Este é um estudo muito bonito, que tirei do boletim espanhol nº 03/98, maio-junho 1998, de Mássimo Massini.
São 10 textos para refletir e meditar.
"Se amas a verdade, seja amante do silêncio; à semelhança do sol, ele te fará luminoso ante Deus e te livrará dos fantasmas da ignorância; o silêncio te unirá ao mesmo Deus" (Isaac de Nínive).
"Pelo silêncio se reconhecem os que levam Deus em seu coração" (Gerhard Tersteegen).
O tema do silêncio, mais do que nunca, é atual. "Conforme vai diminuindo o prestígio da linguagem, aumenta o silêncio" (Susan Sontag).
"Em nenhum século a palavra tem sido tão pervertida, como o está agora, de sua finalidade natural que é a de fazer os homens se comunicarem. Falar e enganar (frequentemente também enganando a si mesmo) são agora quase sinônimos" (Ignazio Silone, "Pão e Vinho")
O desamor pela palavra, que está difundido como nunca, nasce da constatação de nosso falar e o dos demais chegou a ser, em geral, atos meramente físicos, charlatanice impessoal e banal. Em pouco tempo, falar converteu-se, para o homem do século 20, numa "escravidão como a do álcool"
A nossa civilização é caracterizada por palavras acabadas, desgastadas, sem conteúdo, soltas. "Uma civilização baseada nas palavras é uma civilização perturbada. As palavras criam confusão. As palavras não são a palavra. Não há palavras para a experiência mais profunda. Quanto mais desejo expressar-me, tanto menos me entendo. Na verdade, nem tudo é inexprimível em palavras, mas apenas a verdade viva"
Em nossas conversações cotidianas tropeçamos muito em palavras sem peso, inoperantes, que nos entorpecem intelectualmente, assim como tropeçam, resvalam, deterioram, apodrecem as palavras nos slogans, clichês, metáforas mortas, nos pré-fabricados linguísticos. A desumanização política de nosso século também tem levado à desumanização da linguagem. "O silêncio é uma alternativa. Quando as palavras da cidade estão cheias de barbáries e mentiras, nada fala mais forte que a poesia não escrita".
O poeta de nossos tempos, como o místico, provou pelo menos por uma só vez na vida o desejo de "morrer de silêncio".
Deste inferno do ruído, que é a nossa vida cotidiana, desta "galeria do vento das conversas vazias" e das tagarelices nasce espontânea a saudade do silêncio, o desejo de fazer emudecer as palavras instrumentalizadas e de descobrir as palavras do silencio. O homem contemporâneo, ainda que inconscientemente, está gritando com Verlaine ”Dai-me o silêncio e o amor do mistério".
"O silêncio pertence à estrutura fundamental do homem". Nele, "realiza-se o conhecimento autêntico" Para Ghandi, "o silêncio dilata o espaço de tempo de nossa vida".
Para Psichari, é "um grande mestre da verdade" . Para Lavelle, "é a forma mais perfeita do pudor " Para S. Paulo da Cruz, " a chave de ouro que conserva o tesouro das virtudes".
Para Bossuet,, "o guardião da alma". Para João de Jesus Maria, "tem certa afinidade com a contemplação divina e o arrebatamento (o êxtase) da alma, enquanto que faz entender também sem estrépitos de palavras coisas superiores à capacidade do mundo”.
O silêncio é todas estas coisas e muitas outras mais; sem dúvida, dado que muitos se esqueceram do silêncio é talvez mais oportuno esclarecer em seguida o que não é, excluindo algumas ideias errôneas que podem estar circulando.
EQUIPE DO BOLETIM ESPANHOL
1 - O SILÊNCIO NÃO É ALGO MERAMENTE NEGATIVO
Ele não é uma simples negação de conversação, mas algo positivo, um mundo completo em si mesmo. É algo mais que uma simples renúncia à palavra.
2 - O SILÊNCIO NÃO É A MERA AUSÊNCIA DE RUÍDO
Existe a ausência de ruído e existe o silêncio. O silêncio é a paz. A ausência de ruído, às vezes, é o nada angustioso. Há, por outro lado, ruídos que são essenciais ao silêncio: o tic-tac de um relógio, o murmúrio das folhas, o trilar de um pássaro, o agitar de suas asas.
3 - O SILÊNCIO NÃO É MUTISMO
O mutismo está para o silêncio como as conversações vãs estão para as palavras. Para existir como pessoa o homem tem que saber calar. Não é o mesmo que "ser mudo". A mudez é carência de palavra em que a pessoa se reprime. O calar, pelo contrário, supõe a pessoa, a única que pode estar naquele recolhimento sereno que se chama silêncio.
O mutismo é a "enfermidade mortal" do silêncio. O silêncio não é mudo e o que é mudo não é silêncio. As duas palavras se excluem. Não existe "silêncio mudo". O silêncio é uma forma de comunicação profunda, a mais profunda que existe na comunicação. O mudo, pelo contrário, se isola e se exclui de toda comunicação (Sciacca).
Uma pessoa pode ser calada por tristeza, temperamento, enfermidade etc. Mas a pessoa só pode ser silenciosa pela atenção, concentração, recolhimento, meditação, oração (idem).
4 - O SILÊNCIO NÃO SE RESUME NO MERO SILÊNCIO DOS LÁBIOS.
O silêncio não é nem pode ser unicamente externo. Ele tem diversos graus. Não se resume nos lábios, mas engloba todos os nossos membros e, mais ainda, a nossa alma. Existem o silêncio da palavra, da ação, da atitude, e o mais sublime, que se poderia chamar o "silêncio do silêncio".
Ele é a expressão de um estado interior. Para resolver não falar, a pessoa tem de viver internamente em silêncio. Mesmo calado, a pessoa pode estar às vezes cheio de ruídos, tumulto, ao passo que mesmo falando, pode ser interiormente silencioso, se as palavras que pronuncia são envolvidas pelo silêncio interior.
Quem julga os outros, por exemplo, mesmo calado, está falando continuamente: não sabe o que é o silêncio. Quando o que se fala é de alguma utilidade pessoal, na verdade é guardar silêncio.
Lembremo-nos de que todos os ruídos que nos rodeiam são menos barulhentos que nós mesmos. O verdadeiro ruído é o eco que as coisas produzem em nós. O silêncio é a sede [é] da palavra de Deus e se, quando falamos, nos limitamos a repetir essa palavra, então mesmo assim estamos em silêncio.
