Espiritualidade Presbiteral: nos caminhos de Charles de Foucauld (Pe. Daniel Higino)
A Igreja, em seus muitos caminhos, dá sinais de imensa vitalidade. Para alguns, ultrapassada, marcada por intenso rigor moral, distante do povo e manchada por escândalos. Outros a tem como refúgio das intensas tempestades da vida. Ambos os olhares escondem os valores presentes na sua essência. Urge mergulhar no vigor da sua gênese para entendermos o seu significado e importância. Na definição Igreja Povo de Deus do Concílio Vaticano II encontramos a chave para essa compreensão. Entender tal definição nos remete à comunidade de discípulas/os, anunciadores do Reino de Deus. Consequentemente, caracteriza-se por sua dimensão profética, missionária e comunitária. Sua doutrina se baseia na fé em Jesus Cristo e no aprofundamento do Evangelho. Por pertença a essa identidade cristã, necessariamente se coloca em diálogo permanente com o Outro e sabe reconhecer as diferenças.
Na vida cristã surgem várias oportunidades de alimentarmos a fé. Chamamos de caminhos de espiritualidade, facilitadores dessa busca de comunhão com Deus. A leitura orante da bíblia, o ofício divino das comunidades, as diferentes devoções, a participação nos sacramentos e demais celebrações comunitárias elencam as práticas mais comuns. Ao longo das minhas andanças, descobri a espiritualidade de Charles de Foucauld. Esta contribui para a experiência do encontro com Deus no meu dia a dia. Da experiência do encontro, não há como escapar do questionamento permanente sobre a coerência entre fé e vida. A arte de viver nos ensina a aprender a fazer rupturas. Quando essas rupturas originam-se da busca pela coerência, geram dor e prazer, e, por fim, edificam o ser humano.
Certa vez conversei sobre espiritualidade com D. Pedro Casáldaliga, poeta, profeta e “meu padrinho”. Lembrou-me da importância da oração diária, oração comunitária e da fraternidade presbiteral. Apresentou-me a espiritualidade de Foucauld. No primeiro momento, acolhi com suspeita, sempre resisti à ideia de pertença a algum movimento. Ao mesmo tempo, fiquei com a memória do semblante místico de Ir. Genoveva Tapirapé1. Eu a conheci no mesmo período da conversa com D. Pedro. Resolvi, naquele ano de 1998, procurar informações a respeito. Veja só, ainda hoje participo. Digo a vocês, muitas das minhas decisões fundamentais na vida tiveram estreita relação com o caminho feito a partir dos meios da espiritualidade de Foulcauld.
Charles de Foucauld pertence ao grupo dos místicos contemporâneos. De família aristocrata de Strasburgo, oficial do exército francês, indisciplinado, muitas vezes, e entregue a inúmeros sabores e prazeres transformou sua vida numa entrega total de amor ao “Bem Amado Senhor Jesus”. Em expedição realizada em Marrocos, aos vinte e poucos anos de idade, para exploração do território se confrontou com a fé. Não a cristã da qual fazia parte. Descobriu a Deus no testemunho de vida dos mulçumanos e na piedosa oração por eles praticada. A profundidade como levavam a sério o amor a Deus lhe comoveu profundamente. Ratifica-se a ideia do rosto do Outro como caminho para revelar nossa verdadeira imagem. Sua prima Maria de Bondy levará Carlos para encontrar-se com Pe. Huvelin. Este pediu ao jovem para se ajoelhar e confessar, daí nasce a vocação religiosa do Ir. Carlos no mesmo instante da sua conversão.
O mergulho espiritual desse rapaz o leva à busca de Nazaré. Experimentou a Trapa, viveu como Ermitão, trabalhou como jardineiro na casa das irmãs clarissas em Nazaré. Não desejava a ordenação. Na busca do último lugar, tornar-se padre parecia contradizer esse ideal. Aceitou mais tarde a ordenação, imbuído no profundo amor à Eucaristia e à missão. O sacerdócio ministerial daria condições de conduzir mais as pessoas a Cristo.
