A memória coletiva dos netos

A memória coletiva dos netos

Anelê Volpe, 2021


Numa família, os netos têm papéis muito importantes, e talvez eles não saibam disso. Quando chegam, sinalizam o início ou o crescimento de uma família dentro de outra família. Enquanto impõem a seus pais responsabilidade e amadurecimento, também afrouxam o cordão umbilical que eles, seus pais, tinham até então com seus avós, tios e outros familiares. Para os avós, os netos indicam continuidade, herança, preservação. Também demarcam o fim de um período de criação dos próprios filhos, e lhes dão um sentimento de dever cumprido. Em família numerosa, o surgimento dos netos pode se dar durante décadas, e esse crescimento exponencial provoca alterações profundas na vida familiar.

Meus pais, por exemplo, tiveram 8 filhos, que nasceram entre as décadas de 1930 e 1950. Esses filhos geraram 24 netos, entre cinco décadas, de 1960 a 2000. Ter os avós vivos após tantos anos depende de muita sorte. Meu pai faleceu seis anos depois do meu nascimento, última filha. Minha mãe viveu até 99 anos, e viu o nascimento de todos os netos e dos primeiros bisnetos. Assim, enquanto minha mãe era viva, ela foi a raiz da árvore – ou o topo da pirâmide – que representa nossa família. E como tal, sustentava essa estrutura. Na base da pirâmide – ou nas folhas da árvore – estão os netos e bisnetos. Uma vez sem a raiz ou o topo, com a morte da minha mãe, a estrutura se desfaz e magicamente se transforma em oito árvores ou oito pirâmides, cada uma sendo sustentada por um de seus oito filhos. Mas eu quero mesmo é falar do tempo em que a pirâmide ia firme e sua base estava quase completa e se tornava o maior grupo da família: os netos. Antes, no entanto, quero falar um pouco do tempo em que eu era parte da base da pirâmide de meus avós.

Toda família muito grande compartilha na sua memória afetiva e coletiva um lugar especial. Em geral esse lugar é a casa dos avós. Ali frequentam todos os tios e tias e, por conseguinte, todos os netos e bisnetos. Eu, por exemplo, tenho duas grandes referências: o sobrado onde viviam meus avós maternos e a fazenda Formiga, também de sua propriedade. O sobrado na praça 21 de Abril era símbolo de uma época, juntamente com outros semelhantes no mesmo quadrilátero. Neles viviam famílias importantes da pequena cidade, imigrantes que encontraram nada além de trabalho, e em pouco tempo tornaram-se fazendeiros, usineiros, grandes comerciantes. Meu avô foi um pouco disso tudo, mas adoeceu aos 40 anos e passou quase outros 40 apenas observando seus filhos, noras, genros e netos pisando as tábuas do sobrado que construiu. Ali era o ponto de encontro de vários primos e seus amigos, que encontravam nas escadas, varandas e porões do sobrado a privacidade que não tinham em casa. E tudo podia ser dito na frente dos avós, cujos corpos presentes pareciam vazios. Ah, como hoje daria tudo para saber o que pensavam eles de nós!

A fazenda Formiga, outra forte referência da família, foi herança de meu avô, cuja doença o impediu de usufruí-la. Os vinte netos, durante a infância e adolescência, passávamos várias férias escolares na grande e simples casa da fazenda. Todos juntos e misturados. Eu era bem criança mas me lembro bem do grande pátio onde se realizavam as festas juninas e outras comemorações, do pomar ao lado da casa, da capela logo em frente, do curral, da casa do Sr. João, das carroças que nos levavam por todo lado. A fazenda ficava logo ali ao fim da cidade, mas era como se fosse um mundo distante, mágico, só de alegrias.

Para os netos de meus pais, se o avô tivesse vivido mais, a casa onde viu nascer seus últimos filhos seria perfeita para esses encontros. Era muito grande, espaçosa, simples e aconchegante. Certamente haveria muitas camas para o cochilo dos bebês. A comida poderia ser feita em fogão a lenha, a gás ou elétrico. E os dois grandes quintais serviriam para os jogos das crianças e dos adolescentes e, por que não, para substituir uma piscina durante as chuvas de verão.

Infelizmente esses netos – com exceção do primeiro – não conheceram nem o avô nem a grande casa do avô, que a avó e sete filhos deixaram após sua morte e 20 anos memoráveis. O tempo foi passando, nasceram muitos netos, e o apartamento da avó não era grande o suficiente para reuni-los todos. E foi no início da década de 1970 que a avó comprou uma chácara nos arredores da cidade e deu a ela o nome de Primavera. Uma das primeiras providências foi mandar plantar uma muda de primavera de cada lado do portão de entrada, bem como uma placa gravada “Chácara Primavera”.

Grande parte do terreno foi deixada para gramados e plantas diversas que a avó cuidava com carinho e dedicação. Quase escondida do lado direito do terreno, uma casinha simples para uma família de caseiros, e nos fundos, um grande barracão aberto. Esse barracão logo abrigou uma criação de coelhos, um empreendimento de filhos e genros que durou muito pouco, praticamente nada. E a partir de então, tornou-se o ponto de encontro dominical da família. Era uma chácara espaçosa e simples, despojada de luxo e conforto. O barracão era extenso, sem móveis, coberto com telhas de amianto, que mantinham a temperatura insuportavelmente alta. Durante as fortes chuvas, dezenas de goteiras determinavam onde devíamos ficar. Para amenizar o calor durante todo o ano, um chuveirinho no telhado tentava baixar a temperatura do amianto. E novamente as goteiras apareciam. Mas quem se importava? Se havia algum incômodo, a presença constante de todos não denunciava.