5 - NÃO EXISTE APENAS UMA CLASSE DE SILÊNCIO, MAS UMA PLURALIDADE DE SILÊNCIOS.
O silêncio é mais complexo do que parece. Não tem uma só forma de expressão, um só significado, mas pode assumir múltiplos significados. Levelle fala do silêncio de clausura, de discrição, de mortificação, de ameaça, de cólera, de rancor. Há também o da aceitação, o da promessa, o silêncio que suporta o peso de todas as recordações, sem evocar concretamente nenhuma delas, o que submete ao exame todas as possibilidades sem preferir nenhuma delas.
Há o silêncio pesado, como de chumbo, que oprime de tal modo que a menor palavra seria uma libertação. Há o silêncio frágil, cuja ruptura teme-se. Há o que protesta uma hostilidade irritada, por não encontrar os meios suficientemente fortes para expressar-se. Há o de amizade plena, feliz de haver superado todas as palavras e assim havê-las tornado inúteis. Há também o de admiração, e o de desprezo. Às vezes o silêncio faz sentir a presença do corpo como uma carga, que não se pode levantar; outras vezes, em troca, parece desprezá-lo como se se tivesse tornado um puro espírito.
6 - O SILÊNCIO NÃO É SEMPRE E TOTALMENTE UM FENÔMENO POSITIVO
Algumas pessoas conseguem o máximo de sua maldade no silêncio. Existe um silêncio que tem algo de divino, mas também um silêncio que tem algo de demoníaco. Existe o silêncio falso como a palavra falsa. Para Ghandi, o silêncio inspirado no medo não é silêncio.
São Gregório Magno aponta um "silêncio ruidoso" (o do rancor, do ódio, da inveja, que é um silêncio de dissipação. Às vezes o silêncio acaba sendo tão culpável como a charlatanice. Ainda São Gregório Magno diz que "Os demasiadamente calados, quando vêm os males alheios e continuam calados, são como quem visse suas feridas e não as deixasse curar; e se fazem responsáveis por sua morte, porque não quiseram arrancar aquele veneno que poderiam ter curado com suas palavras." Se o silêncio excessivo não fosse culpável, o profeta não teria dito: "Ai de mim, porque calei-me".
7 - O SILÊNCIO NÃO É DESAMOR À PALAVRA, NÃO É UMA FUGA DO REINO DA LINGUAGEM.
Escolher o silêncio não significa ter ódio à palavra ou desprezar a palavra anônima, irresponsável, impessoal, falsa, mas certamente é ter amor à palavra autêntica, e à que permanece fiel ao silêncio que a sustém. É, pois, uma valorização da linguagem e dos perigos que ela apresenta hoje a uma consciência livre.
Quem ama o silêncio, ama também a palavra verdadeira, que não quebra o silêncio. A palavra procede do silêncio, expressa-o e a ele retorna. O silêncio é o espaço entre as palavras; é o espaço em que elas ressoam. Elas evocam sua infinidade.
"Um ressoar da palavra autêntica só pode brotar do silêncio" (Heidegger). "A linguagem é a que abre caminho à possibilidade do silêncio. Quem não sabe calar-se é como quem quer só espirar e nunca inspirar" (Romano Guardini).
Quem quiser viver profundamente, tem que criar em sua vida espaços de silêncio, aventurar-se nesse continente vasto e inexplorável como a Antártida, que é o silêncio.
O silêncio é um meio privilegiado para se conseguir a própria salvação, para desfrutar a presença de Deus; enfim, para entrar em contato com o sagrado, com o divino. Como a palavra é a linguagem usada para se falar entre os homens, o silêncio é a linguagem com que a alma fala com Deus e obtém dele o que precisa (João Paulo de Sault). É com o silêncio também que Deus fala com a alma e a instrui sobre as verdades da salvação e dos mistérios divinos.
O silêncio é o antegozo de Deus. A pegada divina nas coisas se conserva mediante a união com o mundo do silêncio. O homem amante do silêncio pode ser um sinal do Absoluto. De seu interior Deus brota até involuntariamente, sem que haja necessidade de qualquer preocupação especial. O homem é esse ser no silêncio por meio do qual pode atualizar-se para nós a presença de Deus.
Santo Agostinho, no comentário ao Evangelho de São João, afirma que "nossa alma tem necessidade de solidão. Na solidão, se a alma está atenta, Deus se deixa ver. A multidão é ruidosa; para ver a Deus é necessário o silêncio". Sobre esse assunto, os místicos escreveram suas mais belas páginas. Por exemplo, São João da Cruz: "Deus só escuta o amor silencioso ". Ângelo Silésio: "Se tu pensas em Deus, tu o ouves dentro de ti, na medida do teu silêncio".
Por tudo isso, o homem contemporâneo tem necessidade da escola do silêncio. Dela aprenderá o respeito à palavra, o descarte de conversas banais e irresponsáveis, da idolatria e da fascinação da palavra. O silêncio o levará a uma nova atitude em relação à realidade. De fato, o espírito de silêncio favorece o reconhecimento da finitude humana e anuncia o mistério. Quem deixa espaço ao silêncio em sua vida, automaticamente se reconhece criatura e ciente da necessidade (e saudade) da oração. "O silêncio constrói a vida de oração", diz Thomas Merton. A oração é um exercício de silêncio, diz Saint Exupéry.
O silêncio não prova, não argumenta, não demonstra, só testemunha, e por isso possui uma força insuspeita. O silêncio pode ser como um grito que chega até o céu.
O silêncio, finalmente, abre a dimensão da transcendência e do divino. " A figura de um homem amante do silêncio torna palpável o próprio Deus como presença de Cristo. O homem que escuta, põe atenção e aguça o ouvido e obedece, é o lugar onde se realiza esta transformação."
Nunca como agora nosso mundo teve necessidade de tantos homens amantes do silêncio e talvez nunca como agora houve tão poucos! Aquele a quem agora lhe seja dado o dom da experiência do silêncio, pode estar agradecido, pode conservá-la bem e fazer com que ela seja fecunda.
Irmã Maria Amada de Jesus – Dorothee Quoniam)
A vida interior poderia consistir apenas nessa palavra: SILÊNCIO! O silêncio prepara a santidade, começa-a, continua-a e a aperfeiçoa. Deus, que é eterno, não diz mais que uma só palavra: o Verbo. De maneira semelhante seria desejável que todas as nossas palavras expressassem direta ou indiretamente essa única palavra: JESUS!
