Renè Descartes

1.Um novo tipo de saber centrado sobre o homem e sobre a racionalidade

Leibniz afirma: “Costumo chamar os escritos de Descartes de vestíbulo da verdadeira filosofia, já que, embora ele não tenha alcançado seu núcleo íntimo, foi quem dele se aproximou mais do que qualquer outro antes dele, com a única exceção de Galileu, do qual oxalá tivéssemos todas as meditações sobre os diversos temas, que o destino adverso reduziu ao silêncio. Quem ler Galileu e Descartes se encontrará em melhores condições de descobrir a verdade do que se houvesse explorado todo o gênero dos autores comuns”. Um juízo ponderado de um grande filósofo sobre outro grande filósofo, que dá a medida exata da personalidade de Descartes, com toda razão chamado precisamente de pai da filosofia moderna. Com efeito, ele assinalou uma reviravolta radical no campo do pensamento pela crítica a que submeteu a herança cultural, filosófica e científica da tradição e pelos novos princípios sobre os quais edificou um tipo de saber, não mais centrado no ser ou em Deus, mas no homem e na racionalidade humana.

René Descartes (Cartesius) nasceu em La Haye, na Touraine, em 31 de março de 1596, ano da publicação do Mysterium cosmograpbicum de Kepler. De família nobre — seu pai Joaquim era conselheiro no Parlamento da Bretanha —, foi logo enviado para o colégio jesuíta de La Flèche, no Anjou, uma das mais célebres escolas da época, onde recebeu sólida formação filosófica e científica, segundo a ratio studiorum daquele tempo, ratio que abarcava seis anos de estudos humanísticos e três anos de matemática e teologia. Inspirado nos princípios da filosofia Escolástica, considerada a mais válida defesa da religião católica contra os sempre renascentes germes da heresia, aquele tipo de ensino, embora sensível às novidades científicas e aberto para o estudo da matemática, deixou Descartes insatisfeito e confuso. Ele logo se deu conta do abismo enorme entre aquela orientação cultural e os novos fermentos científicos e filosóficos que brotavam por toda parte. Em especial, percebeu logo a ausência de uma séria metodologia, capaz de instituir, controlar e ordenar as idéias existentes e guiar à busca da verdade.

O ensino de filosofia, ministrado segundo a codificação de Suarez, levava os espíritos para o passado, para as intermináveis controvérsias dos tratadistas escolásticos, reservando pouco espaço para os problemas do presente.

Embora criticando a filosofia aprendida naqueles anos, Descartes certamente não esquece o espaço reservado aos problemas científicos e ao estudo da matemática. Mas até no que se refere a essas disciplinas, ao término de seus estudos ele sentiu-se profundamente insatisfeito.

Descartes, portanto, deixou o colégio de La Flèche desorientado e desprovido de um saber ao qual se agarrar. Por isso, depois de ter prosseguido seus estudos na Universidade de Poitiers, onde conseguiu o bacharelado e a licenciatura em Direito, mas encontrando-se ainda na maior confusão espiritual e cultural, decidiu dedicar-se à carreira das armas. Assim, em 1618, quando teve início a Guerra dos Trinta Anos, alistou-se nas tropas de Maurício de Nassau, que combatia contra os espanhóis pela liberdade da Holanda. Em Breda, estreitou amizade com um jovem cultor de física e matemática, Isaac Beeckman, que o estimulou a estudar física. Inclinado a um projeto de “matemática universal”, em Ulma, onde se encontrava com o exército do duque Ma-ximiliano da Baviera, em cujas fileiras ingressara, Descartes relata ter recebido, entre 10 e 11 de novembro de 1619, uma espécie de revelação intelectual sobre os fundamentos de “uma ciência admirável”. Por causa dessa “revelação”, Descartes fez a promessa de ir em peregrinação à Santa Casa de Loreto. Em um pequeno diário, em que anotava suas reflexões, Descartes fala de um“ inventum mirabile”, que desenvolveria depois no Studium bonae mentis, de 1623, e nas Regulae ad directionem ingenii (Regras para a guia do intelecto), que escreveu entre 1627 e 1628.

