Prerrogativa de Garupa

Prerrogativa de Garupa

Você viaja de moto na garupa? Sim. E gosta? Sim! Mas não é perigoso? É. E mesmo assim você viaja? Sim. Já caiu da moto? Sim. E ainda confia no piloto? Quase sempre. E quando chove, não é ruim? É. E no calor, não sofre? Sim. Passa frio também? Sim. Mas não é cansativo? Pode ser. E fica todo aquele tempo sem conversar com ninguém? Sim. E ainda assim, gosta? Sim. Mas, que diabos, você é louca ou o quê?

Talvez loucura seja viver a única vida que temos e nunca desfrutar de uma viagem de moto, ainda que na garupa apenas. Não há muitas razões racionais (!!) para gostar de viajar de moto; o que há é um prazer puro e simples, descomplicado, de se sentir parte da paisagem, de flutuar sobre as estradas, de sentir as curvas, os cheiros da natureza. E não é preciso estar paramentado com os símbolos da marca da moto ou com a última moda em couro; nem pertencer à tribo X ou Y; bastam os equipamentos mínimos de segurança e um espírito leve e livre, que lhe permitam buscar e descobrir novos caminhos, cantos e sabores, e ao menos um bom companheiro de viagem, que lhe dará o que precisa numa emergência, bem como o prazer do papo nas paradas.

Todo prazer explicável deixa de ser prazer verdadeiro. Prazer é um sentimento individual, peculiar, e cada um sente o seu. Se fosse necessário justificar o prazer sentido, ele perderia toda a graça. E assim acontece com as viagens de moto. Não há o que explicar, só o que sentir. Haverá quem não goste; provavelmente os que não estão preparados para isso. Haverá os que sentem prazer equivalente ao viajar de carro. Sem problema. Há situações em que só de carro é possível; não se discute. Mas carro é um meio; moto é o fim. Essa é a diferença.

Há coisas que só o garupa pode ver. Por mais que o piloto esteja atento a tudo à sua frente, algumas coisas, alguns ângulos, alguns movimentos, só o garupa pode testemunhar. Sei lá, talvez sejam olhares diferentes, objetivos diferentes. O piloto quer sentir a moto, perceber seu comportamento numa curva, numa brecada, numa arrancada. Além disso, precisa estar ligado aos detalhes, no carro da frente, no de trás, naquele que começa a aparecer no horizonte da pista oposta, e naquele que ainda vai se configurar após a curva. E tem ainda o GPS, as luzes previstas e imprevistas no painel, etc. É muita coisa. Para o piloto, apreciar a paisagem aparece em segundo plano. É lucro.

Para o garupa, no entanto, a paisagem é tudo, muitas vezes é o objetivo da viagem. Sem muito mais o que fazer, contemplar a paisagem é tudo o que cabe a ele. Pouca coisa escapa ao garupa. Todos os veículos que ultrapassam e que são ultrapassados; as crianças dos bancos traseiros, olhares atentos, alguns acenos, olhos sonhadores que devem se perguntar do prazer da dupla sobre aquela máquina; motoristas entediados, olhares tristes que pousam sobre onde gostariam de estar.

E assim o garupa, tão perto e tão independente do seu piloto, constrói seu cenário particular, sua própria história da viagem.Toda viagem de moto gera ao menos uma história a ser contada. Às vezes, essa história é apenas do garupa.

Em 2011, éramos 4 casais em motos BMW em viagem pelos Alpes. De passagem pela cadeia montanhosa ao norte da Itália, as Dolomitas, subíamos por uma linda e movimentada estrada, era uma ensolarada e quente manhã de julho. À direita e à esquerda se revezavam os dois lados de uma mesma montanha, ora morros com vegetação razoavelmente densa, ora precipícios e uma linda vista da planície abaixo. E como ao garupa nada escapa, foi numa olhadela descompromissada para cima quando avistei um grande urso marrom-dourado, brilhante, em pé, altivo. A vegetação e o movimento da moto fizeram dessa visão um flash apenas, rápido demais para poder chamar atenção do piloto, que certamente nada veria a seguir. Assim como eu não mais avistei o urso. E tudo indicava que ninguém mais o teria visto, já que isso fatalmente geraria um certo tumulto.

E assim fiquei tão estupefata que só falei sobre isso na parada seguinte. Não acreditaram, atribuíram a visão ao chá que bebi no café da manhã, e disseram que aquilo era impossível, pois não existiam ursos ali. Como não podia provar e não conhecia a história dos animais daquela região, me calei e deixei que pensassem que nada daquilo aconteceu.

Foram necessários três anos e uma viagem à terra dos tais ursos, no Canadá, também de moto, para que a história fosse recontada. Soube ali que, sim, há ursos no território das Dolomitas. Na verdade, haviam sido eliminados dali no passado, e apenas recentemente foram reintroduzidos. Portanto, eu poderia, sim, ter visto um urso por ali.

O piloto não viu, ninguém viu. Só essa garupa. Podem não acreditar, mas ninguém lhe rouba essa história; é prerrogativa que lhe cabe. E ponto final.

(2015)