Esta palavra, “silêncio”, é belíssima! Podemos traduzi-la em doze graus:
1º – FALAR POUCO COM AS CRIATURAS E MUITO COM DEUS
É o primeiro passo, mas indispensável no caminho solitário do silêncio, para unir-se a Deus. É o silêncio em relação ao mundo, aos acontecimentos cotidianos.
2º – O SILÊNCIO NO TRABALHO E NOS MOVIMENTOS
Silêncio em nossas atitudes cotidianas e em todos os nossos sentidos, para percebermos mais claramente a voz de Deus. Afastar-se do ruído e tudo o que poderia distrair- nos. O Senhor nos chama ao deserto. Lá, ele falará ao nosso coração (Oséias).
3º – O SILÊNCIO DA IMAGINAÇÃO
Substituir as perturbações, tristezas, impressões, pela imagem do céu, do Senhor, da paixão de Cristo, das perfeições de Deus.
4º – O SILÊNCIO DA MEMÓRIA
Deixar de lado o passado e preencher a memória com a lembrança da misericórdia de Deus.
5º – O SILÊNCIO EM RELAÇÃO ÀS CRIATURAS
Saber retirar-se e ficar a sós com Deus, para conhecer seus segredos e a felicidade futura que nos espera. Deus nos infundirá um amargo desgosto pelo pecado e tudo o que possa nos separar dele.
6 – O SILÊNCIO DO CORAÇÃO.
Se se fizer silêncio em todos os aspectos que já vimos, ou seja, da língua, dos sentidos, da imaginação, da memória, nós saberemos criar a solidão, se não ao nosso redor, pelo menos no coração. Silenciar, no coração, tudo o que vem simbolicamente dele: os afetos, antipatias, desejos muito ardentes, dos ciúmes, do fervor exagerado, dos suspiros, enfim, em tudo o que for exagerado.
Um coração em silêncio é um coração puro, uma melodia para o coração de Deus. A lamparina se consome sem ruído diante do sacrário e o incenso sobe em silêncio até o trono do salvador. Eis o silêncio do amor!
7º – O SILÊNCIO DA PRÓPRIA NATUREZA E DO AMOR PRÓPRIO
É o silêncio tanto diante do elogio como diante do desprezo, calunias, murmurações que se fazem a nosso respeito, assim como nas alegrias e nos prazeres, nos trabalhos, no frio, no calor, na saúde, na enfermidade. É o silêncio do “eu” humano que passa ao querer divino.
8º – SILÊNCIO DA MENTE
Fazer calar os pensamentos inúteis, os pensamentos naturalmente agradáveis, pois são esses que prejudicam o silêncio da mente.
9º – SILÊNCIO DO JUÍZO: NUNCA JULGAR!
10º SILÊNCIO DA VONTADE
Seguir em tudo a vontade de Deus, sem nunca perguntar: “Por quê?” Ou “Até quando?” É o silêncio do abandono. O divino silêncio de Jesus em sua agonia.
11º – SILÊNCIO CONSIGO MESMO
Esquecer-se, fugir de si mesmo. É o silêncio do nada. É mais heróico que o silêncio da morte.
12º – SILÊNCIO COM DEUS
É aderir-se a Deus, apresentar-se, expor-se diante dele, oferecer-se a Ele, adorá-lo, amá-lo, escutá-lo, ouvi-lo, repousar nele. É o silêncio da eternidade, da união da alma com Deus.
( M.K.GHANDI)
1 – Quem está frente a frente com Deus, não fala; não conseguiria fazê-lo!
2 – O ruído não pode afastar o ruído. Só o silêncio pode fazer isso.
3 – O silêncio inspirado pelo medo não é verdadeiro silêncio.
4 – O homem empobrece as coisas muito mais com suas palavras que com seu silêncio.
5 – um sábio afirmou que só no silêncio nos preparamos à realização pessoal. E nossa vida futura estará conectada à nossa realidade profunda.
6 – Quanto tiveres dúvida se é melhor falar ou calar, escolhe o silêncio.
7 – O silêncio dilata o espaço de tempo de nossa vida.
8 – Se deixássemos de falar coisas inúteis e falássemos coisas úteis, usando um mínimo de palavras, economizaríamos muito tempo para nós mesmos e para os demais.
9 – Quantas coisas se podem fazer com o silêncio! Todos os dias tenho novas provas disso!
10 – Quando as conversações inúteis se convertem num costume, devemos libertar-nos dele, fechando decididamente nossa boca ou, se necessário, costurando nossos lábios.
11 – Até a menor palavra inútil ofende a verdade. Por esse motivo, é mais fácil praticar a verdade, se se guardar o silêncio.
12 – Descubro, cada dia mais, a importância do silêncio. O silêncio é é necessário para todos, mas para os que têm de trabalhar é mais valioso do que o ouro.
13 – Quanto mais avanço em minha vida, tanto mais me dou conta de que a maior conversação é o silêncio. Se for necessário falar, convêm fazê-lo brevemente e não usar duas palavras onde basta uma.
14 – os que têm um grande autocontrole, ou estão totalmente absortos em seu trabalho, falam pouco. Falar e trabalhar não combinam bem. Observa a natureza: ela trabalha continuamente, mas em silêncio.
15 – A observância do silêncio é sinal autêntico de quem prometeu sempre falar a verdade. Entretanto, a gente percebe que muitos dos que dizem que buscam a verdade falam demasiadamente. É necessário que procurem superar esse feio costume.
I – A chuva pára e um pássaro canta.
II- Deus, nosso Criador e Senhor, deu-nos uma linguagem para falar e ouvir. A linguagem é a chave que revela a odos o céu, mas quando a palavra nos avisa que o noivo vem, em seguida nos convida a nos comunicar com Ele, na solidão, sem pensamentos discursivos, no silêncio de todo o nosso ser. Quem não estiver disposto a abandonar suas ideias e suas palavras, não pode seguir adiante.
III- Não deseje ser acariciado e consolado por Deus: deseje, sobretudo, amá-lo. Da mesma forma, não deseje ansiosamente que os demais sintam consolação em Deus, mas sim, que os ajude a amar a Deus.
Não busque consolação ao falar de Deus, mas que Ele seja glorificado. Se você ama a Deus de verdade, nada pode consolar você mais do que a glória dele. Agindo assim, você será humilde o bastante para receber consolações de sua mão, pois desse modo, Ele estará se glorificando em nossa alma.
