fornecimento diário médio de um estábulo provavelmente não passa de seis litros, ou três quartos de litro por pessoa. Uma economia mista torna-se, portanto, necessária. (2) Além do mais, a flutuação nos recursos domésticos, devida a epidemias e transmissão de riquezas de casamento, acentua-se ainda mais pelo caráter orgânico da dieta principal, uma vez que as vacas apenas produzem leite por um determinado período depois do nascimento do bezerro e o fornecimento não é constante. (…) (3) Condições do meio ambiente. ” (P. 33)

“Os Nuer também se interessam pela carne de gado, cozida ou assada. Eles não criam rebanhos para corte, porém frequentemente sacrifica-se carneiros e bois nas cerimônias. (…) Quando dos sacrifícios, as pessoas estão mais interessadas no caráter de festa do que ao caráter religioso dos ritos.” (P. 34)

“Os Nuer gostam muito de carne e declaram que, quando morre uma vaca, “os olhos e o coração ficam tristes, mas os dentes e o estômago se alegram”. “O estômago de um homem reza a Deus, independentemente de sua mente,

por tais dons.”” (P.34)

 

“Os dois aspectos seguintes parecem-nos ser significativos: (1) Embora os Nuer normalmente não mantenha seu rebanho a fim de obter alimentos, o fim de cada animal é, na verdade, a panela, de modo que eles obtêm carne bastante para satisfazerem sua vontade de comê-la e não sentem maiores necessidades de caçar animais selvagens, atividades a que pouco se dedicam. (2) Exceto quando grassam as epidemias, as ocasiões normais de comer carne são rituais e é o caráter festivo dos ritos que lhes dá muito de suas significação para a vida do povo.” (P.36)

“ (…) a cultura material dos Nuer é tão simples que ela explica uma parte considerável de sua tecnologia e contém itens dos quais os Nuer são altamente dependentes, por exemplo, o uso do esterco como combustível em uma região em que é difícil se obter bastante combustível vegetal para cozinhar, (…)” (P.38)

“(…) os Nuer preocupam-se diretamente com o gado produtor de dois artigos essenciais para a alimentação: leite e carne.” (P. 38)

 

 

 

“(…) dificuldade mais evidentes e algumas observações gerais sobre a habilidade dos Nuer.” (P. 40)

“ 1. Uma vez que as vacas não são trazidas de volta aos krals ao meio-dia, os bezerros menores têm de passar sem alimentação. (…) Os Nuer percebem que o calor e a fumaça dos estábulos não fazem bem ao gado, mas consideram que os mosquitos são ainda piores.” (P.40)

“ 2. Um europeu observa imediatamente que a condição da água potável na estação seca deixa muito a desejar, especialmente quando é ele mesmo que tem de bebê-la. (…) Ao mudarem o acampamento, eles têm de levar em consideração uma série de qualidade necessárias: pastos, peixes, a colheita da Balanitesaegyptiaca, a segunda colheita de sorgo, etc., além da condição em que se encontra a água.” (P. 40)

“ 3. Ao contrário de algumas tribos da África Oridental, os Nuer não mantêm um número muito elevado de animais reprodutores.” (P. 40)

“ 4. As vitelas não são cobertas senão quando têm três anos. Os Nuer sabem quando uma vaca está no cio pelo comportamento dela no kraal: fica inquieta, muge, agita e cauda, cheira as vulvas de outras vacas e tenta montá-las.” (P.40)

 

 

“Teremos oportunidade de observar mais adiante a atenção que os Nuer dão ao gado e a sabedoria dos métodos empregados. (…) conclusão geral a qual cheguei durante meus estudos: que a habilidade do Nuer para cuidar do gado não poderia, em algum aspecto importante, ser melhorada nas presentes relações ecológicas; que, consequentemente, de nada lhes serviria mais conhecimentos do que os que possuem; e que , como se verá, não fosse pela eterna vigilância e cuidado, o cuidado, o gado não poderia sobreviver às condições desfavoráveis do meio ambiente.” (P.45)

“(…) a vaca é um parasita dos Nuer, cujas vidas são gastas em garantir o bem-estar dela. (…) o relacionamento é simbólico: gado e homens mantêm sua vida graças aos serviços recíprocos.” (P.45)

