O que é ser diferente para a psicanálise?

Catalina Pagés


“O destino do homem é chegar a ser ele mesmo.”


    A psicanálise olha para o subjetivo. Cada ser humano é um, e a tarefa mais importante da vida é conhecer a si mesmo. Procura-se por um processo de análise alguém que, em algum momento de sua trajetória, esqueceu-se de si mesmo. Segundo a tradição platônica, sabemos de tudo, só não lembramos e, sabendo ou não, o importante é conhecer e respeitar o si mesmo desconhecido de cada um. Só podemos reconhecer o outro como diferente, quando sabemos quem somos.

Ao nascer somos o desejo daqueles que nos colocaram no mundo. Os pais costumam ter muitas expectativas em relação a seus filhos e a criança busca corresponder a isso. Porém, à medida que as crianças crescem, precisam discriminar e perceber o que os separa do outro. É comum que jovens na adolescência entrem em conflito com seus pais, quanto a suas escolhas, vocações e projetos de vida. Um momento que parece ser de crise pode ser extremamente rico para ambos, principalmente para os pais, que sendo o lado adulto da relação, muitas vezes têm que reconhecer que estão idealizando o futuro de seus filhos (escolhas, expectativas...). Neste momento, os jovens e os pais podem recorrer a especialistas procurando ajuda.

Podemos também encontrar respostas na literatura. Richard Bach, em Fernão Capelo Gaivota, conta a trajetória que ilustra as dificuldades de uma jovem gaivota que gostava de aprender e experimentar voos diferentes, e seu desejo de conhecer era visto como ameaça à cultura daquela sociedade que, preocupada com a subsistência, produção e ganho de dinheiro, torna-se limitada. Voar era necessário para a pesca e não para aperfeiçoamento de si mesmo. Fernão era julgado por não estar preocupado em ser útil para o bando e o consideravam egoísta. Ele vivia em conflito entre fazer o que desejava e agradar os pais, mas o seu desejo de voar para se aperfeiçoar era tão forte que, sem se dar conta, Fernão voltava a fazer seus experimentos. Naquele lugar, todos tinham que ser iguais, não havia espaço para o diferente. A história é interessante por nos mostrar que o desejo de aprender é algo que está dentro de nós e que se manifesta mesmo em um ambiente hostil.

Há 25 séculos, Sócrates retoma uma das máxima de Delfos: “conhece a ti mesmo”, para ele essa era a tarefa mais importante do homem. E Machado de Assis, em seu conto O Espelho, trata do tema de quem somos e compara o ser humano a uma laranja: possui duas almas, a interna e a externa. Ambas são valorizadas pelo autor e precisam estar integradas, em harmonia, uma alma alimentando a outra. Machado conta a história de um jovem que ganhou uma patente de alferes, deixou a família inteira feliz e ficou tão deslumbrado com o cargo, pois era muito jovem e recebia muitos elogios, que se esqueceu de alimentar a alma interna. Um belo dia, os elogios foram embora e ele entrou em desespero, sentindo que não poderia mais viver sem eles. O conto nos apresenta, então, um jovem, tão deslumbrado com o que vinha de fora, que perdeu a si mesmo, não mais se conhecia, tornando-se alguém triste e vazio.

E, embora a competência para aprender seja algo inato, vivemos uma luta incessante para descobrir quem somos. Para Platão, na alegoria da caverna no livro VII de A República, a construção de si mesmo se dá através da educação e de maneira lenta e gradual. O pensador afirma que: “a alma de cada homem possui um órgão, que é mais precioso do que dez mil olhos, e que esses ensinamentos purificam e reavivam”, mas esse órgão está embaçado e precisa ser limpo. Ele defende a ideia de que o conhecimento é absorvido em etapas, como os degraus de uma escada e que essas etapas precisam ser integradas. Esse aprendizado é o que limpa o órgão e nos permite conhecer a verdade sobre nós mesmos e respeitar as diferenças entre os seres humanos.

Nesse sentido, a escola seria o ambiente mais propício para desenvolver as diferenças entre o si mesmo e o outro. Afinal, é na escola que passamos toda a nossa infância e adolescência, período tão longo e necessário para o estabelecimento do eu social. Vemos a escola como sendo uma segunda família a nos preparar para viver neste vasto mundo comum a todos.

Catalina Pagés é psicanalista, idealizadora e coordenadora do Programa Círculos de Leitura.