A concepção missionária do Ir. Carlos se traduz em “gritar o Evangelho com a Vida”. Nada de pregação, discurso, catecismos ou doutrinas na evangelização. Para ele, vale o testemunho como caminho de sedução para as pessoas desejarem o conhecimento de Cristo. Ir. Carlos compreende a vida como entrega total ao absoluto de Deus. Desse modo, dedica-se cada vez mais a viver na pobreza e a compartilhar da vida com os mais pobres. Decide morar no deserto. Acolhe os tuaregues, migrantes, refugiados, soldados feridos, e tantos quantos precisassem. Morre assassinado aos 58 anos, no dia 1 de dezembro de 1916.
Enterrada a semente, ela cresceu e produziu seus frutos. Na época, tudo parecia fracassar. Ninguém aderiu à fé cristã, muito menos conseguiu formar comunidade; conheceu o abandono e experimentou a morte pelas mãos daquele a quem havia acolhido em sua casa. Com o passar dos anos, muitos buscaram sua inspiração. Diversas fraternidades se formaram. Comunidades religiosas, leigos/as, presbíteros alimentam-se da mística do Ir. Carlos para construir o caminho espiritual. Quais princípios norteiam tal espiritualidade? Simples! Viver o Evangelho. Implica viver com simplicidade; buscar a vida de Nazaré, ou seja, a busca do último lugar; fazer opção pelos pobres; construir solidariedade, a partilha e o bem viver. Para isso, sugerem-se alguns meios: leitura orante e diária da bíblia, adoração eucarística, revisão de vida, trabalho manual, dia da fraternidade e deserto mensal. Algo fundamental nessa caminhada acentua-se na discrição. Nada de ostentação ou ufanismos como se as fraternidades fossem o único caminho de salvação. Entende-se como meios possíveis de orientar a vida espiritual na caminhada de fé cristã. Na fraternidade sacerdotal afirmamos, sem desculpas, o caráter da nossa pertença ao presbitério local. Vive-se bem a espiritualidade do padre diocesano na fraternidade presbiteral em nossas dioceses.
Na família da espiritualidade de Foucauld surgiram congregações. Destacam-se as Irmãzinhas de Jesus e os Irmãozinhos de Jesus. O princípio básico dessas comunidades fundamenta-se em viver com os mais pobres do mesmo trabalho dos mais simples. Muitos padres e religiosas trabalham em fábricas, como varredores de rua, na limpeza de órgãos públicos, em circo, como cozinheiras/os, faxineiras/os em hotéis ou casa de famílias, em comunidades indígenas e ciganos. O último lugar de Nazaré se faz no lugar dos últimos de nosso tempo. Inaugura-se novo modo de vida contemplativa. Viver do trabalho sem desprezar a vida em fraternidade e oração. A obra literária que melhor traduz a mística da fraternidade chama-se Fermento na Massa de René Voillaume de 1956. Ao longo dos últimos 3 anos, leio e medito a obra.
Nos doze anos como padre, agradeço a Deus as inúmeras oportunidades. Santa Maria, a Faculdade dos Jesuítas, as comunidades mineiras e as de Sobradinho realizaram a minha vida presbiteral. Deus me conduz a uma nova missão. As minhas orações e inquietações iluminam novas perspectivas no ministério. Sem dúvida, geram crises e, com isso, rupturas. Incomoda-me, em alguns setores na Igreja, o afastamento das opções renovadoras do Concílio Vaticano II. Cresce o clericalismo e notamos certo fechamento ao diálogo com as diferenças. De outro lado, aumenta o desejo de inserir-se mais no mundo, aproximar-se das diferenças e conviver com excluídos. Continuo o meu ministério no aprofundamento mais radical da minha condição de batizado. Avalio como graça divina o atual momento da minha história eclesial. Rendo graças diariamente a Deus por esse momento da Arquidiocese de Brasília. A chegada de D. Sérgio a nossa Igreja particular sinaliza a vinda do tempo do “aggiornamento” de Brasília. Acredito chegar a hora da valorização dos inúmeros carismas, no fortalecimento das CEBs, na visibilidade eclesial dos grupos da caminhada, no amadurecimento da opção pelos pobres, no protagonismo dos leigos/as, no horizonte missionário da Igreja e na acolhida sempre mais misericordiosa e samaritana das pessoas em nossas comunidades.
