Briga de casal

Briga de casal

Anelê Volpe, 2020

Aquele olhar já indicava algo errado. Os olhos azuis de sua mulher, as vezes angelicais, agora indiferentes, estavam anunciando tormentas. Ele costuma dizer que aquela figura miúda se agiganta numa briga, e que aqueles olhos azuis, quase transparentes, parecem estar ardendo em fogo quando a raiva é muita.

Sempre gostou de mulheres pequenas, e a sua era desse tipo. Pouco mais de um metro e meio – sua cabeça mal alcançava seus ombros, mesmo com sapatos de salto alto –, peso bem distribuído pelo corpo acinturado, coxas grossas, como ele gosta, peitos proporcionais, cabelos pretos e cheios, sempre em corte chanel, boca pequena, dentes perfeitos, nariz menor do que seria o ideal, mas compensado pela proximidade dos olhos absurdamente azuis. Pouco volume de gente para abrigar tanto ciúme do marido.

Ele é até mais vaidoso do que a mulher. É bem mais alto do que ela, tem uma feição de menino levado, sorriso largo e fácil, um corpo magro, quase sem gordura, porém com músculos bem definidos. Foi obeso quando criança, mas na adolescência correu – literalmente – atrás do prejuízo: viciou-se em pedalar. A bicicleta é tão importante para ele que passou a ser a maior rival da mulher, motivo maior de suas brigas.

Agora ela acha que há alguma ciclista no grupo de passeio semanal dele que ultrapassou o limite tênue da amizade entre um homem e uma mulher. E não há nada que ele fale ou faça que a convença do contrário. E é nessas horas que essa baixinha se transforma numa gigante e se torna maior do que os 180 cm do marido.

Acontece que, até pela diferença de tamanho, o marido evita o conflito como pode: deixa-a falar e espernear até que ela se cansa e desiste. Então ele tenta, com toda calma do mundo, apresentar um cenário oposto ao desenhado por ela. A verdade é que essa calma só é possível porque, no fundo, ele se sente atraído pela tal colega do grupo, mas tenta convencer a esposa e a si próprio de que isso é tão passageiro quanto cada uma dessas brigas de casal.