Muitas vezes o nosso silêncio e nossas orações levam mais as pessoas a conhecerem a Deus que todas as palavras que possamos dizer sobre Ele. O silêncio lhe dá glória.
IV – Se você vai à solidão com uma língua silenciosa, o silêncio dos seres mudos dividirá com você seu sossego. Entretanto, se você for à solidão com um coração silencioso, o silêncio da criação falará mais forte que as línguas dos homens e as dos anjos.
V- O silêncio da língua e da fantasia nos põe em contato com a paz das coisas que existem só por Deus e não por si mesmas, mas o silêncio de todos os desejos desordenados nos põe em contato com Deus. Aí, conseguiremos viver nele somente, Ele que nos fala com um silêncio muito mais profundo.
VI – Os que amam o barulho e a futilidade vivem cobrindo, com o seu barulho, o silêncio das selvas, das montanhas e do mar, por medo que um mundo tranquilo possa acusá-los de sua futilidade. Agem nervosamente, com o pretexto de agirem com alguma finalidade. Assim também acontece com o avião: ao passar, parece que nega a realidade das nuvens e do céu, com sua prepotência. Depois que ele passa, volta o silêncio e a tranquilidade. É o silêncio do mundo que é real. Nossos ruídos, nossos negócios nossas finalidades e todas as vãs afirmações relativas a eles, tudo isso é ilusório. Apesar de todos os ruídos externos, a árvore produz os seus frutos em silêncio.
VII – É muito difícil que um homem que só vê a natureza quando esta vai lhe proporcionar um lucro financeiro (como derrubar uma árvore para vender a madeira, ou matar um boi para um churrasco), é muito difícil que conheça o silêncio do amor e, portanto, o silêncio de Deus, que é a caridade, e que não destrói tudo o que ama, que dá vida a todos aos que atrai a esse seu silêncio.
VIII – O silêncio não existe em nossa vida só por si, mas está destinado a alguma outra coisa. O silêncio gera a palavra. Falamos para confessar a Cristo e permanecemos em silêncio para meditar sobre ele e entrar mais profundamente em seu silêncio, que é ao mesmo tempo o silêncio da morte e da vida eterna – o silêncio da noite de Sexta Feira Santa e a paz da manhã da Ressurreição.
IX – Recebemos no coração o silêncio de Cristo quando proferimos pela primeira vez de coração a palavra da fé. Trabalhamos nossa salvação no silêncio e na esperança. O silêncio é a força de nossa vida interior. O silêncio entra misteriosamente na composição de todas as virtudes e, inclusive, preserva nossa vida inteira da corrupção.
O silêncio da virtude é a caridade, que deve dar a cada virtude uma vida sobrenatural, e que é silenciosa, porque está arraigada em Deus. Sem esse silêncio, nossas virtudes são só sons, barulho exterior, manifestação que resulta em nada o que as virtudes manifestam é sua caridade interior, que tem um silêncio seu especial. E neste silêncio se esconde uma pessoa: Cristo, o mesmo escondido, assim como é proferido, no silêncio do Pai.
X – Se preenchermos a vida com o silêncio, viveremos de esperança e Cristo vive em nós e dá consistência à nossas virtudes. O silêncio é a base sólida onde está arraigada nossa confissão pública de fé, convertendo, também aos que ouvem ao silêncio de Cristo, onde descobrem a si próprios, o seu verdadeiro ser.
As palavras inúteis que falamos nos impedem de ouvir coisa alguma na profundidade de nosso coração, onde Cristo vive e fala em silêncio. E, o pior, falamos tudo o que não deveríamos falar e, quando precisamos declarar quem e o que somos, estaremos sem palavras, mostrando que não seremos nada, nunca.
XI – Tem que haver um momento do dia em que esquecemos tudo o que somos, o que sabemos, e nos coloquemos a rezar como se fosse a primeira vez da vida.
XII – No silêncio aprendemos a distinguir as coisas. Quem ama a Deus, também ama o silêncio, porque teme perder seu sentido de discernimento. Evita o ruído, que faz com que não se distinga a realidade da fantasia, confundindo pelo movimento todas as coisas num amontoado indefinível e indistinguível.
XIII – O silêncio que não ouve, não acende, mas apaga a chama de amor que brota da oração.
XIV – A vida não é um ininterrupto fluir de palavras que a morte interromperá. Ela é entremeada de silêncio. Muitos resistem ao fecundo silêncio do seu ser com ruídos contínuos dos pensamentos sem sentido, dos carros, do trânsito, das rádios... Confundem sua vida como ruído, para fugir da morte. Não sabem que os seus corações têm raízes num silêncio que não é morte, mas vida!
XVI – Se a morte for par nós como uma estrangeira indesejada, quer dizer que Cristo também é isso para nós, pois com a morte Cristo também vem, para trazer-nos a vida eterna que adquiriu para nós com sua própria morte. Por isso os que amam a vida eterna pensam sempre na própria morte. Sua vida está preenchida por um silêncio que é uma antecipada vitória sobre a morte. É no silêncio que a morte se torna nossa serva e até mesmo nossa amiga. Os pensamentos e orações que surjam do silencioso pensamento da morte são como árvores que crescem próximo à água. São pensamentos fortes que vencem o medo da desgraça porque derrotaram a paixão e o desejo.
XVII – Os santos são os que quiseram ser os mais pobres na vida e que, mais do que quaisquer outros, exultaram na suprema pobreza da morte.
A vida do homem se desenvolve entre o silêncio e a palavra; entre o calar e o falar. Na palavra, a unidade de matéria e espírito, que se chama homem, alcança sua máxima perfeição, pois esta é a expressão material de algo espiritual que estava escondido, que é o pensamento. Aí se forma, no encontro com o outro, o diálogo. Só o homem tem essa faculdade.
Quanto ao silêncio, deixar simplesmente de falar, até as pedras o fazem. Silêncio é quando o homem, depois de falar, volta-se a si mesmo e se cala, ou também quando, podendo falar, permanece calado. Só pode calar-se quem também pode falar. Porém, ser dono do próprio silêncio é uma virtude. Quem não sabe calar-se é como quem quer só espirar e nunca expirar. A humanidade de quem nunca se cala, dissolve-se.
Falar é mostrar ao outro o que tenho lá dentro, no mais íntimo de mim mesmo. Quando há reciprocidade na comunicação, quando pergunta e resposta, afirmação e objeção avançam em clareza e profundidade, isto quer dizer que eles se comunicaram com a verdade: um maravilhoso modo de estar juntos.