“O kraal é o lugar onde brincam e normalmente elas estão lambuzadas de esterco, no qual rolam e pulam. (…) Seus sentimentos em relação aos animais estão provavelmente dominados pelo desejo de comida, pois as vacas, ovelhas e cabras satisfazem sem mediação sua fome, frequentemente amamentando-as.” (P.48)

“O contato através da alimentação e dos jogos transformou-se em contatos de trabalho.” (P.48)

“A profusão linguística em determinadas seções da vida é um dos sinais pelos quais pode-se facilmente julgar a direção e a força dos interesses de um povo. (…) dentre essa grande variedade escolhemos para comentário uma única classe: os termos com que descrevem gado, especialmente referindo-se a suas cores.” (P.50/51)

“Além do vasto vocabulário referente a cores, distribuição de cores, e associações de cores, o gado também pode ser descrito pelo formato de seus chifres e, já que os chifres dos bois são puxados à vontade do dono, existem ao menos seis significações comuns em uso além de vários nomes mais complexos.” (P.54)

“Uma gama ainda maior é a permutações é criada por prefixos que denotam o sexo ou idade de um animal.” (P.54)

“Desejo somente ressaltar que esse vocabulário intricado e volumoso não é técnico e específico, porém é empregado por todos e em muitas situações da vida social normal. (…) Minha intenção foi chamar a atenção para ele e mostrar como um estudo do interesse dominante dos Nuer poderia ser abordado a partir desse ângulo.” (P.57)

“Outra maneira pela qual se pode demonstrar o envolvimento dos Nuer com o gado – nosso último exemplo – é notando-se a vontade e a frequência com que lutam por ele, uma vez que as pessoas arriscam suas vidas por aquilo a que dão grande valor- e em termos desses valores.” (P.57)

“Pode-se confiar a um nuer qualquer quantia de dinheiro, libras, libras e mais libras, e ir embora por anos e voltar e ele não terá roubado; mas uma única vaca – isso é outra questão.” (P.58)

“Os Nuer dizem que é o gado que destrói as pessoas, pois “mais pessoas morreram por uma vaca do que por qualquer outra causa”.” (P.58)

“Pode-se ainda dizer que a grande vulnerabilidade do gado, junto com o extenso vital que ele requer, são compatíveis somente com um amplo reconhecimento de convenções somente com um amplo reconhecimento de convenções na solução de disputas ou, em outras palavras,a existência de uma organização tribal que abrange um grande território e de algum tipo de sentimento de comunidade que se estende por áreas ainda maiores.” (P.58)

“Lutar pela propriedade do gado e tomar gado pelo que se chama de dívidas e ressarcimento de perdas são de ordem um tanto diferentes do que pilhar gado sobre o qual nenhum direito, senão o poder do mais forte, é admitido.” (P. 59)

“(…) explicar a guerra entre os Nuer e Dinka fazendo referências somente ao gado e pastos é simplificar demais. (…) mas a luta em si somente pode ser totalmente compreendida enquanto processo estrutural e é assim que a apresentaremos mais adiante.” (P. 59)

“(…) sistema ecológico do qual fazem parte os Nuer e seu gado, para descobrir as contradições em que se pratica a criação de gado e até que ponto a prática em um determinado meio ambiente influencia a estrutura política.” (P.59)

Capítulo 3: Tempo e Espaço

“Neste capítulo, tornamos a examinar nossa descrição do interesse dos Nuer pelo gado e a descrição de sua ecologia, e faremos um relato de sua estrutura política. As limitações ecológicas e outras influenciam suas relações sociais, mas o valor atribuído às relações ecológicas é igualmente significativo para a compreensão do sistema social, que é um sistema dentro do sistema ecológico, parcialmente dependente desde e parcialmente existindo por direito próprio.” (p. 107)

“Em última análise, a maioria, talvez todos, dos conceitos de espaço e tempo são determinados pelo ambiente físico, mas os valores que eles encarnam constituem apenas uma das muitas possíveis respostas a este ambiente e dependem também de princípios estruturais, que pertencem a uma ordem diferente de realidade. (…) Estamos, portanto, interessados principalmente na influência das relações ecológicas sobre essas instituições, mais do que na influência da estrutura social na conceituação das relações ecológicas.” (p. 107)

