Édipo Rei

Édipo Rei

 

Sófocles

 

ÉDIPO: Ó meus filhos, gente nova desta velha cidade de Cadmo, por que vos prosternais assim, junto a estes altares, tendo nas mãos os ramos dos suplicantes? Sente-se, por toda a cidade, o incenso dos sacrifícios; ouvem-se gemidos e cânticos fúnebres. Não quis que outros me informassem da causa de vosso desgosto; eu próprio aqui venho, eu, o rei Édipo, a quem todos vós conheceis. Eia! Responde tu, ó velho; por tua idade veneranda convém que fales em nome do povo. Dize-me, pois, que motivo aqui vos trouxe? Que terror ou que desejo vos reuniu? Careceis de amparo? Quero prestar-vos todo o meu socorro, pois eu seria insensível à dor se não me condoesse de vossa angústia.

O SACERDOTE: Édipo, tu que reinas em minha pátria, bem vês esta multidão prosternada diante dos altares de teu palácio; aqui há gente de toda a condição: crianças que mal podem caminhar, jovens na força da vida, e velhos curvados pela idade, como eu, sacerdote de Júpiter. E todo o restante do povo, conduzindo ramos de oliveira, se espalha pelas praças públicas, diante dos templos de Minerva, em torno das cinzas proféticas de Apolo Ismênio! Tu bem vês que Tebas se debate numa crise de calamidades, e que nem sequer pode erguer a cabeça do abismo de sangue em que se submergiu; ela perece nos germens fecundos da terra, nos rebanhos que definham nos pastos, nos insucessos das mulheres cujos filhos não sobrevivem ao parto. Brandindo seu archote, o deus maléfico da peste devasta a cidade e dizima a raça de Cadmo; e o sombrio Hades se enche com os nossos gemidos e gritos de dor. Certamente, nós não te igualamos aos deuses imortais; mas todos nós, eu e estes jovens, que nos acercamos de teu lar, vemos em ti o primeiro dos homens, quando a desgraça nos abala a vida, ou quando se faz preciso obter o apoio da divindade. Porque tu livraste a cidade de Cadmo do tributo que nós pagávamos à cruel Esfinge; sem que tivesses recebido de nós qualquer aviso, mas com o auxílio de algum deus, salvaste nossas vidas. Hoje, de novo aqui estamos, Édipo; a ti, cujas virtudes admiramos, nós vimos suplicar que, valendo-te dos conselhos humanos, ou do patrocínio dos deuses, dês remédios aos nossos males; certamente os que possuem mais longa experiência é que podem dar os conselhos mais eficazes! Eia, Édipo! Tu, que és o mais sábio dos homens, reanima esta infeliz cidade, e confirma tua glória! Esta nação, grata pelo serviço que já lhe prestaste, considera-te seu salvador; que teu reinado não nos faça pensar que só fomos salvos por ti para recair no infortúnio novamente! Salva de novo a cidade, restitui-nos a tranqüilidade, ó Édipo! Se o concurso dos deuses te valeu outrora para nos redimir do perigo, mostra, pela segunda vez, que és o mesmo! Visto que desejas continuar no trono, bem melhor será que reines sobre homens, do que numa terra deserta. De que vale uma cidade, de que serve um navio, se no seu interior não existe uma só criatura humana?

 ÉDIPO: Ó meus filhos, tão dignos de piedade! Eu sei, sei muito bem o que viestes pedir-me. Não desconheço vossos sofrimentos; mas na verdade, de todos nós, quem mais se aflige sou eu. Cada um de vós tem a sua queixa; mas eu padeço as dores de toda a cidade e as minhas próprias. Vossa súplica não me encontra descuidado; sabei que tenho já derramado abundantes lágrimas e que meu espírito inquieto já tem procurado remédio que nos salve. E a única providência que consegui encontrar, ao cabo de longo esforço, eu a executei imediatamente. Creonte, meu cunhado, filho de Meneceu, foi por mim enviado ao templo de Apolo para consultar o oráculo sobre o que nos cumpre fazer para salvar a cidade. E, calculando os dias decorridos de sua partida até hoje, sinto-me deveras inquieto; que lhe terá acontecido em viagem? Sua ausência já excede o tempo fixado, e sua demora não me parece natural. Logo que ele volte, considerai-me um criminoso se eu não executar com presteza tudo o que o deus houver ordenado.

 O SACERDOTE: Falas no momento oportuno, pois acabo de ouvir que Creonte está de volta.

 ÉDIPO: Ó rei Apolo! Tomara que ele nos traga um oráculo tão propício quanto alegre se mostra sua fisionomia!

 O SACERDOTE: Com efeito, a resposta deve ser, favorável; do contrário ele não viria assim, com a cabeça coroada de louro!

 ÉDIPO: Vamos já saber; ei-lo que se aproxima, e já nos pode falar. Ó príncipe, meu cunhado, filho de Meneceu, que resposta do deus Apolo tu nos trazes?

 Entra Creonte

 CREONTE: Uma resposta favorável, pois acredito que mesmo as coisas desagradáveis, se delas nos resulta algum bem, tomam-se uma felicidade.

ÉDIPO: Mas, afinal, em que consiste essa resposta? O que acabas de dizer não nos causa confiança nem apreensão.

 CREONTE: (Indicando o povo ajoelhado.) Se queres ouvir-me na presença destes homens, eu falarei; mas estou pronto a entrar no palácio, se assim preferires.

 ÉDIPO: Fala perante todos eles; o seu sofrimento me causa maior desgosto do que se fosse meu somente.

 CREONTE: Vou dizer, pois, o que ouvi da boca do deus. O rei Apolo ordena, expressamente, que purifiquemos esta terra da mancha que ela mantém; que não a deixemos agravar-se até tomar-se incurável.

 ÉDIPO: Mas por que meios devemos realizar essa purificação? De que mancha se trata?

 CREONTE: Urge expulsar o culpado, ou punir, com a morte, o assassino, pois o sangue maculou a cidade.

 ÉDIPO: À morte de que homem se refere o oráculo?

 CREONTE: Laio, o príncipe, reinou outrora neste país, antes que te tornasses nosso rei.

 ÉDIPO: Sim; muito ouvi falar nele, mas nunca o vi.

 CREONTE: Tendo sido morto o rei Laio, o deus agora exige que seja punido o seu assassino, seja quem for.

 ÉDIPO: Mas onde se encontra ele? Como descobrir o culpado, de um crime tão antigo?

 CREONTE: Aqui mesmo, na cidade, afirmou o oráculo. Tudo o que se procura será descoberto; e aquilo de que descuramos nos escapa.

 

Édipo fica pensativo por um momento.

 ÉDIPO: Foi na cidade, no campo, ou em terra estranha que se cometeu o homicídio de Laio?

 CREONTE: Ele partiu de Tebas para consultar o oráculo, conforme nos disse, e não mais voltou.

 ÉDIPO: E nenhuma testemunha, nenhum companheiro de viagem viu qualquer coisa que nos possa esclarecer a respeito?

 CREONTE: Morreram todos, com exceção de um único, que, apavorado, conseguiu fugir, e de tudo o que viu só nos pôde dizer uma coisa.

 ÉDIPO: Que disse ele? Uma breve revelação pode facilitar-nos a descoberta de muita coisa, desde que nos dê um vislumbre de esperança.

 CREONTE: Disse-nos ele que foram salteadores que encontraram Laio e sua escolta, e o mataram. Não um só, mas um numeroso bando.

 ÉDIPO: Mas como e para que teria o assassino praticado tão audacioso atentado, se não foi coisa tramada aqui, mediante suborno?

 CREONTE: Também a nós ocorreu essa idéia; mas, depois da morte do rei, ninguém pensou em castigar o criminoso, tal era a desgraça que nos ameaçava.

 ÉDIPO: Que calamidade era essa que vos impediu de investigar o que se passara?

 CREONTE: A Esfinge, com seus enigmas, obrigou-nos a deixar de lado os fatos incertos para só pensar no que tínhamos diante de nós.

 ÉDIPO: Está bem; havemos de voltar à origem desse crime e pô-lo em evidência. É digna de Apolo, e de ti, a solicitude que tendes pelo morto; por isso mesmo ver-me-eis secundando vosso esforço, a fim de reabilitar e vingar a divindade e o país ao mesmo tempo. E não será por um estranho, mas no meu interesse, que resolvo punir esse crime; quem quer que haja sido o assassino do rei Laio, bem pode querer, por igual forma, ferir-me com a mesma audácia. Auxiliando-vos, portanto, eu sirvo a minha própria causa. Eia, depressa, meus filhos! Erguei-vos e tomai vossas palmas de suplicantes; que outros convoquem os cidadãos de Cadmo; eu não recuarei diante de obstáculo algum! Com o auxílio do deus, ou seremos todos felizes, ou ver-se-á nossa total ruína!

 O SACERDOTE: Levantemo-nos, meus filhos! O que ele acaba de pronunciar é, precisamente, o que vínhamos pedir aqui. Que Apolo, que nos envia essa predição oracular, possa nos socorrer, também, para pôr um fim ao flagelo que nos tortura!

  

Saem Édipo, Creonte e o sacerdote. Retira-se o povo. Entra o coro, composto de quinze notáveis tebanos.

 O CORO: Doce palavra de Zeus, que nos trazes do santuário dourado de Delfos à cidade ilustre de Tebas? Temos o espírito conturbado pelo terror, e o desespero nos quebranta. Ó Apolo, nume tutelar de Delos, tu que sabes curar todos os males, que sorte nos reservas agora, ou pelos anos futuros? Dize-nos tu, filha da áurea Esperança, divina voz imortal!

 Também a ti recorremos, ó filha de Zeus, Palas eterna, e a tua divina irmã, Diana, protetora de nossa pátria, em seu trono glorioso na Ágora imensa; e Apolo, que ao longe expede suas setas; vinde todos vós em nosso socorro; assim como já nos salvastes outrora de uma desgraça que nos ameaçava, vinde hoje salvar-nos de novo!

 Ai de nós, que sofremos dores sem conta! Todo o povo atingido pelo contágio, sem que nos venha à mente recurso algum que nos possa valer! Fenecem os frutos da terra; as mães não podem resistir às dores do parto; e as vítimas de tanta desgraça atiram-se à região do deus das trevas.

 Privada desses mortos inúmeros, a cidade perece e, sem piedade, sem uma só lágrima, jazem os corpos pelo chão, espalhando o contágio terrível; as esposas, as mães idosas, com seus cabelos brancos, nos degraus dos altares para onde correm de todos os pontos, soltam gemidos pungentes, implorando o fim de tanta desventura. E à lamúria dolorosa se juntam os sons soturnos dos peã. Dileta filha dourada de Júpiter, envia-nos, sorridente, o teu socorro! E o poderoso Marte, que ora nos inflama sem o bronze dos escudos, ferindo-nos no meio desses gritos de horror, afugentai-o para bem longe de nossa terra, ou para o vastíssimo leito de Anfitrite, ou para as ondas inóspitas dos mares da Trácia, porque o que a noite não mata, o dia imediato com certeza destrói. Ó Júpiter, nosso Pai, senhor das faíscas ofuscantes, esmaga esse Marte impiedoso sob teus raios terríveis!