Tendo-se estabelecido na Holanda, terra de tolerância e liberdade, Descartes, por sugestão do padre Marino Mersenne, considerado o “secretário da Europa douta”, e do cardeal Pierre de Bérulle, começou a elaborar um tratado de metafísica, que, porém, logo interrompeu para dedicar-se a uma grande obra física, o Traité dephysique (Tratado de física), dividido em duas partes: a primeira sobre temática cosmológica, Le monde ou traité de la lumière (O mundo ou tratado da luz), e a segunda de caráter antropológico, L’homme (O homem). Em 22 de julho de 1633, de Deventer, na Holanda, anunciou a Mersenne que o Tratado sobre o mundo e sobre o homem estava quase pronto (“só me resta corrigi-lo e copiá-lo”), e que esperava enviá-lo no fim do ano. Entretanto, tomando conhecimento da condenação de Galileu por causa da tese coperni-cana, que ele compartilhava e cujas razões expusera no Tratado em questão, Descartes apressou-se a escrever novamente para o mesmo Mersenne: “Estou quase decidido a queimar todas as minhas apostilas ou, pelo menos, não mostrá-las a ninguém.” A lembrança da morte de Giordano Bruno na fogueira e da prisão de Campanella, que a condenação de Galileu avivava em sua mente, agiram com força sobre seu espírito esquivo, inimigo das vicissitudes que prejudicam a paz de espírito, tão necessária para o estudo.

Superada a grave perturbação, Descartes sentiu a necessidade urgente de enfrentar o problema da objetividade da razão e da autonomia da ciência em relação ao Deus onipotente. E motivou-se nesse sentido também pelo fato de que Urbano VIII havia condenado a tese galileana como contrária à Escritura. Assim, de 1633 a 1637, fundindo os estudos de metafísica que iniciara e depois interrompera com suas pesquisas científicas, escreveu o famoso Discurso sobre o método, que introduzia três ensaios científicos nos quais compendiava os resultados alcançados: a Dioptrique, o Météores e a Géométrie. Diferentemente de Galileu, que não havia elaborado nenhum tratado explícito sobre o método, Descartes considerou importante demonstrar o caráter objetivo da razão e indicar as regras em que devemos nos inspirar para alcançar tal objetividade. Nascido em contexto polêmico e em defesa da nova ciência, o Discurso sobre o método tornou-se a “magna carta” da nova filosofia.

É desse período o seu amor por Helène Jans, da qual teve Francine, a filhinha que amou ternamente e que perdeu com apenas cinco anos. A dor pela perda da menina incidiu profundamente sobre o seu espírito e talvez, pelo menos em parte, sobre seu pensamento, apesar de seus escritos continuarem sempre severos e rigorosos. Retomou a elaboração do Tratado de metafísica, mas agora sob a forma de Meditações, escritas em latim porque reservadas aos doutos, obra na qual os acenos “à enfermidade e à fraqueza da natureza humana” testemunham um espírito cheio de angústia. Enviadas a Mersenne para que as levasse ao conhecimento dos doutos e recolhesse as suas objeções — ficaram famosas as obje-ções de Hobbes, de Gassendi, de Arnauld e do próprio Mersenne —, as Meditationes de prima philosophia serão finalmente publicadas, juntamente com as Respostas de Descartes em 1641, sob o título Meditationes de prima philosophia in qua Dei existentia et animae immortalitas demonstrantur (Meditações metafísicas onde se demonstra a existência de Deus e a imortalidade da alma). Atacado pelo teólogo protestante Gisbert Voét, replicou com a Epistola Renati Des Cartes ad celeberrimum virum Gisber-tum Voêtium, na qual procurou demonstrar a pobreza e a inconsistência das concepções filosóficas e teológicas do adversário.

Apesar das muitas polêmicas que seus escritos de metafísica e ciência suscitavam, Descartes dedicou-se com empenho à elaboração dos Principia philosophiae (Princípios de filosofia), obra em quatro livros compostos de artigos breves, conforme o modelo dos manuais escolásticos da época. Trata-se de uma exposição compilada e sistemática de sua filosofia e de sua física, com particular destaque para os vínculos entre filosofia e ciência. A obra foi publicada em Amsterdam, sendo dedicada à princesa Isabel, filha de Frederico V do Pa-latinato.

