Alma

Alma

O nome não poderia ser mais apropriado: Alma. É exatamente uma alma diferenciada que aquela figura feminina sugere. Porque alma remete a desapego, despojamento, pureza, leveza. Essa mulher alta, magra, madura, de rosto naturalmente envelhecido por seis décadas, e emoldurado por cabelos assumidamente grisalhos, quase brancos, artificialmente despenteados num corte moderno, causa a impressão de que a idade pode construir mulheres mais interessantes do que as jovens padronizadas de hoje.

O contraste da cor dos cabelos com a segurança de seu andar e com seu traje leve e moderno sugere elevadas auto-estima e confiança. Nenhum excesso se destaca. Cores neutras em roupas confortáveis que escondem um corpo cuidado, mas já não belo, realçam apenas elegância. Nas mulheres maduras, causa admiração e certa inveja; nas jovens, uma possível referência para o futuro.

Quem a conhece sabe que essa leveza é inata. Passou a vida – e a vida passou junto dela – sem acusar no corpo os golpes do infortúnio. E não foram poucos. Sempre impedida de seguir os caminhos que escolhia, encarava os contratempos com determinação, e perseguia caminhos alternativos e paralelos aos de seus sonhos. E parecia sempre chegar lá. Não pôde fazer uma faculdade, mas foi autodidata na área que abraçou – gastronomia – e virou uma autoridade. Amou com paixão na juventude, mas não foi a escolhida. Seguiu sozinha, e ninguém diz que isso a fez infeliz. Parece que tem mais tempo, mais alegrias, mais serenidade que qualquer uma de suas amigas.

Quem não a conhece – coincidência! – tem as mesmas impressões. Sua figura sugere uma mulher independente e sozinha, dona de sua vida e de mais ninguém. Seu ar despreocupado, porém focado em alguma coisa relevante, confere a ela uma importância difícil de definir, protegendo-a da aproximação de pessoas que nada lhe acrescentariam. Nisso se enganam. Alma é extremamente empática e, para qualquer um que dela se aproximar, dispensará atenção e simpatia.

Impossível não pensar que Alma vive livre, que nada pode atingi-la, e que o tempo não será capaz de alcançá-la. Essa é a Alma que todos vêm. Mas o que será que carrega a alma de Alma?

Alma sabia bem do efeito que sua figura causava nas pessoas. De certa forma a divertia a ideia de poder enganá-las. Tinha consciência de suas fraquezas, e essa imagem autoconfiante era fruto de um plano muito bem executado para ocultar suas dores e suas mágoas.

Quem imagina que nada é capaz de atingi-la sequer desconfia do gosto amargo e perene de rejeição que ela carrega desde que foi abandonada por uma grande paixão do passado. Palavras duras e injustas a feriram de tal forma que, de tanto que foram lembradas, geraram um plano de vida para Alma. Nada de vingança, nada de perdão. Toda sua energia foi empregada em fazer de si uma imagem de mulher que na realidade era oposta ao que se sentia ser. E ela conseguiu.

Como recompensa, sentia prazer com os olhares que despertava, com a imagem daquela mulher refletida no espelho. Todavia, a amargura de sua vida era sentida diariamente na solidão das horas em que se despia de roupas e máscaras e se lembrava de cada palavra dita por aquele que poderia ter feito dela não um modelo, mas uma cópia das mulheres comuns que a rodeiam.

A notícia da partida definitiva daquele homem matou não só sua esperança inconfessável de reencontrá-lo, como toda sua força para continuar viva. Alma deixou voluntariamente sua silhueta elegante, para ser lembrada por muito tempo. Afinal, almas nunca morrem.