 Ó rei Lício, nós pedimos que de teu arco de ouro tuas flechas invencíveis fossem lançadas para nos socorrer, para nos proteger, bem como as tochas ardentes de Diana, com as quais ela percorre as colinas de tua terra. Invocamos também o deus de dourada tiara, que usa o nome de nosso país, Baco, de rubicundas faces, o deus da alegria, para que, com seu cortejo de ninfas, corra também em nosso auxílio, com seu flamejante archote, contra esse deus cruel que ninguém venera!

 Reaparece Édipo, que sai do palácio durante a última estrofe.

 ÉDIPO: (Ao Corifeu.) Tu ergues tua súplica; e o que vens pedir aos deuses, a proteção e o alívio a teus males, tu obterás, sem demora, se quiseres ouvir minhas palavras, e agir como se faz mister, em face do flagelo. Estas palavras, dirijo a todos vós, cidadãos, sem que nada saiba acerca do assassínio: sou estranho ao crime e a tudo o que dele se conta; assim, ouvi o que tenho a vos recomendar. Pouco avançaremos em nossas pesquisas se não me fornecerdes alguns indícios. Só depois desse atentado é que fui admitido como cidadão entre vós; e por isso a todos vós, tebanos, declaro o seguinte: quem quer que saiba quem matou Laio, filho de Lábdaco, fica intimado a vir à minha presença para mo dizer; mesmo que receie alguma conseqüência da denúncia, o criminoso que fale, antecipando uma acusação de outrem, pois nenhuma outra pena sofrerá, senão a de ser exilado do país, sem que sua vida corra perigo. Se alguém sabe que o homicida não é tebano, mas estrangeiro, não deve ocultar essa revelação, pois terá uma recompensa e o meu reconhecimento. Mas, se vós silenciais, ou se alguém, por, mero temor, deixar de indicar um amigo, ou de se denunciar, eis o que ordeno que se faça, e o que ele deve saber de mim: que nenhum habitante deste reino, onde exerço o poder soberano, receba esse indivíduo, seja quem for; e não lhe dirija a palavra, nem permita que ele participe de preces ou de holocaustos, ou receba a água lustral. Que todos se afastem dele, e de sua casa, porque ele é uma nódoa infamante, conforme acaba de nos revelar o oráculo do deus. Eis aí como quero servir à divindade e ao finado rei. E, ao criminoso desconhecido, eu quero que seja para sempre maldito! Quer haja cometido o crime só, quer tenha tido cúmplices, que seja rigorosamente punido, arrastando, na desgraça, uma vida miserável... E se algum dia eu o recebi voluntariamente no meu lar, que sobre mim recaia essa maldição e os males que ela trará! Eu vos conjuro, cidadãos! Atendei a tudo o que vos digo, por mim, pelo deus Apolo, e por este país que perece na esterilidade e na cólera divina! Ainda que essa purificação não nos fosse prescrita pelo deus, não seria possível deixar que a cidade continuasse poluída, visto que o morto era um homem bom, e era o rei! Ao contrário, deveríamos realizar todas as pesquisas possíveis! Para tanto esforçar-me-ei agora, eu que herdei o poder que Laio exercia, eu que tive o seu lar, que recebi sua esposa como minha esposa, e que teria perfilhado seus filhos, se ele os tivesse deixado! Sim! Por todas essas razões, como se ele fosse meu pai, tudo farei para descobrir o assassino desse filho de Lábdaco, digno descendente de Polidoro, de Cadmo e do lendário Agenor. A todos quantos se recusem a me obedecer, desejo que os deuses lhes neguem todo e qualquer fruto da terra e prole de suas esposas; e quero que para sempre padeçam de todos os males que ora sofremos e de outros ainda mais cruéis. E a vós tebanos, que certamente aprovais meus desígnios, que a Justiça vos proteja, e que todos os deuses vos sejam propícios!

 CORIFEU: Eu te falarei, ó rei, conforme determinas com tuas tremendas maldições. Nenhum de nós foi o matador de Laio; nenhum de nós sabe indicar quem o tenha sido! Que o deus Apolo, que ordenou essa pesquisa, possa revelar-nos quem teria, há tanto tempo já, cometido esse horrendo crime!

 ÉDIPO: É justo o que dizes; mas não está em nosso poder coagir a divindade a proceder de forma contrária à sua vontade.

 CORIFEU: Nova idéia proporei, além da que já disse.

 ÉDIPO: E se tens uma terceira, fala! Não deixes de a formular!

 CORIFEU: Conheço alguém que, quase tanto como Apolo, sabe dos mistérios profundos! É Tirésias. Se o interrogarmos, ó príncipe, ele nos dirá claramente o que se passou.

 ÉDIPO: Não esqueci esse recurso; a conselho de Creonte mandei dois emissários procurá-lo. Admira-me que ainda não tenham chegado.

 CORIFEU: Todos os rumores que outrora circulavam eram frívolos e antiquados.

 ÉDIPO: Que rumores? Eu estimaria conhecer tudo o que então se acreditava.

 CORIFEU: Diziam que Laio foi morto por uns viajantes.

 ÉDIPO: Também isso ouvi dizer; mas não apareceu uma só testemunha ocular.

 CORIFEU: Por muito pouco sensível que o assassino seja ao temor, quando souber da maldição terrível que proferiste, não resistirá!

 ÉDIPO: Quem não receou cometer um crime tal não se deixará impressionar por simples palavras.

 O CORO: Acaba de chegar quem tudo nos vai descobrir! Trazem aqui o divino profeta, o único, entre todos os homens, que sabe desvendar a verdade!

 

Entra Tirésias, velho e cego, guiado por um menino. Escoltam-no dois servidores de Édipo.

 ÉDIPO: ó Tirésias, que conheces todas as coisas, tudo o que se possa averiguar, e o que deve permanecer sob mistério; os signos do céu e os da terra... Embora não vejas, tu sabes do mal que a cidade sofre; para defendê-la, para salvá-la, só a ti podemos recorrer, ó rei! Apolo, conforme deves ter sabido por meus emissários, declarou a nossos mensageiros que só nos libertaremos do flagelo que nos maltrata se os assassinos de Laio forem descobertos nesta cidade e mortos ou desterrados. Por tua vez, Tirésias, não nos recuses as revelações oraculares dos pássaros, nem quaisquer outros recursos de tua arte divinatória; salva a cidade, salva a ti próprio, a mim e a todos, eliminando esse estigma que provém do homicídio. De ti nós dependemos agora! Ser útil, quando para isso temos os meios e poderes, é a mais grata das tarefas!

 TIRÉSIAS: Oh! Terrível coisa é a ciência quando o saber se torna inútil! Eu bem assim pensava mas creio que esqueci, pois do contrário não teria consentido em vir até aqui.

 ÉDIPO: Que tens tu, Tirésias, que estás tão desalentado?

 TIRÉSIAS: Ordena que eu seja reconduzido a minha casa, ó rei. Se me atenderes, melhor será para ti e para mim.

 ÉDIPO: Tais palavras, de tua parte, não são razoáveis, nem amistosas para com a cidade que te mantém, visto que lhe recusas a revelação que te solicita.

 TIRÉSIAS: Para teu benefício, eu bem sei, teu desejo é inoportuno. Logo, a fim de não agir imprudentemente...

 ÉDIPO: Pelos deuses! Visto que sabes, não nos ocultes a verdade! Todos nós, todos nós, de joelhos, te rogamos!

 TIRÉSIAS: Vós delirais, sem dúvida! Eu causaria a minha desgraça e a tua!

 ÉDIPO: Que dizes?!... Conhecendo a verdade, não falarás? Por acaso tens o intuito de nos trair, causando a perda da cidade?

 TIRÉSIAS: Jamais causarei tamanha dor a ti nem a mim! Por que me interrogas em vão? De mim nada ouvirás!

 ÉDIPO: Pois quê! Ó tu, o mais celerado de todos os homens! Tu irritarias um coração de pedra! E continuarás assim, inflexível e inabalável?

 TIRÉSIAS: Censuras em mim a cólera que estou excitando porque ignoras ainda a que eu excitaria em outros! Ignoras... e, no entanto, me injurias!

 ÉDIPO: Quem não se irritaria, com efeito, ouvindo tais palavras, que provam o quanto desprezas esta cidade!

 TIRÉSIAS: O que tem, de acontecer, acontecerá, embora eu guarde silêncio!...

 ÉDIPO: Visto que as coisas futuras fatalmente virão, tu bem podes predizê-las!

 TIRÉSIAS: Nada mais direi! Deixa-te levar, se quiseres, pela cólera mais violenta!

 ÉDIPO: Pois bem! Mesmo irritado como estou, nada ocultarei do que penso! Sabe, pois, que em minha opinião tu foste cúmplice no crime, talvez tenhas sido o mandante, embora não o tendo cometido por tuas mãos. Se não fosses cego, a ti, somente, eu acusaria como autor do crime.

 TIRÉSIAS: Será verdade? Pois EU! EU é que te ordeno que obedeças ao decreto que tu mesmo baixaste, e que, a partir deste momento, não dirijas a palavra a nenhum destes homens, nem a mim, porque o ímpio que está profanando a cidade ÉS TU!

 ÉDIPO: Quê? Tu te atreves, com essa imprudência, a articular semelhante acusação, e pensas, porventura, que sairás daqui impune?

 TIRÉSIAS: O que está dito, está! Eu conheço a verdade poderosa!

 ÉDIPO: Quem te disse isso? Com certeza não descobriste por meio de artifícios!

 TIRÉSIAS: Tu mesmo! Tu me forçaste a falar, bem a meu pesar!

 ÉDIPO: Mas, que dizes, afinal? Não te compreendo bem! Vamos! Repete tua acusação!

 TIRÉSIAS: Afirmo QUE ÉS TU o assassino que procuras!

 ÉDIPO: Oh! Não repetirás impunemente tão ultrajante acusação!

 TIRÉSIAS: Será preciso que eu continue a falar, provocando ainda mais tua cólera?

 ÉDIPO: Fala o quanto quiseres... O que dizes de nada valerá.

 TIRÉSIAS: Pois eu asseguro que te uniste, criminosamente, sem o saber, àqueles que te são mais caros; e que não sabes ainda a que desgraça te lançaste!

 ÉDIPO: Crês tu que assim continuarás a falar, sem conseqüências?

 TIRÉSIAS: Certamente! Se é que a verdade tenha alguma força!

 ÉDIPO: Sim! Ela a tem; mas não em teu proveito! Em tua boca ela já se mostra fraca... Teus ouvidos e tua consciência estão fechados, como teus olhos.

 TIRÉSIAS: E és tu, ó rei infeliz!, que me fazes agora esta censura... mas um dia virá, muito breve, em que todos, sem exceção, pior vitupério hão de formular contra ti!

 ÉDIPO: Tu vives na treva... Não poderias nunca ferir a mim ou a quem quer que viva em plena luz.

 TIRÉSIAS: Não é destino teu cair vítima de meus golpes. Apolo para isso bastará, pois tais coisas lhe competem.