Amargurado com as polêmicas com os professores da Universidade de Leida, que chegaram a proibir o estudo de suas obras, mas sem qualquer desejo de voltar para a França, em virtude da situação caótica em que havia caído seu país, em 1649 Descartes aceitou o convite da rainha Cristina da Suécia e, depois de entregar para impressão os manuscritos de seu último trabalho, Les passions de l’âme (As paixões da alma), deixou definitivamente a Holanda, não mais hospitaleira e agora cheia de contrastes. Apesar de suas graves preocupações, Descartes continuou mantendo relação epistolar com a princesa Isabel, de grande importância para o esclarecimento de muitos pontos obscuros de sua doutrina, particularmente das relações entre alma e corpo, do problema moral e do livre-arbítrio.

Na corte sueca, para festejar o fim da Guerra dos Trinta Anos e a paz de Vestfá-lia, Descartes escreveu La naissance de la paix (O nascimento da paz). Mas foi bem curto o tempo transcorrido na corte sueca, porque a rainha Cristina, devido ao hábito de ter suas conversações às cinco horas da manhã, obrigava Descartes a levantar-se muito cedo, apesar do clima rigoroso e da não muito robusta constituição física do filósofo. Assim, ao deixar a corte, em 2 de fevereiro de 1650, o filósofo pegou uma pneumonia que, depois de uma semana de sofrimentos, o levou à morte. Transportados para a França em 1667, seus despojos repousam na Igreja de Saint-Germain des Prés, em Paris.

Postumamente, foram publicados os seguintes escritos de Descartes: o Compendium musicae (1650), o Traité de l’homme (1664), Le Monde ou Traité de la lumière (1664), as Lettres (1657-1667), as Regulae ad directionem ingenii (1701) e a Inquisitio veritatis per lumen naturale (1701).

Críticas ao saber matemático

Além disso, mesmo admirando o rigor do saber matemático, ele critica tanto a aritmética como a geometria tradicionais, porque elaboradas com procedimentos que, embora lineares, não se sustentavam em uma clara orientação metodológica. O fato de suas passagens serem rigorosas e coerentes não significa que a aritmética e a geometria foram elaboradas no contexto de um bom método, nunca teorizado. Se permanecemos quase como que desarmados e induzidos a recomeçar do início quando nos defrontamos com novos problemas, a razão disso deriva da falta de um guia capaz de nos acompanhar na solução dos novos problemas. Com efeito, falando da geometria e da álgebra, ele recorda que estas “se referem a matérias muito abstratas e aparentemente de nenhuma utilidade”: a primeira, a geometria, “porque ligada à consideração das figuras”; a segunda, a aritmética, porque “confusa e obscura” a ponto de “embaraçar o espírito”.

Daí seu propósito de dar vida a uma espécie de matemática universal, isto é, livre dos números ou das figuras, para poder servir de modelo para todo saber.

Descartes não pode adotar a matemática tradicional como modelo do saber, porque ela não possui método unitário. Para teorizar esse modelo, ele crê necessário demonstrar que as diferenças entre aritmética e geometria não são relevantes, porque ambas se inspiram, ainda que implicitamente, no mesmo método.

E, com tal objetivo, traduz os problemas geométricos em problemas algébricos, mostrando sua substancial homogeneidade.

Como é que isso lhe foi possível? Através daquilo que se chama geometria analítica, e com a qual Descartes tornou a matemática mais límpida em seus princípios e em seus procedimentos, aplicando a álgebra à geometria, isto é, estudando determinadas figuras com determinadas equações.

E este, no fundo, era o objetivo que ele se propunha, e é nesse contexto de crítica e de recuperação das ciências matemáticas que devemos ler o trecho no qual Descartes, ainda no Discurso sobre o método, afirma querer inspirar o método do novo saber na clareza e no rigor típicos dos procedimentos geométricos: “Aquela longa cadeia de raciocínios, todos simples e fáceis, de que os geômetras têm o hábito de se servir para chegar às suas difíceis demonstrações, me havia possibilitado imaginar que todas as coisas de que o homem pode ter conhecimento derivam do mesmo modo e que, desde que se abstenha de aceitar como verdadeira uma coisa que não o é e respeite sempre a ordem necessária para deduzir uma coisa da outra, não haverá nada de tão distante que não se possa alcançar, nem de tão oculto que se não possa descobrir. ”

As regras do método

Descartes quer primeiramente oferecer regras certas e fáceis que, corretamente observadas, levarão ao conhecimento verdadeiro de tudo aquilo que se pode conhecer. No Discurso sobre o método, estas regras são quatro:

1)a evidência racional, que se alcança mediante um ato intuitivo que se autofundamenta;

2)a análise, uma vez que para a intuição é necessária a simplicidade, que se alcança mediante a decomposição do complexo em partes elementares;

3)a síntese, que deve partir de elementos absolutos ou não dependentes de outros, e proceder em direção aos elementos relativos ou dependentes, dando lugar a uma cadeia de nexos coerentes;

4) o controle, efetuado mediante a enumeração completa dos elementos analisados e a revisão das operações sintéticas. Em suma, para proceder com retidão em qualquer pesquisa, é preciso repetir o movimento de simplificação e rigorosa concatenação, típico do procedimento geométrico.