“Ao descrever os conceitos nuer de tempo, podemos fazer uma distinção entre aqueles que são principalmente reflexos de suas relações com o meio ambiente – que chamaremos de tempo ecológico – e os que são reflexos de suas relações mútuas dentro da estrutura social – que chamaremos de tempo estrutural.” (p. 107 e 108)

“Os períodos maiores de tempo são quase que inteiramente estruturais, porque os acontecimentos que relacionam são mudanças no relacionamento de grupos sociais. Além disso, o cálculo do tempo baseado nas mudanças da natureza e na resposta do homem a elas limita-se a um ciclo anual e, portanto, não pode ser empregado para diferenciar períodos mais longos do que estações do ano.” (p. 108)

“O ciclo ecológico é de um ano. (…) O ano tem duas estações principais, tot e mai. Tot, de meados de março a meados de setembro, corresponde grosseiramente ao aumento na curva de precipitação de chuvas. Mai começa no declinar das chuvas, de meados de setembro a meados de março.” (p. 108)

“O conceito de estações deriva mais das atividades sociais do que das mudanças climáticas que as determinam, e o ano consiste para os Nuer num período de residência na aldeia (cieng) e em outro de residência no acampamento (wec). (p. 109)

“Sendo as necessidades do gado e as variações no suprimento de alimentos que traduzem principalmente o ritmo ecológico para o ritmo social do ano, e o contraste entre o modo de vida no auge das chuvas e no auge da seca que fornece os pólos conceituais na contagem do tempo.” (p. 109)

“Nuer adotam tot e mai enquanto metades de seu ano e falam também das estações rwil w jiom. Rwil é o período de mudança do acampamento para a aldeia. (…) Jion é o período em que o persistente vento do norte começa a soprar e as pessoas colhem o que plantaram.” (p. 109)

“O calendário é uma relação entre um ciclo de atividades e um ciclo conceitual e os dois não podem ser isolados, já que o ciclo conceitual depende do ciclo de atividades do qual deriva seu sentido e função. Assim, um sistema de doze meses não afeta os Nuer, pois o calendário está ancorado ao ciclo de mudanças ecológicas.” (p; 113)

“Não há unidades de tempo dentro do mês, dia e noite. As pessoas indicam a ocorrência de um acontecimento há mais de um dia ou dois fazendo referência a algum outro acontecimento que tenha ocorrido ao mesmo tempo ou contando o número dos “sonos” intercorrentes ou, o que é menos comum, dos “sóis”. (…) Quando os Nuer desejam definir a ocorrência de um acontecimento com vários dias de antecedência, tal como uma dança ou casamento, eles o fazem tomando como referência as fases da lua.” (p. 113)

“O relógio diário é o gado, o círculo de tarefas pastoris, e a hora do dia e a passagem do tempo durante o dia são para o Nuer, fundamentalmente, a sucessão dessas tarefas e suas relações mútuas.” (p. 114)

“A contagem de tempo ecológico é totalmente determinada pelo movimento dos corpos celestes, mas apenas algumas de suas unidades e notações baseiam-se diretamente nesses movimentos e presta-se atenção e selecionam-se tais pontos somente porque são significativos para as atividades sociais.

São as próprias atividades, notadamente as de tipo econômico, que constituem as bases do sistema e fornecem a maioria de suas unidades e notações, e a passagem do tempo é percebida na relação que uma atividade mantém com as outras.” (p. 115)

“Podemos concluir que o sistema nuer de contagem de tempo dentro do ciclo anual e das partes do ciclo consiste numa série de concepções das mudanças naturais e que a seleção de pontos de referência é determinada pela significação que essas mudanças naturais têm para as atividades humanas.” (p. 116)

“Existe, contudo, um ponto onde podemos dizer que os conceitos de tempo cessam de ser determinados por fatores ecológicos e tornam-se mais determinados pelas inter-relações estruturais, não sendo mais um reflexo da dependência do homem da natureza, mas um reflexo da interação de grupos sociais.” (p. 118)

“Existem seis conjuntos em existência, os nomes dos conjuntos não são cíclicos e a ordem dos conjuntos extintos é logo esquecida, de modo que a contagem por conjuntos etários possui sete unidades que abrangem um período de algo menos do que um século.” (p. 119)