 ÉDIPO: Isso tudo foi invenção tua, ou de Creonte?

 TIRÉSIAS: Creonte em nada concorreu para teu mal; tu somente és teu próprio inimigo.

 ÉDIPO: Ó riqueza! Ó poder! Ó glória de uma vida consagrada à ciência, quanta inveja despertais contra o homem a quem todos admiram! Sim! Porque do império que Tebas pôs em minhas mãos sem que eu o houvesse pedido resulta que Creonte, meu amigo fiel, antigo desde os primeiros dias, se insinua sub-repticiamente sob mim, e tenta derrubar-me, subornando este feiticeiro, este forjador de artimanhas, este pérfido charlatão que nada mais quer senão dinheiro, e que em sua arte é cego. Porque, vejamos: dize tu, Tirésias! Quando te revelaste um adivinho clarividente? Por que, quando a Esfinge propunha aqui seus enigmas, não sugeriste aos tebanos uma só palavra em prol da salvação da cidade? A solução do problema não devia caber a qualquer um; tornava-se necessária a arte divinatória. Tu provaste, então, que não sabias interpretar os pássaros nem os deuses. Foi em tais condições que eu aqui vim ter; eu, que de nada sabia; eu, Édipo, impus silêncio à terrível Esfinge; e não foram as aves, mas o raciocínio, o que me deu a solução. Tentas agora afastar-me do poder na esperança de te sentares junto ao trono de Creonte!... Quer me parecer que a ti, e a teu cúmplice, esta purificação de Tebas vai custar caro. Não fosses tu tão velho, e já terias compreendido o que resulta de uma traição!

 CORIFEU: A nosso ver, ó rei, tanto tuas palavras como as de Tirésias foram inspiradas pela cólera. Ora, não se trata agora de julgar esses debates; o que urge é dar cumprimento ao oráculo de Apolo.

 TIRÉSIAS: Se tu possuis o régio poder, ó Édipo, eu posso falar-te de igual para igual! Tenho esse direito! Não sou teu subordinado, mas sim de Apolo; tampouco jamais seria um cliente de Creonte. Digo-te, pois, já que ofendeste minha cegueira, que tu tens os olhos abertos à luz mas não enxergas teus males, ignorando quem és, o lugar onde estás, e quem é aquela com quem vives. Sabes tu, por acaso, de quem és filho? Sabes que é o maior inimigo dos teus, não só dos que já se encontram no Hades, como dos que ainda vivem na terra? Um dia virá em que serás expulso desta cidade pelas maldições maternas e paternas. Vês agora tudo claramente; mas em breve cairá sobre ti a noite eterna. Que asilo encontrarás que não ouça teus gemidos? Que recanto da terra não vibrará com tuas lamentações quando souberes em que funesto consórcio veio terminar tua antiga carreira? Tu não podes prever as misérias sem conta que te farão igual, na desdita, a teus filhos. E agora... podes lançar toda a infâmia sobre mim, e sobre Creonte, porque nenhum mortal, mais do que tu, sucumbirá ao peso de tamanhas desgraças!

 ÉDIPO: Quem poderá suportar palavras tais? Vai-te daqui, miserável! Retira-te e não voltes mais!

 TIRÉSIAS: Eu não teria vindo, se não me chamasses!

 ÉDIPO: Nunca pensei que viesses aqui dizer tantas tolices; do contrário, não te mandaria buscar!

 TIRÉSIAS: Tu me consideras tolo; mas para teus pais - os que te deram a vida - eu sempre fui ajuizado.

 ÉDIPO: Que pais? Espera um momento!... Dize: quem me deu a vida?

 TIRÉSIAS: Este dia mesmo far-te-á sabedor de teu nascimento e de tua morte!

 ÉDIPO: Como é obscuro e enigmático tudo o que dizes!

 TIRÉSIAS: Não tens sido hábil na decifração de enigmas?

 ÉDIPO: Podes insultar-me... Hás de me engrandecer ainda.

 TIRÉSIAS: Essa grandeza é que causa tua infelicidade!

 ÉDIPO: Se eu já salvei a cidade... O mais, que importa?

 TIRÉSIAS: Eu me retiro. Ó menino! Vem guiar-me!

 ÉDIPO: Sim... é prudente que ele te leve! Tua presença me importuna; longe daqui não me molestarás.

 TIRÉSIAS: Vou-me embora, sim; mas antes quero dizer o que me trouxe aqui, sem temer tua cólera, porque não me podes fazer mal. Afirmo-te, pois: o homem que procuras há tanto tempo, por meio de ameaçadoras proclamações, sobre a morte de Laio, ESTÁ AQUI! Passa por estrangeiro domiciliado, mas logo se verá que é tebano de nascimento, e ele não se alegrará com essa descoberta. Ele vê, mas tornar-se-á cego; é rico, e acabará mendigando; seus passos o levarão à terra do exílio, onde tateará o solo com seu bordão. Ver-se-á, também, que ele é, ao mesmo tempo, irmão e pai de seus filhos, e filho de esposo da mulher que lhe deu a vida; e que profanou o leito de seu pai, a quem matara. Vai, Édipo! Pensa sobre tudo isso em teu palácio; se me convenceres de que minto, podes, então, declarar que não tenho nenhuma inspiração profética.

 (Sai Tirésias)

 Édipo entra no palácio

 O CORO: Quem será o infeliz a quem o rochedo fatídico de Delfos designa como autor dos mais monstruosos crimes? Eis o momento em que ele deveria fugir, mais veloz que os rápidos cavalos e mais impetuoso que a tempestade! Porque, armado com os raios fulminantes, Apolo, filho de Júpiter, já se atira contra ele, perseguido pelas inexoráveis Fúrias.

 Do nevoento Parnaso acaba de chegar até nós um brado horrível: que todos persigam, pelo rasto que deixa, esse criminoso desconhecido; ele vagueia pelas florestas, esconde-se nas cavernas, ou galga as montanhas como um touro acuado. Infeliz, sua corrida insana isola-o cada vez mais dos homens; em vão procura fugir aos oráculos que nos vêm, do centro do mundo, e que, eternamente vivos, esvoaçam em tomo dele ...

 Terríveis - sim! -, terríveis são as dúvidas que me causam as palavras do hábil adivinho. Não sei se ele está ou não com a verdade; não atino o que deva pensar a respeito... Meu espírito vacila, incerto, sem compreender o passado nem o presente. Que conflito pode haver entre os filhos de Lábdaco e os de Políbio? Nem outrora nem hoje nada soubemos que forneça uma prova contra a honorabilidade de Édipo, e que nos leve a vingar, em favor dos Labdácidas, um crime cujo autor se ignora!

 Mas Júpiter e Apolo são clarividentes; eles conhecem as ações dos mortais; que um adivinho saiba, a tal respeito, mais do que nós, isso é que nada nos garante; só pela inteligência pode um homem sobrepujar a outro. Enquanto não se justificar a afirmação do adivinho, não apoiarei os que acusem Édipo. Porque foi perante todos que outrora veio contra ele a virgem alada; vimos bem o quanto ele é inteligente, e foi mediante essa prova magnífica que ele se tomou querido pela cidade. Assim, meu espírito nunca o acusará de um crime!

 Entra Creonte, possuído de forte irritação.

 CREONTE: Cidadãos! Acabo de saber que Édipo formulou contra mim gravíssimas acusações que eu não posso admitir! Aqui estou para me defender! Se, no meio da desgraça que nos aflige, ele supõe que eu o tenha atacado, por palavras ou atos, não quero permanecer sob o vexame de semelhante suspeita, pois para mim isso não seria ofensa de somenos valor, mas sim uma profunda injúria, qual a de ser por vós, e por meus amigos, considerado um traidor!

 CORIFEU: Talvez essa acusação injuriosa lhe tenha sido ditada pela cólera momentânea e não pela reflexão.

 CREONTE: Quem teria insinuado a Édipo que por meu conselho o adivinho proferiu aquelas mentiras?

 CORIFEU: Realmente, ele assim declarou, mas não sei com que fundamento.

 CREONTE: E foi com olhar sereno e raciocínio seguro que ele ergueu tal denúncia?

 CORIFEU: Não sei dizer.. Não posso penetrar no íntimo dos poderosos; mas... ei-lo que sai do palácio.

 Entra Édipo, bruscamente.

 ÉDIPO: Que vieste fazer aqui? Tens coragem de vir a minha casa, tu, que conspiras contra minha vida e pretendes arrancar-me o poder? Vamos! Dize-me, pelos deuses! Pensas tu, por acaso, que eu seja um covarde, ou um demente, para conceberes tais projetos? Supunhas que eu nunca viesse a saber de tuas ações secretas, e que não as punisse logo que fossem descobertas? Não será intento de um louco pretender, sem riqueza e sem prosélitos, uma autoridade que somente nos podem dar o povo e a fortuna?

 CREONTE: Sabes o que importa fazer? Deixa-me responder a tuas palavras de igual para igual, e só me julgues depois de me teres ouvido!

 ÉDIPO: Tu és hábil em manobrar a palavra; mas eu não me sinto disposto a ouvir-te, sabendo que tenho em ti um inimigo perigoso.

 CREONTE: A tal respeito, ouve o que te quero dizer.

 ÉDIPO: Sim; ouvirei; mas não insistas em afirmar que não és culpado.

 CREONTE: Tu te enganas se crês que a teimosia seja uma virtude.

 ÉDIPO: E tu não te iludas pensando que ofenderas a um parente sem que recebas o devido castigo.

 CREONTE: De acordo; tens razão nesse ponto; mas dize-me qual foi a ofensa que te fiz!

 ÉDIPO: Foste tu, ou não, quem me aconselhou a mandar vir esse famoso profeta?

 CREONTE: Sim, e mantenho minha opinião acerca dele.

 ÉDIPO: Há quanto tempo Laio...

 CREONTE: Mas que fez ele? Não compreendo!...

 ÉDIPO: ...desapareceu, vítima de um assassino?

 CREONTE: Já lá se vão muitos anos!

 EDIPO: E já nesse tempo Tirésias exercitava sua ciência?

 CREONTE: Sim; ele já era, então, sábio e respeitado.

 EDIPO: E, nessa época, disse ele alguma coisa a meu respeito?

 CREONTE: Nunca! Pelo menos em minha presença.

 EDIPO: E vós não fizestes pesquisas a fim de apurar o crime?

 CREONTE: Fizemos, certamente, mas nada se descobriu.

 EDIPO: Como se explica, pois, que esse homem tão hábil não tivesse dito então o que diz hoje?

 CREONTE: Não sei; e, quando desconheço uma coisa, prefiro calar-me!

 EDIPO: Tu não ignoras, no entanto, e deves em plena consciência confessar...

 CREONTE: Que devo eu confessar? Tudo o que souber direi!

 EDIPO: ...que, se ele não estivesse de conluio contigo, nunca viria dizer que a morte de Laio foi crime por mim cometido.

 CREONTE: Que ele disse tu bem sabes. Mas também eu tenho o direito de te dirigir algumas perguntas.

 ÉDIPO: Pois interroga-me! Tu não me convencerás de que haja sido eu o assassino.