A primeira regra do método

A primeira regra, mas que também é a última, enquanto é o ponto de chegada, além de ser o ponto de partida, é a regra da evidência, que ele assim enuncia: “Não se deve acatar nunca como verdadeiro aquilo que não se reconhece ser tal pela evidência, ou seja, evitar acuradamente a precipitação e a prevenção, assim como nunca se deve abranger entre nossos juízos aquilo que não se apresente tão clara e distintamente à nossa inteligência a ponto de excluir qualquer possibilidade de dúvida.”

Mais que uma regra, trata-se de um princípio normativo fundamental, exatamente porque tudo deve convergir para a clareza e a distinção, nas quais, precisamente, se dá a evidência. Falar de idéias claras e distintas e falar de idéias evidentes é a mesma coisa.

Mas qual é o ato intelectual com o qual se alcança a evidência? E o ato intuitivo ou captação de “um conceito não dúbio da mente pura e atenta que nasce apenas da luz da razão e é mais certo que a própria dedução”.

■Evidência. É o princípio metódico fundamental, a primeira regra do método cartesiano.

A evidência consiste na clareza e na distinção, as quais sio os sinais da verdade das coisas, e deriva do lumen naturale que existe em todo homem; mais precisamente, a evidência é alcançada mediante um ato intuitivo, que é “um conceito não dúbio da mente pura e atenta que nasce apenas da luz da razão e é mais certo que a própria dedução”.

Em tal sentido, a evidência se autofundamenta e se autojustifica, porque sua garantia deposita-se não em uma base argumentativa qualquer, e sim unicamente na mútua transparência entre razão e conteúdo do ato intuitivo.

Trata-se, portanto, de ato que se autofundamenta e se autojustifica, porque sua garantia não repousa sobre uma base qualquer de argumentação, mas somente sobre a transparência mútua entre razão e conteúdo do ato intuitivo. Trata-se daquela idéia clara e distinta que reflete “unicamente a luz da razão”, não ainda conjugada com outras idéias, mas considerada em si mesma, intuída e não argumentada. Trata-se da idéia presente na mente e da mente aberta para a idéia sem qualquer mediação.

O objetivo das outras três regras é chegar a essa transparência mútua.

A segunda regra do método

A segunda regra é a de “dividir cada problema que se estuda em tantas partes menores, quantas for possível e necessário para melhor resolvê-lo”.

E a defesa do método analítico, único que pode levar à evidência, porque, desarticulando o complexo no simples, permite à luz do intelecto dissipar as ambigüidades.

Este é um momento preparatório essencial, já que, se a evidência é necessária para a certeza e a intuição é necessária para a evidência, já para a intuição é necessária a simplicidade, que se alcança através da decomposição do conjunto “em partes elementares até o limite do possível”.

Chega-se às grandes conquistas etapa após etapa, parte após parte. Esse é o caminho que permite escapar às presunçosas generalizações. E como toda dificuldade o é porque o verdadeiro está misturado com o falso, o procedimento analítico deveria permitir libertar o primeiro das escórias do segundo.

A terceira regra do método

A decomposição do conjunto em seus elementos simples não basta, porque apresenta um conjunto desarticulado de elementos, mas não o nexo de coesão que deles faz um todo complexo e real. Por isso, à análise deve-se seguir a síntese, o objetivo da terceira regra, que Descartes, ainda no Discurso sobre o método, enuncia com as seguintes palavras: “A terceira regra é a de conduzir com ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-se, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais complexos, supondo uma ordem também entre aqueles nos quais uns não precedem naturalmente aos outros.”

