Tinha que ser assim

Tinha que ser assim


Eu sempre imaginei que um dia mamãe simplesmente não acordaria de manhã. Simples assim. Sem dor nem sofrimento. Seria levada durante um sonho, como numa poesia.

Achava que era o que merecia. Inconscientemente, no entanto, queria evitar nosso próprio sofrimento também. Mas não foi assim. E eu me perguntava diariamente, no seu último mês, por que deveria ser daquela forma, afinal, era um sofrimento desnecessário. Já estava declarado que ela não voltaria a ser como antes. De que valia sofrer tudo aquilo se antes também já estava ruim? Uma vida tão longa e especial merecia um final especial. Como o do papai, por exemplo. Precoce, muito precoce, mas sem sofrimento, num lugar especial. Essas eram minhas indagações e, na falta de respostas, só pensava na nossa impotência perante nosso destino.

Passadas algumas semanas, naturalmente pensando muito nela, chego à conclusão de que nada é por acaso também nesse episódio. Talvez a resposta às minhas perguntas seja muito mais simples do que pensamos. Não teria ela que fazer o trajeto longo que fez para ter de fato uma vida plena? Não teria que passar por tudo para vivenciar perdas e dores que ela sempre ouviu de quem procurou consolo com ela? Não teria que sentir, nas próprias alma e carne, angústias e dores e nos mostrar que era capaz de suportá-las e seguir adiante? Não teria que nos fazer enfrentar seu fim para crescermos como seres humanos e sabermos esperar pelo nosso próprio? Tinha de ser assim.

Mamãe nunca se conformou com a perda da visão. Confesso que eu esperava mais resignação e conformismo de pessoa tão religiosa. Ingenuidade, a minha. Não seria sua última lição, afinal? Não teria que viver 100 anos para conhecer o que foi uma de suas piores perdas? Em que medida ela mudou com esse sofrimento? Em que medida nós mudamos com ele? Isso não a tornou mais humilde? Mais dependente e mais próxima de nós? Mais próxima de Deus, já que pedia agora para si mesma? Conhecemos melhor a mamãe nos últimos anos. E não me refiro às suas queixas e pequenas manias e teimosias. Ao contrário, nos deu uma lição de paciência e serenidade, quando sabíamos que ela não se conformava com sua situação. Quantas vezes se desesperou, chorou, culpou, praguejou?

E então lhe veio o sofrimento físico no seu último mês de vida. O sofrimento que ela não merecia, e que veio para nos sacudir, nos unir em torno dela e permitir nossa despedida. Espero que vocês tenham tido a mesma oportunidade que eu tive, de dizer a ela, dois dias antes da sua morte, que a amava e que ela logo ficaria bem. Não mentia, ela ficou bem. Ela acreditava nisso e eu também quero acreditar.

 Cada um sente essa perda do seu modo e ela tem significados diferentes para cada um de nós. Na minha rotina, distante há 38 anos, acordo pensando que não tenho mais que telefonar “pra casa”, não tenho mais pra quem contar as novidades daqui e ouvir de volta palavras de incentivo e orgulho; jamais de cobrança. E sabem por que não dá pra fingir que tudo continua como está, já que eu não a via frequentemente? Porque quando penso nela, não consigo deixar de vê-la feliz. Feliz como há alguns anos ela não ficava mais. E isso me deixa feliz. É difícil confessar, mas me sinto assim desde quando ela se foi. Feliz por ela. Muito feliz por ela, por mais que a falta dela represente uma mudança enorme nas nossas vidas. Ela, que sempre se mostrou receosa com a morte, ávida por chegar aos 100 (que, aliás, chegou, já que há 100 anos, em agosto, ela já vivia no útero materno), poderia estar sofrendo agora? Claro que não! E assim devemos ficar nós: felizes por ela, orgulhosos por ela, agradecidos por tê-la tido como mãe e exemplo de ser humano a seguir.

(Aos meus irmãos 20/9/2013)