 CREONTE: Ora, vejamos: tu desposaste minha irmã?

 ÉDIPO: E impossível responder negativamente a tal pergunta.

 CREONTE: E reinas tu neste país com ela, que partilha de teu poder supremo?

 ÉDIPO: Sim; e tudo o que ela deseja eu imediatamente executo.

 CREONTE: E não serei eu igualmente poderoso, quase tanto como vós?

 ÉDIPO: Sim; e por isso mesmo é que pareces ser um pérfido amigo.

 CREONTE: Não, se raciocinares como eu. Examina este primeiro ponto: acreditas que alguém prefira o trono, com seus encargos e perigos, a uma vida tranqüila, se também desfruta poder idêntico? Por minha parte, ambiciono menos o título de rei do que o prestígio real; e como eu pensam todos quantos saibam limitar suas ambições. Hoje alcanço de ti tudo quanto desejo: e nada tenho a temer... Se fosse eu o rei, muita coisa, certamente, faria contra a minha vontade... Como, pois, iria eu pretender a realeza, em troca de um valimento que não me causa a menor preocupação? Não me julgo tão insensato que venha a cobiçar o que não seja, para mim, ao mesmo tempo honroso e proveitoso. Atualmente, todos me saúdam, todos me acolhem com simpatia; os que algo pretendem de ti procuram conseguir minha intercessão; para muitos é graças a meu patrocínio que tudo se resolve. Como, pois, deixar o que tenho para pleitear o que dizes? Tamanha perfídia seria também uma verdadeira tolice! Não me seduz esse projeto; e, se alguém se propusesse a tentá-lo, eu me oporia à sua realização. Eis a prova do que afirmo: vai tu mesmo a Delfos e procura saber se eu não transmiti fielmente a resposta do oráculo. Eis outra indicação: se tu provares que eu estou de concerto com o adivinho, condenar-me-ás à morte não por um só voto, mas por dois: o teu e o meu. Não me acuses baseado em vagas suspeitas, sem me ouvir primeiro. Não é lícito julgar levianamente, como perversos, os homens íntegros, assim como não é justo considerar íntegros os homens desonestos. Rejeitar um amigo fiel, penso eu, equivale a desprezar a própria vida, esse bem tão precioso! O tempo fará com que reconheças tudo isso com segurança, pois só ele nos pode revelar quando os homens são bons, ao passo que um só dia basta para evidenciar a maldade dos maus.

 CORIFEU: Para quem, sinceramente, quer evitar a injustiça, ele muito bem te falou, ó rei. É sempre falível o julgamento de quem decide sem ponderação!

 ÉDIPO: A fim de revidar um ataque às oculta surdido contra mim, devo estar pronto, sempre, para a defesa. Se eu esperar tranqüilamente, os planos deste homem serão realizados e os meus fracassarão.

 CREONTE: Que pretendes tu, nesse caso? Exilar-me do país?

 ÉDIPO: Não! É tua morte, e não apenas o desterro, o que eu quero.

 CREONTE: Mas... quando puderes comprovar que eu conspiro contra ti!

 ÉDIPO: Falas como quem se dispõe a não obedecer?

 CREONTE: Sim, porque vejo que não estás deliberando com discernimento.

 ÉDIPO: Só eu sei o que me convém fazer no meu interesse.

 CREONTE: Mas, nesse caso, também o meu interesse deve ser atendido!

 ÉDIPO: Mas tu és um traidor!

 CREONTE: E se o que afirmas não for verdade?

 ÉDIPO: Seja como for, eu devo ser obedecido!

 CREONTE: Não, se ordenares o que não for justo!

 ÉDIPO: Ó cidade de Tebas!

 CREONTE: Também eu posso convocar a cidade; ela não é tua, exclusivamente!

 O CORO: Acalmai-vos, ó Príncipes! Muito a propósito vem ter convosco a rainha Jocasta; vejo-a neste momento sair do palácio. Ela dará, certamente, a vosso dissídio, feliz solução.

 Entra Jocasta

 JOCASTA: Por que provocastes, infelizes, esse imprudente debate? Não vos envergonhais em discutir questões íntimas no momento em que atroz calamidade cai sobre o país? Volta a teu palácio, Édipo; e tu, Creonte, a teus aposentos. Não exciteis, com palavras vãs, uma discórdia funesta.

 CREONTE: Édipo, teu marido, ó minha irmã, julga acertado tratar-me cruelmente, impondo-me ou o desterro para longe da pátria ou a morte.

 ÉDIPO: É verdade, minha esposa. Acusei-o de conspirar contra a minha pessoa.

 CREONTE: Que seja eu desgraçado! Que morra maldito se cometi a perfídia de que me acusas!

 JOCASTA: Pelos deuses, Édipo, crê no que ele te diz! E crê, não só pelo juramento que proferiu, mas também em atenção a mim e a todos quantos estão presentes!

 O CORO: Deixa-te persuadir, rei Édipo! Nós te pedimos!

 ÉDIPO: Como, e em quê, desejais que eu ceda?

 O CORO: Este homem não é criança, Édipo! Se prestou tão solene juramento, respeita-o!

 ÉDIPO: Sabeis, acaso, o que ele pretende?

 CORIFEU: Eu sei!

 ÉDIPO: Explica-te, pois!

 CORIFEU: Não acuses por uma vaga suspeita, e não lances à desonra um amigo que se votou, ele próprio, à eterna maldição!

 ÉDIPO: Sabes que tal pedido equivale a querer minha morte, ou meu exílio para país distante?

 CORIFEU: Não! Pelo Deus supremo! Por Hélio! Que eu morra, detestado pelos deuses e pelos homens se tiver semelhante pensamento! Mas a desgraça que me aflige, e a todo o povo de Tebas, já é bastante; não queiramos acrescentar-lhe novos motivos de desgosto!

 ÉDIPO: Que ele se retire, pois, ainda que disso resulte minha morte, ou meu desterro! Cedo a vosso pedido, ó tebanos! - e não ao dele; só o vosso me comoveu! Creonte, esteja onde estiver, ser-me-á sempre odioso!

 CREONTE: Cedeste contra a vontade, vê-se bem; mas sentirás remorsos quando tua cólera se extinguir. Um caráter como o teu é uma fonte de dissabores.

 ÉDIPO: Não me deixarás, finalmente, em paz? Queres, ou não, sair de Tebas?

 CREONTE: Sim! Eu partirei! Doravante não me verás, nunca mais! Para os tebanos, porém, serei sempre o mesmo!

 (Sai Creonte)

 CORIFEU: Ó rainha, por que não conduzes teu marido para o palácio?

 JOCASTA: Farei o que pedes, quando souber o que se passou.

 CORIFEU: Fúteis palavras provocaram vagas suspeitas; ora, mesmo o que carece de fundamento muitas vezes nos corrói o coração.

 JOCASTA: E as ofensas foram recíprocas?

 CORIFEU: Oh! Certamente que sim.

 JOCASTA: E que diziam eles?

 CORIFEU: Melhor fora, ó rainha, encerrar este conflito no ponto em que ficou, pois já nos amargura demais o infortúnio de nosso país.

 ÉDIPO: Vês tu a que situação chegamos, apesar de tuas boas intenções? E tudo porque descuraste de meus interesses e deixaste diminuir a afeição que tinhas por mim.

 O CORO: Já muitas vezes te dissemos, ó príncipe, que nós seríamos, em nossa própria opinião, loucos e imprudentes se te abandonássemos agora, a ti, que nos puseste no bom caminho quando a pátria sucumbia! Sê, pois, hoje como outrora, o nosso guia!

 Momento de silêncio

 JOCASTA: Mas, pelos deuses, Édipo, diz-me: porque razão te levaste a tão forte cólera?

 ÉDIPO: Vou dizer-te, minha mulher, porque te venero mais do que a todos os tebanos! Foi por causa de Creonte e da trama que urdiu contra mim.

 JOCASTA: Explica-me bem o que houve, para que eu veja se tuas palavras me convencem.

 ÉDIPO: Ele presume que tenha sido eu o matador de Laio!

 JOCASTA: Mas... descobriu ele isso, ou ouviu de alguém?

 ÉDIPO: Ele insinuou isso a um adivinho, um simples impostor, porquanto ele próprio nada se atreve a afirmar.

 JOCASTA: Ora, não te preocupes com o que dizes; ouve-me, e fica sabendo que nenhum mortal pode devassar o futuro. Vou dar-te já a prova do que afirmo. Um oráculo, outrora foi enviado a Laio, não posso dizer se por Apolo em pessoa, mas por seus sacerdotes, talvez... O destino do rei seria ode morrer vítima do filho que nascesse de nosso casamento. No entanto - todo mundo sabe e garante -, Laio pereceu assassinado por salteadores estrangeiros, numa encruzilhada de três caminhos. Quanto ao filho que, tivemos, muitos anos antes, Laio amarrou-lhe as articulações dos pés e ordenou que mãos estranhas o precipitassem numa montanha inacessível. Nessa ocasião, Apolo deixou de realizar o que predisse!... Nem o filho de Laio matou o pai, nem Laio veio a morrer vítima de um filho, morte horrenda, cuja perspectiva tanto o apavorava! Eis aí como as coisas se passam, conforme as profecias oraculares! Não te aflijas, pois; o que o deus julga que deve anunciar, ele revela pessoalmente!

 Momento de silêncio

 ÉDIPO: Como esta narrativa me traz a dúvida ao espírito, mulher! Como me conturba a alma!...

 JOCASTA: Que inquietação te pode causar esta lembrança do nosso passado?

 ÉDIPO: Suponho que disseste ter sido Laio assassinado numa tríplice encruzilhada?

 JOCASTA: Sim; disseram então, e ainda agora o afirmam.

 ÉDIPO: E onde se deu tamanha desgraça?

 JOCASTA: Na Fócida, no lugar exato em que a estrada se biparte nos caminhos que vão para Delfos e para Dáulis.

 ÉDIPO: E há quanto tempo aconteceu isso?

 JOCASTA: A notícia aqui chegou pouco antes do dia em que foste aclamado rei deste país.

 ÉDIPO: Ó Júpiter! Que quiseste fazer de mim?

 JOCASTA: Dize-me, Édipo, que é que tanto te impressiona assim?

 ÉDIPO: Não me perguntes nada, ainda. Como era então Laio? Que idade teria?

 JOCASTA: Era alto e corpulento; sua cabeça começava a branquear. Parecia-se um pouco contigo.

 ÉDIPO: Ai de mim! Receio que tenha proferido uma tremenda maldição contra mim mesmo, sem o saber!

 JOCASTA: Que dizes tu? Teu semblante causa-me pavor, ó príncipe!

 ÉDIPO: Estou aterrado pela suposição de que o adivinho tenha acertado... Mas tu me elucidarás melhor se acrescentares algumas informações.

 JOCASTA: Também eu me sinto inquieta... mas responderei imediatamente a tuas perguntas.

 ÉDIPO: Viajava o rei Laio com reduzida escolta, ou com um grande número de guardas, como um poderoso soberano que era?