Assim, é necessário recompor os elementos em que foi decomposta uma realidade complexa. Trata-se de uma síntese que deve partir de elementos absolutos (ab-so-lutus) ou não dependentes de outros, e direcionar-se para os elementos relativos ou dependentes, dando lugar assim a um encadeamento que ilumina os nexos do conjunto.

Trata-se de recompor a ordem ou criar uma cadeia de raciocínios que se desenvolvam do simples ao composto, o que não pode deixar de ter uma correspondência na realidade. Quando essa ordem não existe, é preciso supô-la como a hipótese mais conveniente para interpretar e expressar a realidade efetiva. Se a evidência é necessária para se ter a intuição, o processo do simples ao complexo é necessário para o ato dedutivo.

A quarta regra do método

Por fim, para impedir qualquer precipitação, que é a mãe de todos os erros, é preciso verificar cada uma das passagens.

Por isso, Descartes conclui dizendo: “A última regra é a de fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais a ponto de se ficar seguro de não ter omitido nada.”

Portanto, enumeração e revisão: a primeira verifica se a análise é completa; a segunda verifica se a síntese é correta.

A dúvida metódica e a certeza fundamental: cogito ergo sum

“Convenci-me de que não existe nada no mundo, nem céu, nem terra, nem mente, nem corpo. Isto implica que também eu não exista? Não: se existe algo de que eu esteja realmente convencido é de minha própria existência. Mas existe um enganador de poder e astúcia supremos, que está deliberada e constantemente me confundindo. Neste caso, e mesmo que o enganador me confunda, sem dúvida eu também devo existir… a proposição “eu sou”, “eu existo”, deve ser necessariamente verdadeira para que eu possa expressá-la, ou para que algo confunda minha mente.”

Em outras palavras, a consciência implica a existência. Em uma das réplicas às objeções que faz no livro, Descartes resumiu a passagem acima em sua hoje famosa sentença: penso, logo, existo (em latim: cogito, ergo sum)

Como relata Descartes no Discurso sobre o método, depois de ter posto tudo em dúvida, “somente depois tive de constatar que, embora eu quisesse pensar que tudo era falso, era preciso necessariamente que eu, que assim pensava, fosse alguma coisa. E observando que essa verdade — “penso, logo sou” — era tão firme e sólida que nenhuma das mais extravagantes hipóteses dos céticos seria capaz de abalá-la, julguei que podia aceitá-la sem reservas como o princípio primeiro da filosofia que procurava”.

Esta certeza não pode ser minada de nenhum modo pelo gênio maligno, porque, ainda que exista um gênio maligno que me engana, eu, em todo caso, devo existir para ser enganado.

Portanto, a proposição “eu penso, logo existo” é absolutamente verdadeira, porque até a dúvida, mesmo a mais extremada e radicalizada, a confirma.

Mas o que entende Descartes por “pensamento”? Afirma ele nas Respostas: “Com o termo ‘pensamento’ eu abranjo tudo aquilo que existe em nós de tão factual que somos imediatamente conscientes dele, como, por exemplo, todas as operações da vontade, do intelecto, da imaginação e dos sentidos são ‘pensamentos’. E acrescentei ‘imediatamente’ para excluir tudo aquilo que delas deriva; assim, por exemplo, um movimento voluntário tem como seu ponto inicial o pensamento, mas ele próprio não é pensamento.”

Estamos, portanto, diante de uma verdade sem qualquer mediação. A transparência do eu a si mesmo e, portanto, o pensa mento em ato, escapa a qualquer dúvida, indicando por que a clareza é a regra fundamental do conhecimento e por que a intuição é seu ato fundamental. Com efeito, nesse caso a existência ou o meu ser só é admitido enquanto se torna presente ao meu eu, sem qualquer passagem argumentativa.

Portanto, não há setor do saber que se mantenha. A casa desmorona porque seus alicerces estão minados. Nada resiste à força corrosiva da dúvida.

E evidente que não nos encontramos aqui diante da dúvida dos céticos. Neste caso, a dúvida quer levar à verdade. Por isso é chamada dúvida metódica, enquanto é passagem obrigatória, ainda que provisória, para chegar à verdade.

Descartes quer pôr em crise o dogmatismo dos filósofos tradicionais, ao mesmo tempo que também quer combater a atitude cética, que se comprazia em pôr tudo em dúvida sem nada oferecer em troca. E, em Descartes, é evidente o anseio pela verdade.

A negação aqui remete à afirmação, a dúvida leva à certeza.