Nos últimos meses, passei por uma revolução copernicana. Vocês devem se lembrar, nas minhas últimas cartas, dos problemas familiares e o surgimento da papelaria. Digo, dos desafios surgem as oportunidades. Resolvi, em acordo com o bispo, morar próximo da família. Nesse mesmo instante, Daniel Seidel, secretário da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Social e Transferência de Renda (SEDEST), cria nova subsecretaria para acompanhar a situação dos catadores de material reciclável no Distrito Federal. Surge o convite para eu participar desse projeto. Aceito. Com o devido diálogo com o bispo, inicio o trabalho. No início, com certo escrúpulo, mas inspirado no legado biográfico de D. Hélder (2) decidi enfrentar o desafio. Terei como missão, junto com a subsecretária Jaira Puppin e a Maria Paula, contribuir na organização dos catadores para a inclusão social dos mesmos, hoje em condições extremamente precárias.
No horizonte da nova missão, encontro respostas às buscas mais profundas na minha experiência de fé. Localizar-se mais no mundo. Exercer o ministério junto aos mais pobres. Conhecer de perto a vida dos trabalhadores. Aproximar-se do último lugar. Exercer a dinâmica da interação igualitária com as pessoas, no diálogo, na simplicidade e nos conflitos cotidianos. Conviver com outras crenças, filosofias de vida e indiferenças religiosas. Exige-se daí disciplina para o tempo da oração, do estudo, da dinâmica daquilo que é próprio do ministério. Procuro equacionar a responsabilidade e o compromisso assumido a evitar o mero ativismo sem consequências.
Com isso, tenho renunciado a outras oportunidades, como o aconchego diário das comunidades eclesiais, a contribuição nas assessorias, os encontros regionais e nacionais, os privilégios paroquiais, os elogios superficiais e outros benefícios clericais.
Nesse instante, torna-se difícil a presença nas reuniões e retiros do clero, a minha participação mais efetiva nos encontros da Fraternidade e retiros regionais e até mesmo o nacional. De outro lado, não abro mão da oração diária, da leitura orante, do ofício divino, da participação da Eucaristia e dos dias de deserto. Pareço estar próximo das intuições do Sodalício (3).
O ritmo de atividades exige a alvorada das 5hs e o recolhimento noturno das 22hs. Na semana, alterno a dedicação integral à luta dos catadores de material reciclável com as múltiplas reuniões de preparação do III Fórum de Teologia no Cerrado. Além do mais, acompanho, na medida do possível, as diversas atividades arquidiocesanas, tais como Rede Celebra, CEBs, CEBI, MAC, PJ, 5ª Semana Social Brasileira, Pastoral dos Migrantes e outras articulações. Nesse momento, inicia-se a preparação do Encontro Nacional de Fé e Política, previsto para novembro de 2013 aqui em Brasília. Além dessas atividades, acompanho a família no cuidado da saúde e na proteção integral de todos.
Texto longo e partilha verdadeira. Responde às perguntas de muitas pessoas quando me encontram. Trata-se de coerência de vida e espiritualidade. O Concílio abriu janelas e portas para pensarmos outros modos de exercer o ministério. Na Presbyterorum Ordinis (4) se diz: “Sejam ensinados também aos cristãos a não viverem só para si, mas segundo as exigências da nova lei da caridade, cada um, assim como recebeu a graça, a administre ao outro, e assim todos cumpram cristãmente os seus deveres na comunidade humana” (PO 6).
E ainda:
“Embora sejam devedores de todos, os presbíteros consideram como recomendados a si de modo particular os pobres e os mais fracos, com os quais o próprio Senhor se mostrou associado, e cuja evangelização é apresentada como sinal da obra messiânica” (PO 6).
Que a paz de Deus esteja em nossos corações e jamais percamos a esperança!
Fraternalmente: Daniel Higino Lopes de Menezes
4 de agosto de 2012 Dia do Padre
1 Ir. Genoveva pertence a congregação das Irmãzinhas de Jesus. Habita com os Tapirapés há 60 anos. A presença das irmãzinhas nessa comunidade indígena salvou os povos de extinção.
2 D. Hélder Câmara, na maior parte do seu ministério como presbítero, atuou como servidor público na secretaria de educação do Ceará e ministério da educação no Rio de Janeiro.
3 Sodalício pertence à família de Charles de Foucauld. Consiste na vivência das intuições do Ir. Carlos, com o mínimo de estruturas sem a exigência da vida comunitária no formato de Fraternidades.
4 Decreto do Concílio Vaticano II que trata sobre a vida e o ministério dos presbíteros.