O que minhas marcas dizem sobre mim

O que minhas marcas dizem sobre mim

Anelê Volpe 2024

 

Mais do que o tempo contado em anos, as marcas que acumulo em meu corpo revelam muito sobre mim. Marcas visíveis e invisíveis. As que exibo com orgulho e as que procuro esconder. Da cabeça aos pés.

Os cabelos brancos, teimosamente mal disfarçados, cobrem-me desde idade precoce, obedecendo a um ritual familiar compartilhado com todos os irmãos. Um traço que nos une e nos identifica.

As rugas faciais denunciam minha origem paterna. A duas linhas que atravessam minha testa são cópias exatas daquelas da fronte de meu pai, e de seu pai, e do pai do seu pai, indefinidamente. E como é bom me lembrar de todos eles a cada vez que me olho no espelho!

Aquelas cravadas entre meus olhos, também presentes do meu pai, ganharam mais proeminência com um involuntário e gratuito mau humor que sempre me acompanhou, especialmente ao despertar.

O pouco que sobrou das sobrancelhas originais me fazem recordar a rotina semanal de extração radical de pelos, durante boa parte da adolescência. Toda tarde de sábado era marcada pelo encontro de amigas em busca do padrão de beleza da época. Dois arcos desenhados à base de muita dor abriam espaço para sombras coloridas e rímel preto, que só faziam parecer menores meus olhos já pequenos. Foi tamanha a insistência em removê-las que, quando as quis de volta, não ressurgiram como antes.

Não me disseram, naquela época, que havia vários padrões de beleza e que em algum eu me encaixaria sem tanto esforço.

Rugas mais finas ao redor de meus olhos são também fruto de uma intolerância à luz solar desde a infância. Os óculos de sol foram adotados tarde demais. E, para completar, os cílios ralos e pequenos se devem a recorrentes e desconcertantes terçóis na infância. E, se terçóis são o único inconveniente de que me lembro, significa que tive uma infância feliz.

A origem italiana e o excesso de sol na adolescência vêm me presenteando ao longo dos anos com manchas no rosto. Sou de uma época em que protetor solar e informação sobre câncer de pele não eram comuns. Ao contrário, sol e piscina eram minha rotina na cidade pequena e quase sem opções de lazer, e o bronzeamento era símbolo de saúde e sensualidade. Até que a pele resistiu bem aos produtos mais do que suspeitos espalhados pelo corpo e rosto expostos ao sol. Hoje, a cada repreensão da dermatologista respondo com um sorriso, não arrependido, de quem passava tardes inteiras regadas a coca cola em piscinas, à toa, na companhia de muitos amigos. Memórias que compensam o preço de agora dispensar muito cuidado com novas marcas como essas. Não quero outras, mas essas me são muito caras.

Outras marcas na face, como as que rodeiam minha boca, contam qual é o lado preferido enquanto durmo, o quão pouco eu sorrio, como é meu semblante em repouso, entre outros hábitos.

E há as marcas invisíveis do meu rosto. Não consigo defini-las, mas são elas que, como num passe de mágica, me deixam parecida com minha mãe, e assim me vejo quando me olho no espelho. Eu, que sempre fui a filha que puxou ao pai e não à mãe, encontro minha mãe em meu rosto. O rosto de meu pai se transformando no de minha mãe, conforme o tempo passa e vai me deixando cada vez mais próxima deles. É fantástico!

Minhas histórias seguem rosto abaixo. O pescoço, ah o pescoço, não me deixa esquecer minha mãe. Magra e muito elegante, durante toda sua vida ela moldou seu guarda-roupa para esconder ou disfarçar o que não gostava em seu pescoço. Golas altas e lenços marcavam seu figurino, do mais informal aos de festa. E como ela foi em bailes e festas! Comparados ao pescoço, só mesmo seus pés, que sofreram por décadas devido a dois grandes joanetes. Esses, ela pode extrair, mas o pescoço a descontentou até o final da vida. E o deixou de herança para mim. Não posso dizer que agradeço, mas confesso que me agrada ter algo tão dela comigo. Felizmente não preciso dos joanetes para me aproximar dela!

Por último, os joelhos. Uma vida inteira de atividades físicas variadas, algumas descuidadas, outras exageradas, e muitas corridas depois, meus joelhos reclamam. Eu poderia dizer que assim o é por causa da minha mãe, mas isso seria contar a história pela metade. Minha mãe tinha, sim, artrose, aliás, nada demais para quem viveu 99 anos. Mas minha mãe tinha joelhos especiais. Ajoelhou-se diariamente por mais de 60 anos para rezar o terço, e tinha dois calos enormes nos joelhos. Calos de fé, de devoção, que não podem ter sido ignorados quando ela chegou no seu destino final. A artrose eu compartilho com ela, mas seus calos não podem ser herdados. Essa marca é dela e só dela.

Quando vejo as pessoas ansiosas ou felizes por eliminarem as marcas que vêm com a idade, não posso deixar de lamentar a perda das memórias que elas poderiam manter. Quando vejo rostos marcados pelo tempo, fico imaginando as histórias que podem ser contadas a partir dessas marcas.

Quem quiser saber sobre mim, olhe minhas marcas e pode me perguntar suas histórias. Será uma oportunidade para que eu me apresente de verdade a você. Elas não me deixarão mentir.