Felicidade demais me irrita

Felicidade demais me irrita

Anelê Volpe, 2022


Costumo dizer que pessoas muito felizes me irritam profundamente. É uma brincadeira, mas tem um fundo de verdade também. Pessoas que estão sempre sorrindo, que são muito amáveis e agradáveis, positivas, otimistas, que muitas vezes superaram pequenas ou grandes tragédias pessoais e cuja felicidade nos atinge como um soco no estômago. Pode até parecer inveja, mas não é. Até porque minha irritação vem da minha incapacidade de acreditar nessa felicidade toda.         

Com o mundo desabando à nossa volta, como uma pessoa pode ser feliz? Seria preciso não enxergar, não ouvir, não pensar, não sentir. Ser grata por não sofrer muito, por não ter privações, por conseguir satisfazer seus desejos e ambições, tudo isso é natural, é aceitável e saudável. E quanto maior o contraste entre você e o mundo, maior deve ser a gratidão. Mas ignorar tudo em volta e se dizer feliz e realizada como se isso fosse nada além de tudo o que você realmente merece, ora, isso já é demais.

As pessoas felizes e bem-sucedidas sentem-se merecedoras de sua boa sorte e tentam compensar seus privilégios com boas ações dirigidas aos menos favorecidos. Fazem bem. Mas não podem achar que a conta fecha. Não sei o que mais devem fazer, não cabe só a elas resolver essas diferenças, mas sentir-se em paz com essa equação também não ajuda. A felicidade nos paralisa, pois nos leva a não querermos mudar. A não-mudança perpetua o que há de ruim, o que há de errado.

Mas eu dizia que não acredito na felicidade das pessoas felizes. Chego a sentir compaixão por elas, pois elas estão tentando desesperadamente alcançar esse estado de plenitude e perfeição. Nesse sentido, as admiro. Eu não consigo me esforçar a ser feliz na esperança de que o esforço desapareça sorrateiramente deixando apenas a felicidade. Meu mundo não é tão simples assim. Meu estado de espírito é completamente dependente de tudo o que me rodeia. E hoje tudo o que vejo em minha volta são sinais degradantes demais. Injustiças, pobreza, fome, violência, racismos, desgovernos, guerras, mentiras, como é possível ser feliz? Como não se indignar? Como lutar sendo feliz?

Mas não é porque penso assim que acho que todos devem ser infelizes. Não, é exatamente o oposto: quero que mais gente seja minimamente feliz, e por isso em alguma medida, em alguns momentos, temos que sentir indignação e raiva que nos tirem do nosso mundinho feliz e medíocre, e nos levem para o campo de batalha para conquistar a felicidade de mais gente.

É por isso que desconfio de pessoas que não sentem raiva, que não têm desafetos, que nunca se deprimem, que sempre querem sorrir para todos a todo momento. Ou são dissimuladas ou se apropriaram da felicidade para expressar alguma coisa que está longe de ser a felicidade que eu almejo. E isso me deixa irritada.