”Cogito, ergo sum”. É o princípio teórico primeiro da filosofia cartesiana, originado da dúvida radical: “Do próprio fato de duvidar das outras coisas”, diz Descartes, “segue-se do modo mais evidente e certo que eu existo”, porque “se vê claramente que para pensar é preciso existir”.

A proposição “Eu sou, eu existo” é uma verdade sem nenhuma mediação; embora seja formulada como um silogismo qualquer, a proposição “penso, logo existo” não é um raciocínio, mas intuição pura, ato intuitivo graças ao qual percebo minha existência como ser pensante. Esta existência é uma res cogitans, sem nenhuma ruptura entre pensamento e ser: a substância pensante é o pensamento em ato, e o pensamento em ato é uma realidade pensante.

Efetivamente, apesar de ser formulada como qualquer silogismo, “penso, logo existo”, tal proposição não é um raciocínio, mas uma intuição pura.

Não se trata da abreviação de uma argumentação como a seguinte: “Tudo aquilo que pensa existe; eu penso, logo, existo.” Trata-se simplesmente de um ato intuitivo graças ao qual percebo minha existência enquanto é pensante.

Com efeito, procurando definir a natureza de sua própria existência, Descartes afirma que ela é uma res cogitans, uma realidade pensante, sem qualquer corte entre pensamento e ser. A substância pensante é o pensamento em ato, e o pensamento em ato é uma realidade pensante.

Assim, Descartes chegou a um ponto firme, que nada pode pôr em discussão. Ele sabe que o homem é uma realidade pensante e está bem consciente do fato fundamental representado pela lógica da clareza e da distinção. Desse modo, ele conquistou uma certeza inabalável, primeira e irrenunciável, porque relativa à própria existência, que, enquanto pensante, revela-se clara e distinta. Assim, a aplicação das regras do método levou à descoberta de uma verdade que, retroagindo, confirma a validade daquelas regras que se encontram fundamentadas e, portanto, assumidas como norma de qualquer saber.

“Res cogitans” e “res extensa”

Para Descartes existem apenas dois tipos de substâncias, claramente distintas e irredutíveis uma à outra: a substância pensante (res cogitans) e a substância extensa (res extensa).

A res cogitans é a existência espiritual do homem sem nenhuma ruptura entre pensar e ser, é a alma humana como realidade pensante que é pensamento em ato, e como pensamento em ato que é realidade pensante. A res extensa é o mundo material (compreendendo obviamente o corpo humano), do qual, justamente, se pode predicar como essencial apenas a propriedade da extensão.

A partir daí, a atividade cognoscitiva, mais do que se preocupar em fundamentar suas conquistas em sentido metafísico, deve procurar a clareza e a distinção, que são os traços típicos da primeira verdade que se impôs à nossa razão e que devem ser a marca de qualquer outra verdade. Como a nossa existência enquanto res cogitans foi aceita como indubitável com base na clareza e na distinção e não com base em outros fundamentos, então toda outra verdade só poderá ser acatada se exibir os traços da clareza e da distinção. E, para alcançá-los, é preciso seguir o itinerário da análise, da síntese e da verificação, sabendo-se que uma afirmação com tais características não estará mais sujeita à dúvida.

Desse modo, a filosofia não é mais a ciência do ser, mas sim a doutrina do conhecimento. Assim, antes de mais nada, a filosofia se torna gnosiologia.

É essa a reviravolta que Descartes imprime à filosofia, que passa a se orientar no sentido de encontrar ou fazer emergir, a propósito de qualquer proposição, os dados da clareza e da distinção, que, alcançados, tornam desnecessários outros suportes ou outras garantias. Assim como a certeza de minha existência enquanto res cogitans só necessita da clareza e da distinção, da mesma forma qualquer outra verdade não terá necessidade de outras garantias fora da clareza e da distinção, imediata (intuição) ou derivada (dedução).

A reta razão humana

Descartes, portanto, aplicando as regras do método, defronta-se com a primeira certeza fundamental, a do cogito. Esta, porém, não é apenas uma das muitas verdades que se alcança através daquelas regras, mas sim a verdade que, uma vez alcançada, fundamenta tais regras, porque revela a natureza da consciência humana que, como res cogitans, é transparência de si para si mesma. Qualquer outra verdade só será acolhida à medida que se adequar ou aproximar de tal evidência.

