O galo

O galo

Anelê Volpe, 2022


     Ele já estava acordado há algum tempo quando o galo cantou. Aguardava ansioso pelo galo. Na verdade, torcia para que ele não cantasse, mas não fora daquela vez. Quanto tempo já fazia? Dez dias, duas semanas? Já deixara de contar aqueles dias de tormento. Tudo começou numa certa manhã quando foi despertado pelo canto do galo. Achou melancólico e o fez recordar do seu sítio, para onde ia todo final de semana. Lá, distante da cidade e perto dos animais, o canto do galo tinha um quê de nostálgico, de caipira, e o remetia à infância vivida na usina de cana-de-açúcar. Naquela época, sonhava com uma vida na cidade, ainda não podia avaliar a riqueza da vida rural. Seu destino o tirou do campo, mas não completamente. Passou a morar na cidade tão logo quanto pode, mas profissionalmente não se afastou de suas origens. A cidade apenas serviu para consumir o que ganhava no campo.

       Sua rotina de empresário bem-sucedido e corroído de preocupações não combinava com o canto matinal do galo. Agora seu despertar acontecia na sua pequena mansão, luxuosamente decorada, tão diversa dos cantos do campo. Assim, três despertares foram suficientes para que o prazer se transformasse em tormento. “Que galo é esse que ainda não percebeu que vive na cidade e não pode atazanar quem não precisa acordar tão cedo?” Isso era a coisa mais gentil que ele falava sobre o galo. Na verdade, ele acordava já xingando não só o galo, mas toda a vizinhança. Embora o galo não incomodasse sua mulher, seu dia já começava com um marido irritado e estúpido. Enquanto o incomodado queria saber em que casa vizinha vivia o galo, o resto da família se esforçava em acalmá-lo. A primeira providência foi pedir ao vigia noturno da residência que investigasse onde morava o galo. Já a partir das 4h da madrugada, lá ia o vigia andar pela vizinhança para pegar o galo de surpresa. A ideia era não falar com os vizinhos. A missão era dar um fim no galo, sem criar problemas com eles. O pior é que ele não flagrava o galo tampouco ouvia seu canto. Não fosse a mulher, que também ouvia o galo, diriam que o marido estava ouvindo coisas, e que galo algum existia por ali. Não houve jeito: a saída era perguntar de casa em casa. Surpreendentemente nenhum vizinho admitiu ter um galo e, pior, nunca ouviram galo nenhum. Ah, isso era demais, era um complô contra ele! Por que faziam isso? Queriam deixá-lo maluco? Mas se era guerra que queriam, guerra teriam! Agora conheceriam de fato seu vizinho gentil.

       Foi ele mesmo à delegacia e, com a influência que seu dinheiro lhe conferia, falou diretamente ao delegado que, atônito e intimidado, lhe prometeu providências. Enquanto isso, o galo cantava toda manhã à mesma hora, já sem despertar o insone que já o aguardava na janela. Os dias se passavam sem notícias do delegado, que não deve ter feito coisa alguma, já que não havia o que fazer, até que o incomodado, como era de seu perfil, finalmente decidiu: “Quem vai dar um jeito nesse galo sou eu mesmo!”. E para isso usaria aquela arma que comprou tão logo ganhou seu primeiro milhão. Deveria protegê-lo, mas devido ao seu gênio forte, a família decidiu protegê-lo da arma. Em vez de ficar à mão para uma emergência, era muito bem guardada nos altos e fundos do closet do quarto do casal. A mulher achava que a escondia, mas há muito tempo ele sabia onde encontrá-la. Pegou sua arma e a guardou na última gaveta de seu criado-mudo. Procurou disfarçá-la com alguns papéis para que ninguém a detectasse. Achou que o telhado da casa fosse um bom lugar para descobrir o galo. Talvez uns tiros para o alto fossem suficientes. Ao menos para avisar o vizinho mentiroso que ele não estava para brincadeira.

       Naquela noite ficou algumas horas deitado, de olhos abertos, planejando todos os detalhes do que ocorreria a seguir. Pouco antes da hora do galo, pegaria sua arma e algumas balas, desceria para o andar térreo de sua casa, pegaria a escada mais alta que tivessem e, da varanda da piscina, subiria até o primeiro lance de telhado. Com cuidado seguiria até as janelas do primeiro andar e, com mais cuidado e sorte, dali subiria para o telhado mais alto. Daquela altura seria impossível não ver o galo e, se não fosse possível acertá-lo dali — afinal, nunca tinha usado a arma —, ao menos saberia qual era a casa onde vivia. Não queria estar na pele do dono dessa casa, pois ele iria na mesma hora até lá, armado, acertar contas.

       Apesar de sua excitação, caiu num sono agitado, acordou sobressaltado a poucos minutos do canto do galo. Levantou apressadamente e vestiu a roupa que já havia separado. Já estava descendo as escadas quando se lembrou da arma. Quase correndo entrou no quarto e chegou ao criado-mudo. No escuro, apalpou as gavetas, contou três a partir da primeira para chegar à última e abriu. Enganou-se, havia quatro. Nesse exato momento o galo cantou. E foi assim que ele descobriu que o canto tinha origem num despertador, guardado na terceira gaveta e programado para aquela hora diária.