 JOCASTA: Ao todo eram cinco os viajantes, entre os quais um arauto. Um só carro conduzia Laio.

 ÉDIPO: Ali! Agora já se vai esclarecendo tudo... Mas quem te forneceu estas minúcias, senhora?

 JOCASTA: Um servo que voltou, o único que conseguiu salvar-se.

 ÉDIPO: E vive ainda no palácio, esse homem?

 JOCASTA: Não. Quando voltou a Tebas, e viu que tu exercias o poder real, em substituição ao falecido rei Laio, ele me pediu, encarecidamente, que o mandasse para o campo, a pastorear os rebanhos, para que se visse o mais possível longe da cidade. E eu atendi a esse pedido, pois na verdade, mesmo sendo ele um escravo, merecia ainda maior recompensa.

 ÉDIPO: Seria possível trazê-lo imediatamente ao palácio?

 JOCASTA: Certamente. Mas... para que chamá-lo?

 ÉDIPO: É que eu receio, senhora, já ter descoberto muita coisa do que ele me vai dizer.

 JOCASTA: Pois ele virá. Mas também eu tenho o direito de saber, creio eu, o que tanto te inquieta.

 ÉDIPO: Não te recusarei essa revelação, visto que estou reduzido a uma última esperança. A quem poderia eu, com mais confiança, fazer uma confidência de tal natureza, na situação em que me encontro?

 Momento de silêncio

 ÉDIPO: (Prosseguindo, em tom de confidência.) Meu pai é Políbio, de Corinto; minha mãe, Mérope, uma dória. Eu era considerado um dos mais notáveis cidadãos de Corinto quando ocorreu um incidente fortuito, que me devia surpreender, realmente, mas que eu talvez não devesse tomar tanto a sério, como fiz. Um homem, durante um festim, bebeu em demasia, e, em estado de embriaguez, pôs-se a insultar-me, dizendo que eu era um filho enjeitado. Possuído de justa indignação, contive-me naquele momento, mas no dia imediato procurei meus pais e interroguei-os a respeito. Eles irritaram-se contra o autor da ofensa, o que muito me agradou, pois o fato me havia profundamente impressionado. À revelia de minha mãe e de meu pai, fui ao templo de Delfos; mas, às perguntas que propus, Apolo nada respondeu, limitando-se a anunciar-me uma série de desgraças, horríveis e dolorosas; que eu estava fadado a unir-me em casamento com minha própria mãe, que apresentaria aos homens uma prole malsinada, e que seria o assassino de meu pai, daquele a quem devia a vida. Eu, diante de tais predições, resolvi, guiando-me apenas pelas estrelas, exilar-me para sempre da terra coríntia, para viver num lugar onde nunca se pudesse realizar - pensava eu - as torpezas que os funestos oráculos haviam prenunciado. Caminhando, cheguei ao lugar onde tu dizes que o rei pereceu. A ti, mulher, vou dizer a verdade, do princípio ao fim. Seguia eu minha rota, quando cheguei àquela tríplice encruzilhada; ali, surgem-me pela frente, em sentido contrário, um arauto, e logo após, um carro tirado por uma parelha de cavalos, e nele um homem tal como me descreveste. O cocheiro e o viajante empurraram-me violentamente para fora da estrada. Furioso, eu ataquei o cocheiro; nesse momento passava o carro a meu lado, e o viajante chicoteou-me na cara com o seu duplo rebenque. Ah! mas ele pagou caro essa afronta; ergui o bordão com que viajava, e bati-lhe com esta mão; ele caiu, à primeira pancada, no fundo do carro. Atacado, matei os outros. Se aquele velho tinha qualquer relação com Laio, quem poderá ser mais desgraçado no mundo do que eu? Que homem será mais odiado pelos deuses? Nenhum cidadão, nenhum forasteiro o poderá receber em sua casa, nem dirigir-lhe a palavra...Todos terão que me repelir.. E o que é mais horrível é que eu mesmo proferi essa maldição contra mim! A esposa do morto, eu a maculo tocando-a com minhas mãos porque foram minhas mãos que o mataram... Não sou eu um miserável, um monstro de impureza? Não é forçoso que me exile, e que, exilado, não mais possa voltar à minha pátria de origem, nem ver os que me eram caros, visto que estou fadado a unir-me à minha mãe e a matar meu pai, a Políbio, o homem que me deu a vida e me criou? Não pensaria bem aquele que afirmasse que meu destino é obra de um deus malvado e inexorável? Ó Potestade divina, não e não! Que eu desapareça dentre os humanos antes que sobre mim caia tão acerba vergonha!

 CORIFEU: Também a nós, ó rei! Também a nós tudo isso emociona; mas tem esperança, e aguarda a testemunha que tudo esclarecerá!

 ÉDIPO: Oh! Sim! É a única esperança que me resta, a palavra desse pastor que aí vem.

 JOCASTA: E por que a presença desse homem te poderá tranqüilizar?

 ÉDIPO: Vou dizer-te já: se o seu depoimento coincidir com o que disseste, eu estou salvo!

 JOCASTA: Que revelação teria sido essa, tão importante, que ouviste de mim?

 ÉDIPO: Conforme declaraste há pouco, esse homem dissera que Laio foi assassinado por salteadores. Se ele persistir em tal afirmativa, não teria sido eu o assassino, pois ninguém confunde um homem só com vários. Mas se ele se referir a um só agressor, é evidente que fui eu o autor do crime!...

 JOCASTA: Sim! Certamente! Ele o disse, e não poderá agora negar seu testemunho! Todo o povo o ouviu, então; não fui eu a única. No entanto, ainda que mude agora sua narração, nunca poderá provar que a morte de Laio foi obra tua, visto que pelo oráculo de Apolo o rei devia morrer às mãos de meu filho; ora, esse filho infeliz não poderia ter ferido Laio, porque morreu antes dele. Em tal caso, eu não daria mais nenhum valor aos oráculos! ...

 ÉDIPO: Tens razão. Manda, pois, chamar esse escravo, sem demora.

 JOCASTA: Vou mandar, imediatamente! Mas entremos no palácio. Nada quero fazer que te desagrade.

 (Saem Édipo e Jocasta)

 O CORO: Possa eu conservar a mais santa pureza quer em minhas palavras quer em minhas ações! Possa eu obedecer na vida às leis sublimes, instituídas pela Providência Divina, da qual é o Olimpo o supremo pai! Não as criou a natureza mortal dos humanos, e nunca as apagará o sono do esquecimento; vive nelas uma potestade divina, a que a velhice não pode atingir.

 O orgulho é que produz o tirano; e quando tiver em vão acumulado excessos e imprudências, precipitar-se-á do fastígio de seu poder num abismo de males, de onde não mais poderá sair! Mas suplicamos ao deus que não cesse a campanha pela salvação da cidade; a divindade será sempre a nossa protetora.

 A todo aquele que se mostrar prepotente por suas ações ou por suas palavras: que não venera santuários nem respeita a Justiça, que uma funesta morte o castigue, punindo-o por sua insolência! Se ele fizer fortuna pelo sacrilégio e pela impiedade, quem mais quererá manter o domínio de sua alma? Se tão nefandos crimes merecem honrarias, de que vale entoar cânticos em louvor dos deuses? Não mais iremos ao santuário central da terra a fim de prestar culto ao deus, nem ao templo de Abê, nem a Olímpia, se esses oráculos não mais se realizarem, de modo que possam ser citados como exemplo a todos os homens, ó deus todo poderoso, se mereces esse título, Zeus, senhor supremo, que isso não passe despercebido a teu poder imortal; se de nada valeram os oráculos enviados a Laio, serão desprezados; Apolo não mais será honrado com o devido esplendor, e oculto dos deuses desaparecerá!

 Entra Jocasta com suas damas de companhia.

 JOCASTA: Senhores desta cidade, tive a idéia de levar aos templos dos deuses estas coroas e estes perfumes. Édipo continua perturbado por inquietação terrfvel... Recusa-se a interpretar de modo sensato os oráculos novos de acordo com os antigos; ao contrário, confia em quantos lhe venham dizer coisas apavorantes! Visto que por minhas súplicas nada consegui de ti, Apolo Lício, que és o deus mais próximo de nós, irei, como suplicante, com estes dons votivos, para que, dissipando todas as sombras do terror, nos tragas a tranqüilidade. Todos nós nos sentimos amedrontados, como marinheiros que vêem o seu piloto em desatino.

 Enquanto ela depõe suas oferendas, surge um mensageiro.

 MENSAGEIRO: Poderíeis dizer-me, ó estrangeiros, onde fica o palácio do rei Édipo? Dizei-me, sobretudo: onde está o rei?

 CORIFEU: Seu palácio, ei-lo aqui. O rei está em seus aposentos. Aqui está a rainha, sua esposa e mãe de seus filhos.

 MENSAGEIRO: Que viva sempre feliz a esposa legítima desse homem!

 JOCASTA: E que o mesmo aconteça a ti, peregrino, porque bem o mereces, por tuas bondosas palavras. Mas dize por que vieste, e que notícias nos queres anunciar.

 MENSAGEIRO: Coisas favoráveis para tua casa e teu marido, senhora.

 JOCASTA: De que se trata? De onde vens tu?

 MENSAGEIRO: De Corinto. A notícia que te trago ser-te-á muito agradável; sem dúvida que o será; mas pode também causar-te alguma contrariedade.

 JOCASTA: Mas que notícia será essa, que produz, assim, um duplo efeito?

 MENSAGEIRO: Os cidadãos do Istmo resolveram aclamar rei a Édipo, segundo dizem todos.

 JOCASTA: Quê? O Venerando Políbio já não exerce o poder?

 MENSAGEIRO: Não... A morte levou-o à sepultura.

 JOCASTA: Que dizes tu? Morreu Políbio?

 MENSAGEIRO: Que eu pereça já, se não for a pura verdade!

 JOCASTA: Mulher, corre! Vai, ligeira, dar esta notícia ao rei. Oh! Que será dos oráculos sagrados! Foi com receio de matar a esse homem que Édipo se exilou; e agora se vê que não foi morto por Édipo, mas sim pelo destino!

 Entra Édipo

 ÉDIPO: Jocasta, minha querida esposa, por que me mandaste chamar?

 JOCASTA: Ouve o que diz este homem, e vê de que valem os oráculos do deus!

 ÉDIPO: Quem é ele, e que novas nos traz?

 JOCASTA: Acaba de chegar de Corinto, e comunica-nos que Políbio, teu pai, deixou de viver.

 ÉDIPO: Que dizes, estrangeiro?! Fala tu mesmo!

 MENSAGEIRO: Se deve ser essa a minha primeira declaração, eu a confirmo; sabe que teu pai faleceu.

 ÉDIPO: Foi vítima de alguma traição, ou por enfermidade?

 MENSAGEIRO: Por pequeno que seja, um abalo moral pode matar um homem idoso.

 ÉDIPO: Pelo que vejo, ele morreu em conseqüência de alguma doença.

 MENSAGEIRO: Ele já não era jovem!