Há horas em que a verdade contemplada interiormente não precisa de nada mais. Sentarmo-nos nos bancos de uma igreja silenciosa, por exemplo, e contemplarmos as colunas, as imagens, em silêncio, isso produz algo em nosso interior que dificilmente seriamos capazes de expressarmos com totalidade.
Falando, o homem entra na história. A palavra, causa e efeito, entra em ação e se solidifica num sentido preciso. Só no silêncio se realiza o conhecimento autêntico. Conhecimento não é simplesmente notícia, informação, embora esta seja boa e indispensável. Uma pessoa doente, por exemplo, só pode ser ajudada se comunica a outro sua doença.
Só no silêncio eu chego diante de Deus. O princípio de toda a vida religiosa consiste em saber que Deus existe. Deus é mais real do que eu. A realidade íntima – Deus e eu – não se chega a ela falando, mas somente se calando. Quando nos recolhemos, o espaço interior se abre e a divina presença pode anunciar-se. Esse silêncio precisa ser aprendido. É preciso um esforço tremendo para nos defendermos contra a onda de ruídos que envolve o mundo.
O alvoroço interior, o caos dos pensamentos, a variedade dos desejos, as inquietudes, as angústias do espírito, o peso das depressões, o muro das torpezas e todas as demais coisas que se amontoam em nosso mundo íntimo, são como detritos sobre um manancial que o impedem de correr livremente.
Para aprender a calar-nos, temos que ter a boca fechada todas as vezes em que o requer a confiança dos outros, o dever profissional, o tato, o respeito à vida do próximo.
Permanecer calado quando se poderia falar, é um magnífico exercício para adquirir domínio sobre a mania de falar. Quantas coisas supérfluas ou bobas decidimos durante o dia! O silêncio é formoso, não é um vazio, mas vida genuína e plena.
Temos que aprender o silêncio interior. O nosso mundo interior é imenso e pode cada vez mais ser aprofundado. Com o silêncio, aprendemos a ser homens. Quando aprendemos a calar e a falar quando devemos, revela-se em nós a imagem de Deus.
Em 1ªReis 19,11-12, a imagem que significa a vinda de Deus é a de uma paz infinita, de um silêncio que abrange tudo: Deus estava na brisa suave. O silêncio, de tácita simplicidade, do trecho de Elias e o nascimento falante e da comunicação do amor, do prólogo de São João, circunscrevem o mistério da vida de Deus e de sua santa soberania.
(Dietrich Bonhöeffer)
A característica da solidão é o silêncio, como a palavra é a característica da comunicação. Entre silêncio e palavra há o mesmo vínculo interior e a mesma distinção que há entre solidão e comunicação. Uma não pode existir sem a outra. A palavra justa nasce do silêncio, e o justo silêncio, nasce da palavra.
Calar não significa ficar mudo. Falar não significa simplesmente fazer ouvir palavras. O ficar mudo não cria a solidão e o falar por falar não cria a comunicação. Nós nos calamos após ouvir a Palavra, porque esta se segue falando, vive e permanece em nós. No silêncio da manhãzinha e no noturno, Deus tem a primeira e a última palavra do dia. Calar, enfim, é aguardar a palavra de Deus e caminhar, após ouvi-la, com a sua bênção. Aprender a calar nesta época em que o predomínio é falar.
Saber calar-se para ouvir a Palavra permite que nos calemos, e usemos corretamente o silêncio e as palavras em nossa jornada. O silêncio do cristão é um silêncio orientado a ouvir a Palavra, e que pode ser quebrado a qualquer momento. É um silêncio vinculado à Palavra. O silêncio esclarece, purifica, permite a concentração. Devemos saber ouvir e saber falar no momento oportuno!
Onde vivem muitas pessoas, deve haver um período comunitário de silêncio, se não houver um local para o silêncio individual. Encontramos o nosso próximo com um ânimo muito melhor depois de um período de silêncio.
Entretanto, o silêncio mal orientado ou obrigado pode ser um terrível deserto com toda solidão e todos os erros, como também pode ser um paraíso da auto ilusão; e não se sabe qual desses dois é pior.
Nada mais se espere do silêncio que um simples e puro encontro com a Palavra de Deus, em vista da qual se buscou o silêncio. O cristão deve aceitar esse encontro do modo que vier, sem impor condições, e o silêncio será amplamente recompensado.
Carlo Maria Martini)
Se no princípio era a Palavra, e pela Palavra de Deus, chegada até nós, começou a realizar-se nossa redenção, de nossa parte deve haver o silêncio, para ouvir essa Palavra. O silêncio que escuta, acolhe, que se deixa avivar. É claro que, em seguida, usaremos nossa palavra para agradecer, adorar, suplicar; mas em primeiro lugar, o silêncio.
Podemos dizer que a capacidade de viver um pouco de silêncio interior conota o verdadeiro crente e o separa do mundo da incredulidade. Quem não aceita ou não acredita em Deus, afasta de seu pensamento o Deus vivo, que cobre todo espaço, não suporta o silêncio. Para ele, o silêncio é a marca aterradora do vazio. Qualquer ruído, por mais que seja tormentoso e obsessivo, lhe parece agradável. Quando as vozes se calam, ele se vê frente a frente com o horror do nada. O ruído, conversa mole, qualquer barulho é bem recebido por eles, para distrair da mente do conhecimento arrepiante do universo deserto.
O homem “novo” (de olhos da fé penetrantes, que vê além do aparente e tem um coração capaz de amar o Invisível), sabe que o vazio não existe, que o nada é vencido pela divina Infinitude, que o universo está povoado de criaturas alegres, que o expectador já goza, de certo modo, da exultação cósmica, refletida pelo mistério de luz, de felicidade que substancia a vida inesgotável do Deus Trino.
Por isso o homem novo, como o Senhor Jesus, que ao alvorecer subia solitário para os montes (Mc 1,3; Lc 4,42; 6,12; 9,28) aspira ter para si um espaço imune a qualquer ruído alienante, onde seja possível aplicar o ouvido e perceber algo da festa eterna e da voz do Pai.
O homem velho (que tem medo do silêncio) e o homem novo convivem normalmente, em diferentes proporções, em cada um de nós. Somos agredidos exteriormente por avalanches de palavras, sons, clamores, que ensurdecem nosso dia e nossa noite. Todos estamos interiormente atingidos pela oratória excessivamente mundana, que com mil futilidades nos distraem e faz com que nos percamos.