“O movimento do tempo estrutural é, em certo sentido, uma ilusão, pois a estrutura permanece bastante constante e a percepção do tempo não é mais do que o movimento de pessoas, freqüentemente enquanto grupos, através da estrutura. Assim, os conjuntos etários sucedem-se uns aos outros para sempre, mas jamais há mais de seis existindo ao mesmo tempo e as posições relativas ocupadas por esses seis conjuntos são, a todo o momento, pontos estruturais fixos através dos quais passam conjuntos reais de pessoas em eterna sucessão.” (p. 120)

“O sistema nuer de linhagens pode ser considerado como um sistema fixo, havendo um número constante de graus entre pessoas vivas e o fundador clã, e tendo as linhagens uma posição de parentesco constante umas com as outras. Seja qual for o número de gerações que se segue umas às outras, a profundidade e ampliação das linhagens não aumenta a menos que haja mudanças estruturais.” (p. 120 e 121)

“O espaço ecológico é mais do que a mera distância física, embora seja afetado por ela, pois também é calculado por meio do caráter da região que se situa entre grupos locais e por meio da relação dessa região com as exigências biológicas de seus membros. (…) A distância ecológica é uma relação entre comunidades definida em termos de densidade e distribuição, e com referência a água, vegetação, vida animal e de insetos e assim por diante.” (p. 122)

“Por distância estrutural queremos dizer, a distância entre grupos de pessoas dentro de um sistema social, expressa em termos de valores. A natureza da região determina a distribuição das aldeias e, por conseguinte, a distância entre elas, porém os valores limitam e definem a distribuição em termos estruturais e fornecem um conjunto diferente de distância.” (p. 123)

“Os primeiros acampamentos podem ser encontrados quase que em qualquer parte e muitas vezes abrangem somente algumas moradias; pode-se saber, contudo, qual a localização dos acampamentos maiores, formados quando a estação já está mais avançada, porque existem somente alguns poucos lugares onde há água bastante. O tamanho daqueles depende principalmente da quantidade de água e de pastos, e sua população varia de cerca de uma centena a vários milhares de pessoas.” (p. 125)

“As condições físicas que são responsáveis pela escassez de alimentos e também uma tecnologia simples provocam uma baixa densidade e uma distribuição esparsa das áreas de fixação. A falta de coesão política e de desenvolvimento pode ser relacionada com a densidade e distribuição dos Nuer, e, além do mais, em termos gerais, sua simplicidade estrutural também pode ser devida às mesmas condições.” (p. 125)

“O tamanho dos trechos de terreno mais elevado e as distâncias entre eles permitem, em algumas partes da terra nuer, uma concentração maior e mais compacta do que em outras.” (p. 125 e 126)

“Onde há relatividade grande densidade de população nas chuvas, existe também a tendência a haver maior necessidade, na estiagem, de mudanças prematuras e distantes para novos pastos. Essa necessidade força ao reconhecimento de um valor tribal comum por grandes áreas e permite-nos compreender melhor como é que, apesar de uma necessária falta de coesão política entre as tribos, elas freqüentemente possuem uma população tão grande e ocupam um território tão vasto.” (p. 126)

“Uma aldeia compreende uma comunidade, vinculada pela residência comum e por uma rede de parentesco e laços de afinidades, cujos membros formam um acampamento comum, cooperam em muitas atividades e fazem as refeições nos estábulos e abrigos contra o vento dos outros. Uma aldeia é o menor grupo nuer que não é especificamente de ordem de parentesco e é a unidade política da terra dos Nuer.” (p. 127)

“Um grande acampamento recebe um nome de acordo com a linhagem que predomina nele e segundo a comunidade da aldeia que o ocupa, e pequenos acampamentos algumas vezes recebem o nome de um ancião de importância que ali tenha construído seu abrigo contra o vento. (…) Não só as pessoas de um acampamento vivem num grupo mais compacto do que as pessoas de uma aldeia, mas também que na vida do acampamento há contatos mais freqüentes entre seus membros e maior coordenação de suas atividades.” (p. 129)