 ÉDIPO: Ora eis aí, minha mulher! Para que, pois, dar tanta atenção ao solar de Delfos e aos gritos das aves no ar? Conforme o oráculo, eu devia matar meu pai; ei-lo já morto e sepultado, estando eu aqui, sem ter sequer tocado numa espada... A não ser que ele tenha morrido de desgosto, por minha ausência... caso único em que eu seria o causador de sua morte! Morrendo, levou Políbio consigo o prestígio dos oráculos; sim! os oráculos já não têm valor algum!

 JOCASTA: E não era isso o que eu dizia, desde muito tempo?

 ÉDIPO: Sim; é a verdade; mas o medo me apavorava.

 JOCASTA: Doravante não lhes daremos mais atenção.

 ÉDIPO: Mas... não deverei recear o leito de minha mãe?

 JOCASTA: De que serve afligir-se em meio de terrores, se o homem vive à lei do acaso, e se nada pode prever ou pressentir! O mais acertado é abandonar-se ao destino. A idéia de que profanarás o leito de tua mãe te aflige; mas tem havido quem tal faça em sonhos... O único meio de conseguir a tranqüilidade de espírito consiste em não dar importância a tais temores.

 ÉDIPO: Terias toda a razão se minha mãe não fosse viva; mas, visto que ela vive ainda, sou forçado a precaver-me, apesar da justiça de tuas palavras.

 JOCASTA: No entanto, o túmulo de teu pai já é um sossego para ti!

 ÉDIPO: Certamente! Mas sempre receio aquela que vive.

 MENSAGEIRO: E quem é a mulher que te causa esses temores?

 ÉDIPO: É Mérope, ó velho; que era casada com Políbio.

 MENSAGEIRO: E que tem ela, para provocar tantas apreensões?

 ÉDIPO: É um oráculo dos deuses, estrangeiro! Um oráculo terrível.

 MENSAGEIRO: Podes revelar-me esse oráculo, ou é vedado a outros conhecê-lo?

 ÉDIPO: Pois vais saber: Apolo disse um dia que eu me casaria com minha própria mãe, e derramaria o sangue de meu pai. Eis aí por que resolvi, há muitos anos, viver longe de Corinto... Tive razão; mas é tão agradável contemplar o rosto de nossos pais!

 MENSAGEIRO: E foi por causa desses receios que te exilaste de lá?

 ÉDIPO: Também porque não queria ser o assassino de meu pai, ó velho!

 MENSAGEIRO: Oh! Por que não te livrei eu de tais cuidados, eu, que sempre te quis bem?

 ÉDIPO: Seguramente, eu te recompensaria por tamanho benefício, como seria de justiça!

 MENSAGEIRO: E foi precisamente por isso que aqui vim ter, para que, depois de teu regresso a Corinto, eu possa colher algum proveito.

 ÉDIPO: Mas eu não irei residir com os meus parentes, em caso algum!

 MENSAGEIRO: Meu filho, vê-se bem que não sabes o que fazes!

 ÉDIPO: Por que dizes isso, velho! Pelos deuses, explica-te!

 MENSAGEIRO: Se é por esse motivo que não queres retomar a tua casa...

 ÉDIPO: Receio que Apolo venha a ser um deus que realmente diga a verdade.

 MENSAGEIRO: Temes, pois, praticar um crime de incesto em teu lar?

 ÉDIPO: É isso, tão-somente, ó velho, o que me assusta!

 MENSAGEIRO: Sabes, por acaso, que esse receio absolutamente não se justifica?

 ÉDIPO: Como não? Pois se eles foram meus progenitores...

 MENSAGEIRO: Políbio nenhum parentesco de sangue tinha contigo!

 ÉDIPO: Que dizes?!... Políbio não era meu pai?

 MENSAGEIRO: Era-o tanto como eu; nem mais nem menos!

 ÉDIPO: E como se explica que meu pai tenha sido para mim o que é um estranho qualquer?

 MENSAGEIRO: E que ele não era teu pai, como eu não sou!

 ÉDIPO: E por que me considerava, então, seu filho?

 MENSAGEIRO: Porque há muitos anos ele te recebeu, de minhas mãos!

 ÉDIPO: E apesar de me ter assim recebido queria-me tanto bem!

 MENSAGEIRO: Eu explico: até então ele não tinha tido filhos...

 ÉDIPO: E tu me tinhas achado, ou comprado, quando fui por ti entregue a ele?

 MENSAGEIRO: Eu te havia encontrado na grota do Citéron.

 ÉDIPO: Que fazias tu nesses lugares?

 MENSAGEIRO: Eu apascentava ali um rebanho montanhês.

 ÉDIPO: Eras, então, pastor e trabalhavas por conta de alguém? .

 MENSAGEIRO: Sim... e fui o teu salvador, meu filho!

 ÉDIPO: E de que mal sofria eu, quando me encontraste, em tão miserável condição?

 MENSAGEIRO: As articulações de teus pés poderiam dar a prova disso...

 ÉDIPO: Que antiga dor tu me recordas assim!

 MENSAGEIRO: Eu te desamarrei; tu tinhas as extremidades dos pés furadas.

 ÉDIPO: Oh! Que horrível cicatriz eu conservei desses primitivos anos!

 MENSAGEIRO: Daí proveio o nome que te demos.

 ÉDIPO: Dize-me – pelos deuses! – quem ordenou tal coisa: meu pai, ou minha mãe?

 MENSAGEIRO: Não sei dizer; mas aquele que te deixou em minhas mãos certamente saberá.

 ÉDIPO: Tu me recebeste, então, de outro? Não me encontraste abandonado?

 MENSAGEIRO: Não; foi um pastor que te entregou a mim.

 ÉDIPO: Quem é ele? Podes indicá-lo?

 MENSAGEIRO: Ele se dizia servo de Laio.

 ÉDIPO: Do antigo rei deste país?

 MENSAGEIRO: Precisamente! Era um pastor desse rei.

 ÉDIPO: Vive ainda este homem? Ser-me-á possível vê-lo?

 MENSAGEIRO: (Aos Coreutas.) Vós, que viveis nesta cidade, certamente podereis responder melhor do que eu!

 ÉDIPO: (Aos Coreutas.) Há, entre vós, quem conheça o pastor a quem ele se refere, ou que o tenha visto no campo ou na cidade? Respondei, pois é este o momento em que deve ser esclarecido esse caso.

 O CORO: Suponho que se trata do camponês que tu queres ver; mas Jocasta é quem pode certificar-te a respeito.

 ÉDIPO: (A Jocasta.) Senhora, acreditas que o homem a quem mandamos há pouco chamar seja o mesmo a quem este mensageiro se refere?

 JOCASTA: De quem te falou ele? Ora..., não penses nisso; o que ele diz não tem importância alguma.

 ÉDIPO: É impossível que com tais indícios eu não descubra, afinal, a verdade acerca de meu nascimento.

 JOCASTA: Pelas divindades imortais! Se tens amor a tua vida, abandona essa preocupação. (À parte.) Já é bastante o que eu sei para me torturar.

 ÉDIPO: Tranqüiliza-te! Mesmo que eu tivesse sido escravo desde três gerações, tu não serás humilhada por isso!

 JOCASTA: Não importa! Escuta-me! Eu te suplico! Não insistas nessa indagação!

 ÉDIPO: Em caso algum desistirei de elucidar esse mistério.

 JOCASTA: No entanto, é para teu bem que assim te aconselho.

 ÉDIPO: Acredito... mas esses conselhos teus há muito me importunam!

 JOCASTA: Infeliz! Tomara que tu jamais venhas a saber quem és!

 ÉDIPO: (Aos Coreutas.) Afinal, vai ou não vai alguém procurar esse pastor? Deixemo-la orgulhar-se de sua opulenta jerarquia!

 JOCASTA: Ai de ti, mísero infeliz! Eis o único título que te posso dar; e nunca mais te tratarei de outra forma!

 Sai Jocasta. Momento de silêncio.

 CORIFEU: Por que razão, ó rei, tua esposa se retira, possuída de tamanho desespero? Receio bem que dessa estranha atitude possam provir novos dissabores.

 ÉDIPO: Que venha o que vier, mas minha origem, por humilde que seja, eu quero conhecer! Ela, sem dúvida, orgulhosa como mulher, envergonha-se por meu baixo nascimento. Eu, porém, considero-me um protegido da Fortuna, e por isso não me sentirei amesquinhado. Sim, ela é que é minha mãe, e os anos que foram passando ora me diminuíam, ora me exaltavam... Tal é minha origem; nada mais poderá modificá-la. Por que, pois, haveria eu de renunciar a descobrir o segredo de meu nascimento?

 O CORO: Se eu posso devassar o futuro, e se tenho lúcido o espírito, ó Citéron, tu não verás a próxima lua cheia sem que te veneremos, a ti, como compatriota de Édipo, como seu protetor e pai; nós te festejaremos em danças sagradas, como benfeitor de nossos soberanos. Ó Febo complacente, que minhas palavras te agradem!

 Qual teria sido, ó meu filho, dessas virgens imortais, a que te concebeu, depois de se ter unido a Pan, teu pai, que erra nas montanhas, ou depois de ter sido amada por Lóxias? Todas as plantas silvestres, lhe são queridas! Talvez Mercúrio, que domina o Cilênio, ou o deus Baco, que vive nas colinas, te haja recebido como filho por algumas das ninfas do Hélicon, com as quais eles costumam folgar!

 Aproxima-se o velho pastor de Laio,  conduzido por dois servos de Édipo.

 ÉDIPO: Amigos, se me é lícito fazer conjeturas acerca de um homem a quem nunca vi, creio que vem ali o pastor a quem há tanto tempo procuramos. Sua idade está de acordo com a do mensageiro; os dois homens que o acompanham, eu os reconheço; são servos meus. (Ao Corifeu.) - Tu, porém, que o deves ter visto anteriormente, deves saber mais do que eu.

 CORIFEU: Sim; eu o conheço, fica-o sabendo. Ele pertencia a Laio; e era o seu mais dedicado servidor.

 ÉDIPO: (Ao Mensageiro) Quero que me digas agora ó mensageiro de Corinto; é esse o homem de quem falavas?

 MENSAGEIRO: É ele mesmo! Ei-lo diante de ti!

 ÉDIPO: Ó velho, olha bem para mim e responde a todas as perguntas que te vou propor. Pertenceste outrora a Laio?

 O SERVO: Sim; eu era seu escravo; mas ele não me adquiriu; eu fui criado em seu palácio.

 ÉDIPO: Que fazias lá? Qual era tua ocupação?

 O SERVO: Por quase toda a minha vida tenho sido pastor.

 ÉDIPO: Em que sítios permanecias com mais freqüência?

 O SERVO: Ora andava pelo Citéron, ora pelas terras próximas.

 ÉDIPO: Lembras-te de já ter visto este homem?

 O SERVO: Mas que fazia ele? De quem me falas tu?

  ÉDIPO: Deste que aqui está! Já o encontraste alguma vez?

 O SERVO: Não posso responder já... Não me recordo bem...