O homem novo que há em nós tem, pois, de lutar para assegurar no céu sua alma, esse prodígio de “um silêncio durante meia hora” de que fala o Apocalipse 8,1. Que seja um silêncio verdadeiro, cumulado da Presença ressonante da Palavra, pronto para escutar, aberto à comunicação.
– De Jean Guilton para a Marquesa de Voguë.
A solidão não é isolamento; ao meditar sobre esta primeira diferença, quero buscar sua definição. O que se isola sofre por estar desligado das relações que o faziam viver. Afasta-se com uma feroz altivez; está ferido; busca um cantinho para sofrer e morrer ali sem falar, Não seria necessária a ideia de buscar o isolamento. O isolamento nos afasta dos demais, nos faz altivos, duros, às vezes ferozes.
O isolamento nos fecha em nós mesmos. E, em nós mesmos, encontramos a dança de nossos pensamentos fixos, as associações extravagantes, as mágoas, os remorsos inevitáveis e a imagem de um futuro sem saída que se conclui com a morte. O homem que se isola é esse que os existencialistas descrevem, quando fazem o retrato da angústia e quando analisam o que chamam de masoquismo, quer dizer, o desprezo de si mesmo, a arte de fazer sofrer a si mesmo para gozar, inclusive de si mesmo, num prazer triste.
O isolamento conduz a uma classe de crueldade, como tudo o que nos encerra no “eu” que nos atormenta e que nós atormentamos.
Tudo isso não se dá na solidão. A solidão nos une e nos unifica, fazendo cessar o rumor interior, produto de um falso amor de nós mesmos. A solidão nos aproxima dos que amamos, formando em nosso coração a comunidade dos verdadeiros amigos. Na verdade, os que se conheceram no meio do tumulto, do barulho, separam-se após um dia que seja de solidão. Na solidão total um mosteiro invisível se eleva, construído com as pedras do silêncio.
O silêncio nos introduz diretamente no coração dos outros, ao passo que a palavra nos obriga a realizar longas e sinuosas voltas periféricas. O silêncio nos reconduz ao ponto mais íntimo de nós mesmos, ali onde a eternidade nos toca e nos vivifica, ali onde a verdade sussurra sem palavras. Em outras palavras: o silêncio deve sempre nos preparar para a palavra, e nunca ser um isolamento egoísta.
DO IRMÃO INÁCIO VALLE
“Assim vive em um presente que não tem um amanhã. Deus fala no silêncio e por isso o solitário cala. A tarefa primordial é deixar-se formar, trabalhar, e estruturar pelo silêncio, que dá a capacidade de bem viver e bem morrer...”- (Monge desconhecido).
No silêncio reza melhor. Enche-se de amor e vive o equilíbrio das emoções. Na glória do silêncio a vida encontra a verdadeira felicidade. A paz, a serenidade, a alegria, o equilíbrio emocional, a incomensurável energia do realizável, a comunhão da irmandade, o respeito pela dignidade da pessoa humana, força e poder para suportar as tormentas, coragem diante das incompatibilidades, caridade e justiça para o bem comum. O silêncio tem como fundamento a maravilhosa graça de Cristo, o amor eterno de Deus e a profunda comunhão do Espírito Santo.
Toda espiritualidade do silêncio, a experiência do deserto, a teologia ascética e mística têm nesse tripé a sua ortodoxia. Daí a vida cristã caminha na fé, no amor e na esperança. É nesse contexto que a alma busca Deus com toda fome e sede. O desejo ardente pelas coisas espirituais e a abissalidade contemplativa se guia pela docilidade do silêncio. O silêncio é arte pedagógica da alma para Deus. O monge e o eremita têm muito a nos ensinar. Precisamos demais aprender com a riqueza do patrimônio sapiencial do monasticismo e eremítico. É a falta dessa colossal sabedoria que a nossa sociedade vive numa catástrofe. Cada dia que passa o conhecimento desse patrimônio fica mais distante das mentes e dos corações.
No entanto, resta tão somente viver essa sabedoria divina no testemunho de vida, nos escritos e no silêncio. A Santíssima Trindade tem chamado monges e eremitas num mundo tomado de guerras, conflitos, terrorismos, vícios, luxúrias e agressão à natureza. Esses ascetas, místicos e contemplativos são verdadeiras luzes nesse mundo de tantas trevas e de profundo abismo. Esses homens e mulheres são os embriagados de Deus, ou seja, mergulham no silêncio e na radical busca de intimidade com a Trindade Santíssima.
Só há uma razão de viver, unicamente para Deus. Por muitos que não vivem para Deus e sua vontade, eles vivem muito para Deus e sua vontade, realizando a caridade da intercessão para o bem de todos. Pelo exemplo de vida: sem ostentação, sem consumismo, sem espetacularização e sem escravidão pelas coisas materiais, eles causam impacto e desperta consciência em prol de algo melhor, maior e eterno. A sua contribuição para sociedade é de sustentabilidade em todos os níveis, principalmente espirituais e emocionais.
A glória do silêncio é a glorificação, o louvor e a nossa adoração a Santíssima Trindade que cantamos muito mais com a alma do que com a boca.
“A minha vida aqui não é a de um missionário, mas a de um eremita”escreveu o eremita do deserto do Saara Charles de Foucauld a Henry de Castries, 28 outubro de 1905 (1). A 2 de Julho de 1907, ele escreveu a Dom Guérin, destacando as palavras “Eu sou um monge, não um missionário, feito para o silêncio, para não falar” (2). Esta recusa em ser chamado missionário levou-o a querer desenvolver um apostolado da presença “silenciosa”, “incógnito”. Em correspondência, o Padre Charles acredita que esta presença é essencial, a fim de “gritar com a vida o Evangelho de Cristo”.
Inácio José do Vale
Notas:
(1) Foucauld, Letters to Henry de Castries , Paris, Grasset, 1938, p. 177.
(2) Citado em J.-F. Six. Itinerário espiritual de Charles de Foucauld , Paris, Seuil, 1958, p. 280.
Por: Monge Luciano Manicardi Comunidade Monástica de Bose, Itália
Depois de ter vivido a experiência de duas semanas passadas num lugar retirado sem a possibilidade de ligar-se à internet, a escritora britânica Ruth Thomas publicou as suas reflexões sobre a perda da capacidade de estar em solidão a que nos conduz a vida contemporânea, marcada pelas conexões em rede, mas também sobre o prazer de redescobrir a riqueza e a potencialidade inerente à solitude. Viver alguns dias sem telefone e sem internet é hoje uma experiência excecional, com dimensões antropológicas e espirituais relevantes. Ruth Thomas afirma que lhe parecia estar a viver num tempo passado, noutra época, duzentos anos antes.