Na extremidade esquerda do barracão, uma área delimitada por um balcão de alvenaria improvisava uma cozinha. Era ali que cada filho/filha deixava a sua contribuição alimentar para aquele domingo. Cada um levava o que queria e podia. Mas sempre era uma comida simples, sem sofisticação. Um quartinho da bagunça, em frente à cozinha, era usado para guardar pouquíssimos itens – afinal, durante a semana não era difícil que estranhos pudessem transitar por ali. Um banco de alvenaria na parede externa desse quartinho era o único lugar onde se deixavam todas as bolsas, toalhas, roupas e sapatos de crianças, pacotes, tudo! Encontrar seus pertences no fim do dia era uma verdadeira façanha. Na outra extremidade, os banheiros. Havia um para homens e outro para mulheres. Por ocasião de alguma reunião em que havia convidados, esses banheiros tinham que ser “maquiados”, pois eram muito simples.

A estrela da chácara era a piscina: rústica, de bordas de cimento pintado, grande, funda, coberta de azulejos azul claro. Era ali que os netos se encontravam e encontravam a alegria dos domingos. Boa parte do ano a piscina ficava praticamente vazia, com água suficiente apenas para cobrir a primeira fileira de azulejos, mas isso era mais do que suficiente para proporcionar inúmeras brincadeiras das crianças. Escorregavam do raso ao fundo, brincavam de pega-pega, com bola. Era uma algazarra só! E quando a piscina estava cheia se juntavam a eles alguns adultos, especialmente aqueles pais das crianças menores. Era preciso ficarem atentos, pois não havia proteção especial para eles.

Os netos não sabiam, mas era por eles que a família ali se reunia, para dar-lhes a oportunidade de estarem juntos, conviverem, fortalecerem os laços familiares. E também não sabiam que, assim sendo, permitiram o mesmo aos adultos da família. A avó pôde manter perto de si os filhos e o aconchego que precisava e merecia. Seus filhos, noras e genros, dessa forma, mantiveram-se unidos, aprendendo a se respeitar, tolerar, ajudar. Eram ali que os irmãos reencontravam aqueles que moravam em outras cidades. Foi ali que as crianças conheceram os primos mais distantes.

Porém, nem só de alegrias eram feitos aqueles encontros. Família numerosa, muitos problemas em cada um de seus núcleos, também era naqueles domingos quando tudo podia ser conversado, discutido e enfrentado. Mas não importava o que ali acontecesse, no próximo domingo todos estavam de volta. As principais fotos da família – em geral, quase completa – têm a chácara como cenário. Fotos da mãe com todos os filhos, fotos de todos os netos, fotos do neto criança que já partiu, última foto do irmão que nos deixou, todas elas nos emocionam hoje.

As crianças mudavam de faixa etária em grupos. Os dois netos mais velhos (Gui Neto e Ana Cláudia) devem se lembrar da chácara já como adolescentes. Outros cinco grupos se destacavam: os quatro netos nascidos entre 1969 e 1972 (Arthur, Helio, Valeria e Flavia); os cinco que nasceram entre 1975 e 1977 (Graziela, Marília, Murilo, Leonardo e Lilian); os quatro garotos nascidos entre 1981 e 1984 (Zé Guilherme, Dirceu, Felipe e Renato); o grupo daqueles últimos a terem memória da chácara, nascidos entre 1987 e 1994 (Thales, Luriana, Thais, Luis Guilherme, Luiz Vitória e Bruno); e finalmente o das últimas netas, nascidas vários anos depois (Beatriz e Isabel), que lá estiveram muito novas por poucas vezes. Certamente os primeiros grupos têm o privilégio da memória mais rica e nítida daqueles tempos.

Inúmeras festas aconteceram ali, especialmente os aniversários dos netos. O maior luxo dessas festas era o bolo confeitado, cujas velinhas eram apagadas por crianças em traje de banho, molhadas e loucas para voltar para a piscina. Mas ali também se comemorou aniversários dos adultos, festa junina, carnaval, Natal, Páscoa, bodas de casamento e, mais recentemente, de noivado. Em várias dessas ocasiões, o barracão se transformou em um salão de festa até luxuoso. Só que muitas dessas festas a avó já não viu.

O tempo, ora amigo, ora inimigo da felicidade, não para. Era de se esperar que a morte da avó provocasse o fim da era familiar naquela chácara. Mas o motivo foi outro. O tempo passou também para os netos, e eles cresceram e quiseram mudanças. Os primos já não bastavam, os compromissos escolares e sociais se impunham, e eles começaram a se dispersar. Primeiro os mais velhos, em breve todos os outros. E com eles, seus pais, quer seja porque tinham que suprir as demandas dos filhos, ou porque já não viam muita graça numa chácara sem crianças.

Assim, antes de sua partida, a avó testemunhou o fim daquele período efervescente, quando sua família se multiplicava e envelhecia. Deve ter sentido falta dos domingos ensolarados na chácara, onde podia cuidar de suas plantas e flores, já que a tarefa com filhos e netos estava completa. A avó não era saudosista a ponto de se lamentar do passado. E olha que seu passdo era imenso! Mas isso não garante que ela não tenha sentido profundamente o fim daqueles domingos. O que nos consola é que aquele lugar e aquelas pessoas estarão por muito tempo ainda na memória de seus netos, e farão parte de suas histórias e, portanto, da história de toda família.