 MENSAGEIRO: Isso não me surpreende, senhor! Ele não se recorda, mas eu vou reavivar sua lembrança. Estou certo de que ele me conheceu no Citéron, ele com dois rebanhos, e eu com um só, fomos vizinhos durante três semestres inteiros, da Primavera até reaparecer o Arcturo. Depois, voltei para meus estábulos, e ele foi para os apriscos de Laio. Está certo? Não foi isto mesmo?

 O SERVO: Dizes bem... Mas isso foi já há muito tempo!

 MENSAGEIRO: Vejamos agora: lembras-te de haver confiado uma criança para que eu a criasse como meu próprio filho?

 O SERVO: Que dizes tu? Por que me perguntas isso?

 MENSAGEIRO: Eis aqui, meu amigo, aquele que era então um menino pequenino!

 O SERVO: Desgraçado! Por que não te calas?

 ÉDIPO: Não te irrites contra ele, meu velho! São tuas palavras, e não as dele, que merecem a nossa indignação.

 O SERVO: Que mal fiz eu, bondoso rei?

 ÉDIPO: Não respondeste o que devias a propósito do menino a quem ele se refere.

 O SERVO: Ele fala sem saber, e perde seu tempo.

 ÉDIPO: Pois se não responderes por bem, responderás à força!

 O SERVO: Eu te suplico - pelos deuses! -, não faças mal a um velho!

 ÉDIPO: Que um de vós lhe amarre imediatamente as mãos às costas!

 O SERVO: Que desgraçado que sou! Por que me fazes isso? Que queres tu saber?

 ÉDIPO: A criança de quem se trata, tu lhe entregaste?

 O SERVO: Sim! Melhor fora que nesse dia eu morresse!

 ÉDIPO: Pois é o que te acontecerá hoje, se não confessares a verdade!

 O SERVO: Mas... com mais certeza ainda, se eu disser a verdade, estou perdido!

 ÉDIPO. Quer me parecer que este homem procura evasivas.

 O SERVO: Não! Eu te disse, ó rei; que realmente eu lhe dei a criança.

 ÉDIPO: E de quem a recebeste? Era tua? Foi-te entregue por alguém?

 O SERVO: Não... Não era minha... Eu a recebi de uma pessoa...

 ÉDIPO: De que cidadão tebano? De que família?

 O SERVO: Em nome dos deuses eu te peço, ó rei, não me perguntes mais nada!

 ÉDIPO: Tu és um homem morto se eu tiver de repetir essa pergunta!...

 O SERVO: Pois bem! Aquele menino nasceu no palácio de Laio!

 ÉDIPO: Era um escravo? Era um descendente dele ou de sua família?

 O SERVO: Ai de mim! Isso é que me será horrível dizer!

 ÉDIPO: E para mim será horrível ouvir! Fala, pois! Assim é preciso!

 O SERVO: Diziam que era filho dele próprio. Mas aquela que está no interior de tua casa, tua esposa, é quem melhor poderá dizer a verdade.

 ÉDIPO: Foi ela que te enviou a criança?

 O SERVO: Sim, rei.

 ÉDIPO: E para quê?

 O SERVO: Para que eu a deixasse morrer.

 ÉDIPO: Uma mãe fez isso! Que desgraçada!

 O SERVO: Assim fez, temendo a realização de oráculos terríveis...

 EDIPO: Que oráculos?

 O SERVO: Aquele menino deveria matar seu pai, assim diziam...

 ÉDIPO: E por que motivo resolveste entregá-1o a este velho?

 O SERVO: De pena dele, senhor! Pensei que este homem o levasse para sua terra, para um país distante... Mas ele o salvou da morte para maior desgraça! Porque, se és tu quem ele diz, sabe que tu és o mais infeliz dos homens !

 ÉDIPO: Oh! Ai de mim! Tudo está claro! Ó luz, que eu te veja pela derradeira vez! Todos sabem: tudo me era interdito: ser filho de quem sou, casar-me com quem me casei... e... e... eu matei aquele a quem eu não poderia matar!

 Desatinado, Édipo corre para o interior do palácio; retiram-se os dois pastores; a cena fica vazia por algum tempo.

 0 CORO: Ó gerações de mortais, como vossa existência nada vale a meus olhos! Qual a criatura humana que já conheceu felicidade que não seja a de parecer feliz, e que não tenha recaído após, no infortúnio, finda aquela doce ilusão? Em face de seu destino tão cruel, ó desditoso Édipo, posso afirmar que não há felicidade para os mortais!

                                                              *             *             *

 Tuas ambições, ergueste-as bem alto, e chegaste a possuir a mais promissora riqueza. Ó Júpiter! Só ele pôde vencer a horrenda Esfinge, de garras aduncas e de cantos enigmáticos; e assim apresentou-se diante de nós como uma torre de defesa contra a morte. Desde então, ó Édipo, nós fizemos de ti nosso rei, e, consagrado pelas mais altas honrarias, foste o senhor supremo da poderosa Tebas.

                                                                *             *             *

 E agora, quem pode haver no mundo que seja mais miserável? Quem terá sofrido, no decurso da vida, mais rude abalo, precipitando-se no abismo da mais tremenda ignomínia? Ilustre e querido Édipo, tu, que no leito nupcial de teu pai foste recebido como filho e como esposo; dize: como por tanto tempo esse abrigo paterno te pôde suportar em silêncio?

                                                                *             *             *

  Só o tempo, que tudo vê, logrou, enfim, ao cabo de tantos anos, condenar esse himeneu abominável, que fez de ti pai, com aquela de quem eras filho! Filho de Laio, prouvera aos deuses que nunca te houvéramos visto! Condoído, eu choro tua desgraça, com lamentações da mais sincera dor! No entanto, para dizer-te a verdade, foi graças a ti que um dia pudemos respirar tranqüilos e dormir em paz!

  

Entra um emissário, que vem do interior do palácio.

 EMISSÁRIO: Ó vós, que sereis sempre os chefes mais respeitados deste país. Se ainda prezais a família de Lábdaco, ides ouvir tristes notícias, receber profundos golpes e sofrer lutuosos desgostos! Creio que nem as águas do Íster nem as do Fásio seriam bastantes para purificar esta casa, tais e tantos são os crimes que nela se praticaram! Sabereis de novas desgraças, voluntárias, e não impostas; e os males que nós próprios nos causamos são precisamente os mais dolorosos!

 CORIFEU: Nada falta, ao que já sabemos, para que nos sintamos todos profundamente penalizados. No entanto, dize: que novas calamidades nos anuncias?

 EMISSÁRIO: Uma coisa fácil de dizer, como de ouvir: Jocasta, a nossa rainha, já não vive!

 CORIFEU: Oh! Que infeliz! Qual foi a causa de sua morte?

 EMISSÁRIO: Ela resolveu matar-se... E o mais doloroso vos foi poupado: vós não vistes o quadro horrendo de sua morte. Dir-vos-ei, no entanto, como sofreu a infeliz. Alucinada, depois de transpor o vestíbulo, atirou-se em seu leito nupcial, arrancando os cabelos em desespero. Em seguida, fechou violentamente as portas e pôs-se a chamarem altos brados por Laio, recordando a imagem do filho que ela teve há tantos anos, o filho sob cujos golpes deveria o pai morrer, para que ela tivesse novos filhos, se é que estes merecem tal nome! Presa da maior angústia, ela se lastimava em seu leito, onde, conforme dizia, tivera uma dupla e criminosa geração. Como teria morrido, não sei dizer, pois Édipo, aos gritos, precipitou-se com tal fúria que não pude ver a morte da rainha. Todos os nossos olhares voltaram-se para o rei, que, desatinado, corria ao acaso, ora pedindo um punhal, ora reclamando notícias da rainha, não sua esposa, mas sua mãe, a que deu à luz a ele e a seus filhos. No seu furor invocou um deus, não sei dizer qual, pois isto foi longe de mim! Então, proferindo imprecações horríveis, como se alguém lhe indicasse um caminho, atirou-se no quarto. Vimos então, ali, a rainha, suspensa ainda pela corda que a estrangulava... Diante dessa visão horrenda, o desgraçado solta novos e lancinantes brados, desprende o laço que a sustinha, e a mísera mulher caiu por terra. A nosso olhar se apresenta, logo em seguida, um quadro ainda mais atroz: Édipo toma seu manto, retira dele os colchetes de ouro com que o prendia, e com a ponta recurva arranca das órbitas os olhos, gritando: "Não quero mais ser testemunha de minhas desgraças, nem de meus crimes! Na treva, agora, não mais verei aqueles a quem nunca deveria ter visto, nem reconhecerei aqueles que não quero mais reconhecer!" Soltando novos gritos, continua a revolver e macerar suas pálpebras sangrentas, de cuja cavidade o sangue rolava até o queixo e não em gotas, apenas, mas num jorro abundante. Assim confundiram, marido e mulher, numa só desgraça, as suas desgraças! Outrora gozaram uma herança de felicidade; mas agora nada mais resta senão a maldição, a morte, a vergonha, não lhes faltando um só dos males que podem ferir os mortais.

 CORIFEU: E o desgraçado rei está mais tranqüilo agora?

 EMISSÁRIO: Ele grita que lhe abram as portas; que mostrem a todos os tebanos o parricida, o filho que... nem posso repetir-vos, cidadãos, as palavras sacrílegas que ele pronuncia... Quer sair, em rumo do exílio; não quer continuar no palácio depois da maldição temível que ele mesmo proferiu. No entanto, ele precisa de um guia, e de um apoio, pois seu mal é grande demais para que sozinho o suporte. Ele aí vem, e vo-lo mostrará. Ides ver um espetáculo que comoveria o mais feroz inimigo...

 Entra Édipo, ensangüentado e com os olhos vazados.

 CORIFEU: Ó sofrimento horrível de ver-se! Eis o quadro mais horripilante que jamais tenho presenciado em minha vida! Que loucura - ó infeliz! - caiu sobre ti? Que divindade levou ao cúmulo o teu destino sinistro, esmagando-te ao peso de males que ultrapassam a dor humana?

 Oh! Como és infeliz! Não tenho coragem sequer para volver meus olhos e contemplar-te assim; no entanto, eu quereria ouvir-te, interrogar-te e ver-te! Tal é o arrepio de horror que tu me causas!

 ÉDIPO: (Caminhando sem rumo certo.) Pobre de mim! Para onde irei? Para que país? Onde se fará ouvir a minha voz? Ó meu destino, quando acabarás de uma vez?!...

 CORIFEU: Numa miséria extrema, que não poderemos ver nem imaginar!

 ÉDIPO: Ó nuvem sombria, execrável treva que caiu sobre mim, escuridão pavorosa e sem remédio! Ai de mim! Como me traspassam as dores do meu sofrimento e a lembrança de meu infortúnio

 CORIFEU: No meio de tanta amargura é natural que te lamentes, infeliz, como vítima de duas desgraças.

 ÉDIPO: Tu és o único amigo que me resta, visto que tens pena deste mísero cego... Eu sei que estás aí... Na escuridão em que estou, reconheço tua voz!

 CORIFEU: Que horrível coisa fizeste, ó Édipo! Como tiveste coragem de ferir assim os olhos? Que divindade a isso te levou?

