Anelê Volpe é  o alter ego de Maria das Graças Volpe Nunes, professora universitária na Universidade de São Paulo, em São Carlos, onde pesquisa a (im)possibilidade de os computadores comunicarem-se na língua humana. Começou a escrever crônicas do cotidiano em 2009 e só recentemente tem se dedicado também aos contos e aos poemas. Suas crônicas familiares estão reunidas na obra “Sobre nós e nossos ontens” (2020) e alguns poemas em “Poetizando” (2020).  "Sobre Tudo um Pouco", de 2021, traz crônicas, contos e poemas. Tem crônicas e poemas publicados nas coletâneas “Crônicas da Quarentena” e “Elas, o Amor e os Ramos”, da Páginas Editora (2020), “Interlúdio, Antologia Poética”, da Editora Recanto das Letras (2021), e 21 Poemas para 2021, da Páginas Editora (2021).

Meus escritos

Quando me dei conta de que meus escritos eram pouco mais do que bem-escritos apenas, já estava viciada em escrever. E nada me faria parar, nem a consciência de que eles não mudariam a vida de ninguém, além da minha própria.

Mas isso já seria muita coisa, afinal. Não é fácil reverter o curso de uma vida. Em geral isso acontece depois de uma tragédia pessoal, um incidente, ou qualquer coisa muito ruim. Quando a vida é alterada por algum acontecimento muito bom não julgamos como uma reversão, mas como um merecimento ou sorte ou benção ou qualquer coisa especialmente boa. Já a mudança consciente deve ser refletida, planejada e requer investimento. Foi assim com meus escritos.

Sabia desde sempre que gostava de escrever, como também sabia que não tinha talento para criar grandes histórias. A necessidade de falar sobre fatos de minha vida – que não tem acontecimentos tão especiais que possam gerar bons romances – produziu muitas crônicas sem compromisso com a literatura. Levou muito tempo para que fossem oferecidas a outros leitores, sempre pessoas generosas que não fariam críticas confiáveis. Ainda assim, me sentia motivada a continuar. Poucas incursões na ficção e na poesia, porém, sem dar qualquer salto significativo.

Mais algum tempo, muitas palavras materializadas e algum investimento no ofício, e veio a coragem de publicar o que estava guardado. Sim, pois textos eletrônicos são voláteis e se for para serem lidos, então que assim seja em qualquer tempo.

Mas ao candidato a escritor é preciso uma dose de coragem e outra de humildade. Coragem de mostrar talento ou sua falta, humildade para receber críticas ou silêncio. Elogiar é fácil, criticar é difícil. A crítica requer uma argumentação, e nem todos leitores são ou se sentem capazes de fazê-la. Assim, se o elogio exigir esforço demais, o silêncio é muito mais confortável. E o que o silêncio diz ao escritor?

Imagine-se pintando um quadro, com muito mais esforço que talento, mas com disciplina, prazer, investimento. Quando acha que está à altura da crítica de quem vai vê-lo e da sua própria, você o expõe e aguarda ansiosamente as reações. Há três categorias de observadores: os amigos que reagem apenas porque sabem o que você espera deles (“Que bonito!”, “Você desenha muito bem!”); aqueles que gostariam de criticar, mas querem te agradar (“Você leva jeito para a pintura!”, “Continue investindo, vai chegar lá!”, “Por que você não tenta com cores mais vibrantes?”); e há a maioria indiferente, que não vai reagir. Será que viram seu quadro? Prestaram a devida atenção? Não se importam com você? Acham a pintura supérflua? Qualquer opção pode magoar o pintor.

Com os escritos ocorre o mesmo. Embora os efeitos no leitor possam ser mais traduzíveis (“Comigo acontece a mesma coisa!”, “Também penso assim!”) – e talvez por isso mesmo – os atributos do escritor são menos fáceis de se perceber. Se escrever de maneira muito clara, isso não é necessariamente um talento: com pouco esforço, qualquer um faz o mesmo. Se escrever de forma mais erudita, isso pode ser mais entrave do que talento. Se escrever sobre o cotidiano, falta-lhe criatividade. Se a poesia rima, é infantil; se não rima, não é poesia.

Enfim, o que faz a diferença mesmo é uma boa história. Daquelas que tornam o escritor invisível e sua forma de contar, imperceptível. Muitos esquecerão seu nome, mas nunca o do livro ou de seus personagens principais. Grandes personagens podem até compensar histórias fracas. Assim, criar grandes personagens que vivem histórias marcantes é a receita de um sucesso editorial.  Mas deve haver um momento ideal para uma boa história. Por mais criativo ou imaginativo, o escritor, antes de tudo, tem que ter lido e observado muito para criar uma história que conquiste os leitores. É preciso conhecer muito bem a natureza humana para criar personagens ao mesmo tempo extraordinários e factíveis. Não podem ser perfeitos demais, nem vilões demais. Devem compartilhar alguns traços com o leitor, mas devem ser suficientemente diferentes para causar interesse.

Enquanto vou gestando personagens marcantes, dou vida a vários outros, anônimos, desinteressantes, esquecíveis, de cujas histórias, reais ou imaginárias, vou formando a minha própria.


Anelê