O binômio "solidão - 'ocium'" é amplamente atestado na Antiguidade clássica. Um passo do "De officiis", do célebre sábio e cônsul romano Cícero, diz: «Marco, meu filho: de Públio Cipião, que em primeiro lugar teve o sobrenome de Africano, Catão, que era mais ou menos seu coetâneo, conta que era habitual dizer que ele nunca era menos ocioso do que quando era ocioso, nem menos só do que quando estava só». Expressão verdadeiramente esplêndida e digna de um homem grande e sábio: ela diz que também no tempo livre ("in otio") pensava nos negócios públicos ("de negotiis") e em solitude ("in solitudine") falava consigo próprio, e por isso nunca era ocioso e não sentia a necessidade de alguém com quem conversar. Desta forma, ociosidade e solitude ("otium et solitudo"), estas duas coisas que paralisam os outros, a ele, pelo contrário, estimulavam-no. Obviamente, o significado de "otium" e "otiosus" não tem aqui nada de negativo, antes indica o tempo do retiro, o tempo dedicado ao estudo, ao pensar, ao refletir, à atividade espiritual. Santo Ambrósio de Milão realizará uma refundação bíblico-cristã desta dupla terminológica. O bispo de Milão aplicou a si mesmo a expressão ciceroniana: «Com efeito, nunca sou menos só do que quando parece que esteja só, nem menos ocioso do que quando parece que seja ocioso». Silêncio, solidão, tranquilidade eram considerados por Ambrósio elementos de fecundidade e de eficácia também no exercício do seu ministério episcopal.
Diante da dificuldade de viver a solidão e de estar sem fazer nada, é preciso, portanto, creio redescobrir a antiga e sempre nova virtude do "otium". No atual contexto de idolatria da comunicação, somos subjugados por demasiada informação, que não sabemos elaborar. Seria preciso um movimento de "tomada de distância de si". É um movimento de resistência individual, um ato de subversão solitária.
A ideia da recuperação e da valorização da noção de "otium" é precisamente dirigida à recuperação de uma sabedoria que hoje está perdida. Como já escrevia santo Agostinho, «o meu "otium" (tempo livre) não é destinado a cultivar a preguiça, mas a alcançar a sabedoria». E Agostinho dizia isto a partir da lição bíblica: «O letrado adquire a sabedoria, no tempo em que está livre de negócios; por isso, aquele que tem poucas ocupações pode chegar a ser sábio» (Ben Sira 38, 24). Ter tempo, dar-se tempo, para poder habitar consigo próprio. De outro modo o risco da nossa incapacidade de solitude é que os nossos corpos se tornem não-lugares, lugares não habitados, lugares sem alma, lugares só de passagem de emoções e flash, de sons e rumores, sem princípio nem fim.
A ideia de "otium", a expressão "vacare Deo" (ter tempo livre para Deus), tornam-se elementos típicos da experiência monástica, experiência que desenvolve particularmente a dimensão solitária, e que, todavia não cria uma vida de privilegiados, mas funde "otium" com a atividade laboral intensa e quotidiana.
Em síntese, o "otium", se é virtuoso, deve afastar de si toda a forma de "otiositas". Sem o cansaço do trabalho manual e intelectual, com efeito, o monge não poderia alcançar aquele distanciamento do mundo, dos próprios pensamentos e desejos que lhe permite alcançar a paz interior e, portanto, a contemplação de Deus. Em suma, o "otium" é um bem na medida em que vê trabalho, fadiga, esforço e aplicação. Um "otium negotiosum" (um ócio laborioso, uma inatividade operativa) como gostam de repetir os monges, e também "negotiosissimum" (laborosíssimo), como especifica S. Bernardo. O "otium" é a possibilidade da solidão positiva, da solidão da alma. E talvez o retomar da atitude espiritual do "otium" possa fazer bem também a nós, hoje, que vivemos uma relação conflitual com o tempo e frenética com o fazer. Mas aqui coloca-se a pergunta: sabemos estar sem fazer nada? Sabemos habitar a atitude positiva, não indolente, mas eficaz, do não fazer?
A fadiga do "otium" está no dedicar-se ao trabalho mais difícil e mais necessário do homem: conhecer-se a si mesmo. O "otium" permitir-nos-ia aprofundar a noção de vida interior e, sobretudo de desenvolver a prática. Prática que conhece muitos movimentos que precisam ser aprofundados e analisados (tomar atenção, vigiar, interrogar-se, pensar, discernir, decidir, etc.), mas aqui limito-me a elencar as três atitudes de fundo que se apresentam ao homem que decide entrar na vida interior ou, se quisermos, de dar espaço ao "otium" na sua existência. São os movimentos contidos num apotegma de Arsénio, um padre do deserto: «Foge, faz silêncio, sê tranquilo: destas raízes nasce a possibilidade de não pecar». Ou seja, procura conscientemente a solidão, vive o silêncio como ação interior, persegue a paz interior. Trata-se de uma ação fatigante, que exige um esforço, que convoca as energias interiores e espirituais da pessoa para um fim preciso, e que consente ao homem sair da atitude "viciosa", isto é, dos maus hábitos, da tirania dos hábitos que nos agitam e nos tiram liberdade e responsabilidade. O hábito, escreve o filósofo latino Séneca, «imobiliza as coisas» e paralisa também a pessoa. O resultado desta ascese, isto é, desta escolha consciente do essencial, é o sentido acrescido de integridade pessoal (1).
O ínclito eremita francês Charles de Foucauld relata sua meditação: “Quero passar sobre a terra de maneira obscura como um viajante à noite. Viver na pobreza, na abjeção, no sofrimento, na solidão, no abandono para estar na vida com o meu Mestre, o meu Irmão, o meu Esposo, o meu Deus, que viveu assim toda a sua vida e me dá esse exemplo desde o nascimento”. (Meditações sobre o Evangelho). (2).