 ÉDIPO. Foi Apolo! Sim, foi Apolo, meus amigos, o autor de meus atrozes sofrimentos! Mas ninguém mais me arrancou os olhos; fui eu mesmo! Desgraçado de mim! Para que ver, se já não poderia ver mais nada que fosse agradável a meus olhos?

 CORIFEU: Realmente! É como dizes!

 ÉDIPO: Que mais posso eu contemplar, ou amar, na vida? Que palavra poderei ouvir com prazer? Ob! Levai-me para longe daqui, levai-me depressa para bem longe. Eu sou um réprobo, um maldito, a criatura mais odiada pelos deuses entre os mortais!

 CORIFEU: Como inspiras piedade, pelo sentimento que tens de tua sorte infeliz! Ah! Bom seria que eu nunca te houvesse conhecido!

 ÉDIPO: Que morra aquele que, na deserta montanha, desprendeu meus pés feridos e salvou-me da morte, mas salvou-me para minha maior desgraça! Ah! Se eu tivesse então perecido, não seria hoje uma causa de aflição e horror para mim e para todos!

 CORIFEU: Também eu assim preferiria!

 ÉDIPO: Eu não teria sido o matador de meu pai, nem o esposo daquela que me deu a vida! Mas...os deuses me abandonaram: fui um filho maldito, e fecundei no seio que me concebeu! Se há um mal pior que a desgraça, coube esse mal ao infeliz Édipo!

 CORIFEU: Teria sido razoável tua resolução, ó Édipo? Não sei dizer, na verdade, se te seria preferível a morte a viver na cegueira.

 ÉDIPO: Não queiras convencer-me de que eu deveria ter agido de outra forma! Não me dês conselhos! Não sei como poderia defrontar-me, no Hades, com meu pai, ou com minha infeliz mãe, porque cometi contra eles crimes que nem a forca poderia punir! E o semblante de meus filhos, nascidos como foram, como me seria possível contemplar? Não! Nunca mais poderia eu vê-los, nem ver a cidade, as muralhas, as estátuas sagradas dos deuses! Pobre de mim! Depois de ter gozado em Tebas uma existência gloriosa, dela me privei voluntariamente, quando a todos vós ordenei que expulsassem da cidade o sacrílego, aquele que os deuses declararam impuro, da raça de Laio! Descoberta, em mim mesmo, essa mancha indelével, ser-me-ia lícito contemplar os cidadãos tebanos sem baixar os olhos? Ah! certamente que não! E se fosse possível evitar que os sons nos penetrassem pelos ouvidos, eu privaria também da audição este miserável corpo, para que nada mais pudesse ver nem ouvir - pois deve ser um alívio ter o espírito insensível às próprias dores!...

 Momento de silêncio

 Ó Citéron, por que me recolheste? Por que, quando me deste abrigo, não me tiraste a vida? Assim eu nunca revelaria aos homens o segredo do meu nascimento. ó Políbio, ó cidadão de Corinto, velho palácio que eu supunha ser o meu lar paterno, quantos opróbrios deixasses crescer contigo, sob a aparente beleza que os ocultava! Porque hoje sou um criminoso, e descendente de criminosos, todo mundo o sabe! Ó tríplice encruzilhada! Vale sombrio, bosques de carvalhos, vós que absorvesses o sangue que era meu - o sangue de meu pai! -, que eu próprio derramei, lembrai-vos acaso dos crimes que então cometi, e dos que pratiquei mais tarde? Ó funesto himeneu, a que devo a vida, e que me facultou germinar pela segunda vez a mesma semente; por que mostraste um dia um pai, irmão de seus filhos, filhos irmãos de seu pai, e uma esposa que era também mãe de seu marido?! Quanta torpeza pode ocorrer entre criaturas humanas! Vamos! Não fica bem relembrar o que é hediondo fazer-se; apressai-vos - pelos deuses! - em esconder-me longe daqui, seja onde for! Matai-me, atirai-me ao mar, ou num abismo onde ninguém mais me veja! Aproximai-vos: não vos envergonheis de tocar num miserável; crede, e não temais, minha desgraça é tamanha que ninguém mais, a não ser eu, pode sequer imaginá-la!

 CORIFEU: Aí vem Creonte! No momento oportuno, para fazer certamente o que tu pedes, ou dar-te conselhos mais prudentes. Só ele, com efeito, resta, para te substituir no governo da cidade.

 ÉDIPO: Que lhe hei de dizer? Que posso eu dele esperar, eu, que fui tão injusto para com ele?

 Entra Creonte

 CREONTE: Não venho aqui para te insultar, Édipo, nem para censurar teus erros de outrora. Mas vós, tebanos, se não respeitais a jerarquia dos homens, ao menos em consideração pela chama sagrada de Hélio, que anima a natureza, não deveis exibir assim sem um manto este ser impuro, a quem nem a chuva nem a luz podem beneficiar. Conduzi este homem, imediatamente, ao interior do palácio; só entre os parentes, e deles tão-somente, é que há sentimentos de piedade ao ver e ouvir os males dos que lhes são caros.

 ÉDIPO: Em nome dos deuses! Visto que, contra minha expectativa, mostras tanta generosidade para com o maior dos criminosos, escuta-me! É no teu interesse que vou falar.

 CREONTE: E que queres tu obter de mim?

 ÉDIPO: Manda-me para fora deste país o mais depressa possível! Para um lugar onde ninguém me veja, nem possa dirigir a palavra a nenhum ser humano!

 CREONTE: Eu já teria agido assim, fica-o sabendo, se não preferisse, antes de tudo, consultar o deus acerca do que convém que se faça.

 ÉDIPO: Mas a resposta é perfeitamente conhecida; o parricida, o ímpio, é urgente matar.

 CREONTE: Sim; é o que se diz... mas na situação em que nos achamos é melhor saber exatamente o que se deve fazer.

 ÉDIPO: Resolveste, então, consultar o oráculo por causa de um miserável?

 CREONTE: E desta vez tu hás de dar crédito à sua resposta!

 ÉDIPO: Pois bem: eu te peço agora que tu mesmo dês sepultura, como julgares conveniente, àquela que jaz no palácio... Certamente cumprirás esse dever piedoso para quem tinha o mesmo sangue teu... Quanto a mim, não queiras que a cidade de meu pai me tenha como habitante enquanto eu vivo for; ao contrário, deixa-me ir para as montanhas, para o Citéron, minha triste pátria, que meus genitores escolheram para meu túmulo - para que eu morra por lá, como eles queriam que eu morresse. Aliás, eu bem compreendo que não será por doença, ou coisa semelhante, que terminarei meus dias; nunca foi alguém salvo da morte, senão para que tenha qualquer fim atroz. Mas, que meu destino siga seu curso! Quanto a meus filhos, Creonte, não te preocupes com os rapazes; são homens, e, onde quer que estejam, não lhes faltarão meios de vida. Mas, de minhas infelizes filhas, tão dignas de piedade, para quem nunca foi posta a mesa sem que eu estivesse ao lado, e que de minhas mãos recebiam sempre um pouco do alimento que para mim se preparava, oh! tem pena delas, eu te peço, e consente que eu ainda as acaricie com estas mãos, e que ainda deplore com elas a nossa desdita! Eu te conjuro, ó rei de tão nobre raça! Tocando-lhes com as mãos, eu acreditarei que as vejo, como no tempo em que as via realmente... Mas... que estou dizendo? Creio ouvir, ó deuses! O choro de minhas filhas!... Creonte, foi de pena de mim que mandaste chamar minhas filhas? Será verdade?

 CREONTE: Sim... fui eu que as mandei chamar; compreendi o desejo que sentes, e que tanto te preocupava.

 Entram Antígone e Ismênia, muito jovens, conduzidas por uma escrava. Elas se aproximavam do pai.

 ÉDIPO: Ora bem! Sê feliz, Creonte! Porque as mandaste vir até aqui, que os deuses te protejam, mais do que a mim! Onde estais vós, minhas filhinhas? Vinde ter comigo... Vinde a estas mãos...fraternas! Foram elas que, como vedes, privaram de luz os olhos outrora tão brilhantes de vosso pai! Eu nada via... e nada sabia, minhas filhas; mas eu vos dei a vida no mesmo seio do qual eu próprio havia nascido... E choro por vós, porque nunca mais vos verei, e porque penso nas amarguras que tereis de suportar pela vida além... A que assembléias de tebanos, a que festas solenes podereis comparecer, sem que volteis com os olhos banhados de lágrimas, impedidas de vê-las? E quando atingirdes a idade florida do casamento, quem será... sim! - quem será bastante corajoso para receber todos os insultos, que serão um eterno flagelo para vós e para vossa prole? Que mais falta para vossa infelicidade? Vosso pai? Mas ele matou seu pai, casou-se com sua mãe, e desse consórcio é que vós nascestes. Eis as injúrias com que vos perseguirão... Quem vos quererá por esposa? Ninguém! Ninguém, minhas filhas! Tereis de viver na solidão e na esterilidade. Filho de Meneceu, visto que tu serás doravante o único pai que elas terão - porquanto sua mãe, e eu, que lhes demos a vida, já não viveremos! -, não deixes que estas meninas sejam obrigadas a vaguear, mendigando; não consintas que sua desgraça se agrave em conseqüência da minha. Tem pena delas, vendo-as, tão jovens, privadas de todo o apojo, exceto o que lhes concederes. Dá-me um sinal de teu assentimento, homem generoso; toca-me com tua mão!...  E vós, minhas filhas, se me pudésseis compreender, eu vos daria conselhos; procurai sempre ter uma existência mais feliz do que a de vosso pai, onde quer que possais viver!

 

 CREONTE: Já choraste demais; volta agora ao palácio!

 ÉDIPO: Sou forçado a obedecer, bem a meu pesar!

 CREONTE: Tudo aquilo que se faz a tempo dá bom resultado.

 ÉDIPO: Sabes sob que condição eu irei?

 CREONTE: Dize, pois! Quando as ouvir, ficarei sabendo.

 ÉDIPO: Tu me banirás deste país.

 CREONTE: O que pedes só o deus te pode conceder.

 ÉDIPO: Mas eu sempre fui odiado pelas divindades!

 CREONTE: Em tal caso, alcançarás o que desejas.

 ÉDIPO: O que dizes é verdade?

 CREONTE: Não me agrada dizer o que não penso.

 ÉDIPO: Leva-me para longe daqui!

 CREONTE: Vem, pois... Deixa estas crianças!

 ÉDIPO: Oh! Não me prives disso, não! Eu te peço!

 CREONTE: Não queiras satisfazer todas as tuas vontades, Édipo! Bem sabes que tuas vitórias anteriores não te asseguraram a felicidade na vida!

 Édipo, conduzido por Creonte, entra vagarosamente no palácio; acompanham-no as duas meninas e os servos do rei.

 CORIFEU: Habitantes de Tebas, minha Pátria! Vede este Édipo, que decifrou os famosos enigmas! Deste homem, tão poderoso, quem não sentirá inveja? No entanto, em que torrente de desgraças se precipitou! Assim, não consideremos feliz nenhum ser humano enquanto ele não tiver atingido, sem sofrer os golpes da fatalidade, o termo de sua vida.