“Cada tribo possui um nome que tanto se refere a seus membros, quanto à região que ocupa. Cada uma tem seu território particular e possui e defende seus próprios locais de construção, seus pastos, reservas de água e reservatórios de peixes. (…) Os membros de uma tribo têm um sentimento comum para com sua região e, portanto, para com os demais membros. Esse sentimento evidencia-se no orgulho com que falam de sua tribo enquanto objeto de sua lealdade, na depreciação jocosa de outras tribos e na indicação de variações culturais em sua própria tribo como símbolos de sua singularidade.” (p. 132)

“A luta entre as diferentes tribos nuer era de caráter diverso da luta entre Nuer e Dinka. A luta intertribal era considerada mais feroz e mais perigosa, mas estava sujeita a certas convenções: mulheres e crianças nada sofriam casas e estábulos não eram destruídos e não se faziam prisioneiros. E, também, os demais Nuer não eram considerados como presa natural, como eram os Dinka.” (p. 133)

“Outra característica definidora de uma tribo é que, dentro dela, existe cut, riqueza paga como ressarcimento de um homicídio, e os Nuer explicam o valor tribal em termos dela. Assim, os membros da tribo Lou dizem que, entre eles, existe a indenização de sangue. (…) Entre membros de uma tribo há também ruok, ressarcimento por danos que não são homicídios, embora a obrigação de pagá-lo seja menos enfatizada ou executada, enquanto que entre uma tribo e outra não se reconhece qualquer obrigação desse gênero. Podemos, portanto, dizer que existe lei, no sentido limitado e relativo, entre membros de uma tribo, mas não há lei entre tribos.” (p. 135)

“Além desses sistemas de relações políticas diretas, todo o povo nuer se vê como uma comunidade única e sua cultura, como uma cultura única. A oposição aos vizinhos dá aos Nuer uma consciência de grupo e um forte sentimento de serem exclusivos. Sabe-se que alguém é Nuer por sua cultura, que é muito homogênea. (…) Todos os Nuer vivem num território contínuo. Não há seções isoladas. Contudo seu sentimento de comunidade é mais profundo do que o reconhecimento da identidade cultural.” (p. 136)

“Os limites da tribo não são, portanto, os limites do intercâmbio social, e existem muitos vínculos entre os membros de uma tribo e os membros de outra. Por meio da associação ao sistema de clãs e pela proximidade, os membros de uma tribo podem considerar-se mais próximos de uma segunda do que de uma terceira.” (p. 137)

“A estrutura política dos Nuer somente pode ser compreendida quando é colocada em relação a de seus vizinhos, com quem formam um único sistema político. Tribos nuer e dinka contíguas são segmentos dentro de uma estrutura comum, tanto quanto o são os segmentos de uma mesma tribo nuer. Seu relacionamento social é de hostilidade, que encontra sua expressão na guerra.” (p. 138)

“As únicas relações estrangeiras que se pode dizer terem sido expressas por guerras constantes eram as com as várias tribos dinka que fazem fronteira com a terra dos Nuer. (…) A luta entre os dois povos tem sido incessante desde tempos imemoriais e parece ter atingido um estágio de equilíbrio antes que a conquista européia o pertubasse.” (p. 141)

“A guerra entre Dinka e Nuer não é meramente um conflito de interesses, mas é também um relacionamento estrutural entre os dois povos; e tal relacionamento requer um certo reconhecimento, por ambos os lados, de que cada um, até determinado ponto, a partilha dos sentimentos e hábitos do outro. Somos levados por essa reflexão a notar que as relações políticas são profundamente influenciadas pelo grau de diferenciação cultural existente entre os Nuer e seus vizinhos. Quanto mais próximos dos Nuer estão os povos em termos de subsistência, língua e costumes, mais intimamente os Nuer os encaram, mais facilmente iniciam relações de hostilidade com eles e mais facilmente fundem-se a eles.” (p. 143 e 144)

“Fornecemos uma descrição sumária dessas unidades do espaço estrutural em sua dimensão política ou territorial e chamamos a atenção para a influência da ecologia na distribuição e, daí, nos valores atribuídos à distribuição, inter-relação entre os quais se encontra o sistema político. Esse sistema, contudo, não é tão simples como nós o apresentamos, pois os valores não são simples, e agora, tentamos enfrentar algumas das dificuldades que havíamos deixado de lado.” (p. 148)