CONCLUSÃO
A práxis do silêncio, solidão, deserto e toda ascese desse contexto, é a abissal vida espiritual com a bênção da celestialidade que não existe palavras para uma explicitação desse estado de graça. O amor desse estado de vida, a fé, a esperança e o poder de Deus são fundamentos da vivência da via contemplativa. A simbiose da gloriosa felicidade, a busca ardente do silêncio, oração, intercessão, estudo da Sagrada Escritura, jejum e visões, são atitudes alimentares da alma, saúde emocional e equilíbrio para o corpo. Os atos praticados de tais virtudes solidificam a caminhada na profundidade de comunhão com Deus, consigo mesmo e com o próximo. A idiossincrasia dessa abençoada jornada é sublime, caridosa e tomada de uma vontade infinita de paz, de serenidade e de santificação. A solidão do deserto é a companhia da Santíssima Trindade, dos anjos, dos santos e dos mistérios revelativos! Aqui há confidencialidade eremítica.
Hoje mais do que nunca, a vida tem sentido na dimensão da espiritualidade do silêncio. A falação, o barulho, a poluição visual e a perigosa companhia de certas pessoas, são armas que assassinam muitas vidas. A sabedoria do silêncio é o tesouro dos sábios. Quem fala pouco, ou seja, o necessário, e fala para edificação é ser intelectual. O silencioso vive no conhecimento da escola de São José e de Maria de Nazaré. O silêncio é o livro de ouro dos sábios. Quanto mais se aprende a viver em silêncio, mais profundo se torna o discípulo da Sagrada Família. Nosso relacionamento com a solidão é o livramento de tudo que pode ofender o espírito e a matéria. Depositamos a nossa confiança em Deus em nós mesmos com a força do silêncio. Viver verdadeiramente é viver livremente para amar o bom Deus, o nosso “eu” e o nosso semelhante na infinidade do tempo graciosamente silencioso. Em tudo na adoração e louvor angelical!
Crescer na graça, na misericórdia e no conhecimento de Jesus Cristo, configurados na riqueza do silêncio e da solidão, tendo como pedagogo o Espírito Santo para que o nosso progresso espiritual seja sempre renovado, avivado e reavivado.
Inácio José do Vale
Notas:
(1) http://www.snpcultura.org/elogio_da_solidao.html
(2)https://fraternidadecharlesdefoucauld.wordpress.com/2016/01/05/o-deserto-de-charles-de-foucauld/
(Remo Bessero Belti)
Silêncio para ouvir, silêncio para falar, mas, sobretudo, silêncio para calar-se. O silêncio em que não falo de mim mesmo é o silêncio como humildade. É talvez o mais difícil, mas também o mais formoso e verdadeiro.
Calar-se (não falar) de si mesmo significa dominar o próprio egoísmo, ter vitória sobre si mesmo.
Egoísmo + sentimento = sensualidade
Egoísmo + inteligência = soberba
Egoísmo + vontade = amor próprio
É muito difícil não falar nunca de si mesmo, de nenhum modo. Para não falar de si mesmo, é preciso primeiro saber calar de si mesmo dentro de si. Até quando se fala aos outros que se é pecador, pode aí haver egoísmo. O único espaço espiritual em que o homem precisa falar de si mesmo é quando fala com Deus. Aí ele se reconhece pecador.
“Assim vive em um presente que não tem um amanhã. Deus fala no silêncio e por isso o solitário cala. A tarefa primordial é deixar-se formar, trabalhar, e estruturar pelo silêncio, que dá a capacidade de bem viver e bem morrer...”- (Monge desconhecido).
No silêncio reza melhor. Enche-se de amor e vive o equilíbrio das emoções. Na glória do silêncio a vida encontra a verdadeira felicidade. A paz, a serenidade, a alegria, o equilíbrio emocional, a incomensurável energia do realizável, a comunhão da irmandade, o respeito pela dignidade da pessoa humana, força e poder para suportar as tormentas, coragem diante das incompatibilidades, caridade e justiça para o bem comum. O silêncio tem como fundamento a maravilhosa graça de Cristo, o amor eterno de Deus e a profunda comunhão do Espírito Santo.
Toda espiritualidade do silêncio, a experiência do deserto, a teologia ascética e mística têm nesse tripé a sua ortodoxia. Daí a vida cristã caminha na fé, no amor e na esperança. É nesse contexto que a alma busca Deus com toda fome e sede. O desejo ardente pelas coisas espirituais e a abissalidade contemplativa se guia pela docilidade do silêncio. O silêncio é arte pedagógica da alma para Deus. O monge e o eremita têm muito a nos ensinar. Precisamos demais aprender com a riqueza do patrimônio sapiencial do monasticismo e eremítico. É a falta dessa colossal sabedoria que a nossa sociedade vive numa catástrofe. Cada dia que passa o conhecimento desse patrimônio fica mais distante das mentes e dos corações.
No entanto, resta tão somente viver essa sabedoria divina no testemunho de vida, nos escritos e no silêncio. A Santíssima Trindade tem chamado monges e eremitas num mundo tomado de guerras, conflitos, terrorismos, vícios, luxúrias e agressão à natureza. Esses ascetas, místicos e contemplativos são verdadeiras luzes nesse mundo de tantas trevas e de profundo abismo. Esses homens e mulheres são os embriagados de Deus, ou seja, mergulham no silêncio e na radical busca de intimidade com a Trindade Santíssima. Só há uma razão de viver, unicamente para Deus. Por muitos que não vivem para Deus e sua vontade, eles vivem muito para Deus e sua vontade, realizando a caridade da intercessão para o bem de todos. Pelo exemplo de vida: sem ostentação, sem consumismo, sem espetacularização e sem escravidão pelas coisas materiais, eles causam impacto e desperta consciência em prol de algo melhor, maior e eterno. A sua contribuição para sociedade é de sustentabilidade em todos os níveis, principalmente espirituais e emocionais.
A glória do silêncio é a glorificação, o louvor e a nossa adoração a Santíssima Trindade que cantamos muito mais com a alma do que com a boca.
“A minha vida aqui não é a de um missionário, mas a de um eremita” escreveu o eremita do deserto do Saara Charles de Foucauld a Henry de Castries, 28 outubro de 1905 (1). A 2 de Julho de 1907, ele escreveu a Dom Guérin, destacando as palavras “Eu sou um monge, não um missionário, feito para o silêncio, para não falar” (2). Esta recusa em ser chamado missionário levou-o a querer desenvolver um apostolado da presença “silenciosa”, “incógnito”. Em correspondência, o Padre Charles acredita que esta presença é essencial, a fim de “gritar com a vida o Evangelho de Cristo”.
Inácio José do Vale