Tendo-se inspirado inicialmente na clareza e na evidência da matemática, agora Descartes destaca que as ciências matemáticas

apresentam somente um setor do saber, que sempre se inspirou em um método que, ao contrário, tem dimensão universal. De agora em diante, qualquer saber deverá se inspirar nesse método, porque não se trata de método fundado pela matemática, mas que funda a matemática, como toda outra ciência.

Aquilo a que esse método conduz e no qual se fundamenta é a “razão humana” ou aquela reta razão (bona mens) que pertence a todos os homens e que, como diz Descartes no Discurso sobre o método, “é a coisa mais bem distribuída no mundo”.

Oque é tal reta razão? “A faculdade de julgar bem e distinguir o verdadeiro do falso é propriamente aquilo que se chama bom senso ou razão, [e que] é naturalmente igual em todos os homens.”

E a unidade dos homens é representada pela razão bem guiada e desenvolvida.

Descartes já explicita isso no ensaio juvenil Regulae ad directionem ingenii, onde escreve: “Todas as diversas ciências nada mais são do que a sabedoria humana, que permanece sempre una e idêntica, por mais que se aplique a diferentes objetos, não recebendo destes maior distinção do que possa receber a luz do sol da diversidade das coisas que ilumina.” Mais do que sobre as coisas iluminadas — cada uma das ciências — é preciso pôr o acento sobre o sol, a razão, que deve emergir e impor sua lógica e fazer respeitar suas exigências. A unidade das ciências remete à unidade da razão. E a unidade da razão remete à unidade do método.

Se a razão é uma res cogitans, que emerge através da dúvida universal, a ponto de nenhum gênio maligno poder sitiá-la e nenhum engano dos sentidos obscurecê-la, então o saber deve basear-se nela e repetir sua clareza e distinção, que são os únicos postulados irrenunciáveis do novo saber.

A existência e o papel de Deus

O Eu, como ser pensante, revela-se o lugar de uma multiplicidade de idéias (atos mentais dos quais se tem percepção imediata), que a filosofia deve rigorosamente examinar. Para Descartes há particularmente três classes de idéias:

1)as idéias inatas, que encontro em mim, nascidas junto com minha consciência;

2)as idéias adventícias, que provêm a mim de fora e me remetem a coisas totalmente diferentes de mim;

3)as idéias factícias, construídas por mim mesmo.

Ora, entre as muitas idéias de que a consciência é depositária, há a idéia inata de Deus, isto é, a idéia de uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, e da qual eu mesmo e todas as outras coisas existentes fomos criados e produzidos. A idéia de Deus é subjetiva e objetiva ao mesmo tempo, e atesta ser inata em nós porque produzida pelo próprio Deus.

Desse modo, o problema da fundamentação do método de pesquisa se encontra definitivamente resolvido, porque a evidência proposta de modo hipotético é confirmada pelo cogito, e este se torna por sua vez reforçado pela presença de Deus que garante sua objetividade. Deus é garante também de todas as verdades claras e distintas, “eternas”, que devem constituir a ossatura do novo saber; mas estas verdades, criadas livremente por Deus, são contingentes, e são chamadas “eternas” apenas porque Deus é imutável; elas não participam da essência de Deus, e por isso ninguém, mesmo conhecendo-as, pode afirmar conhecer os desígnios imperscrutáveis de Deus.

O mundo é uma maquina

Deus é garante do fato de que a faculdade imaginativa e a sensível atestam a existência objetiva do mundo corpóreo, e entre todas as coisas que do mundo externo chegam à consciência é possível conceber como clara e distinta apenas a extensão. Não há, portanto, mais que uma mesma matéria em todo o universo, e nós a conhecemos apenas porque ela é extensa em comprimento, largura e profundidade. Este é um ponto de imensa importância revolucionária, já proposto em pauta por Galileu, que Descartes retoma porque dele depende a possibilidade de aviar um discurso científico rigoroso e novo. 0 universo é uma grande “máquina”, cujos elementos essenciais são matéria e movimento. Também o corpo humano e os organismos animais são máquinas e, portanto, funcionam em base a princípios mecânicos que regulam seus movimentos e relações; isso que chamamos “vida” é redutível a uma entidade material, isto é, a elementos sutilíssimos que, veiculados pelo sangue, se difundem por todo o corpo e presidem às principais funções do organismo.