Exposição "Colocando caos na ordem", de Gustavo L. Pozza (RS)

Colocando caos na ordem


A fotografia é o resultado de um aparelho. Mais precisamente, a fotografia é resultado da operação correta de um aparelho. Não de uma técnica de operação, mas de uma ordem de operação que inicia na percepção da realidade. Compreender que o que se percebe, o que se entende como realidade é resultado da absorção de imagens, que a construção do léxico com que se comunica (com) o mundo é fruto de todas as imagens que já se viu, significa afirmar a dependência da percepção à imagem. Assim, o uso do aparelho fotográfico determina aquilo que consideramos realidade, numa circularidade entre percepção e produção que destaca a relevância política e social da fotografia.

Flusser propôs o clareamento da caixa preta da fotografia, da estrutura hermética que compõe o aparelho como utilizado quotidianamente, ou seja, que se compreendesse o processo pelo qual se converte – tecnicamente – o mundo em imagem para que se possa clarear também o processo pelo qual se transforma imagem em mundo. Assim, experimentar com a fotografia implica investigar, para além das possibilidades do meio, as capacidades interpretativas da realidade. A fotografia analógica, liberada de sua função pela evolução tecnológica, já percorre esses caminhos ao se permitir ser algo além do que lhe autorizava o programa de seu aparelho, pela exploração de diferentes suportes ou processos e pelos resultados orgânicos de linguagens que derivam dessa experimentação.

A fotografia digital, por sua vez, é ordem. O código ordenador da estrutura numérica não convida à experimentação. Pelo contrário, qualquer alteração no programa é erro, é crash. O mundo imagem digital fica, assim, restrito à existência naquilo que lhe é permitido pelo programa. Sair da ordem significa quebrar, danificar, impedir o funcionamento correto e perfeito do aparelho. A manifestação digital se apresenta como a única via, como o tudo (1) ou o nada (0) em que a máquina impõe: ou se faça a meu modo ou eu quebro. A ansiedade da vida digital é resultado da necessidade natural de experimentação impedida pelo programa, da necessidade de buscar o novo pela reestruturação da ordem.

O ser que opera a câmera é orgânico, o corpo se adapta, molda a forma ao mundo e o mundo a sua necessidade. Torna o errado em norma, o normal em antigo e a dúvida em criação. Clarear a caixa preta digital é mostrar que existe uma pluralidade de organizações possíveis, de interpretações e de fazeres que, a sua maneira, dão sentido ao mundo e à percepção da realidade. O fetiche pela ordem precisa ser confrontado pelo caos, porque o conservadorismo da ordem é a idolatria do atraso. Acima de tudo, a ordem incólume é ilusão, uma vez que o caos circunda, infiltra, desmorona a certeza. Aceitar a inevitabilidade do caos é entender a finitude, a mutabilidade, saber da inconstância da experiência e de que tudo que se entende – e como se entende – um dia será suplantado pelo novo. Clamar por ordem é se acorrentar a um tempo que já passou.

A ordem imposta, repetida e circular, invoca a moral pela moral, o fazer porque é de praxe e o ser porque é devido. O caos é reflexivo. Precisa se provar efetivo e possível. O novo vem do experimento, do reorganizar, rever e reconstruir. A ordem impassível é cega para o novo.

Criadas pelo processo curiosamente chamado de databending – nome que pressupõe que os dados são maleáveis, moldáveis, e que, contrário ao que propõe o mundo ordenado digitalmente, seu manusear não resulta em erro, mas em uma nova ordem – as imagens são resultado da avaria de fotografias digitais pela modificação aleatória de sua estrutura, seja pela edição dos dados que a formam, seja pela aplicação de códigos de programação que a corrompem. O resultado que se vê, tão caótico quanto inesperado, é a materialização do caos enquanto imagem, decorrência da reorganização da imagem digital em sua ordenação mais básica, interpretada e experienciada como uma nova possibilidade, em que o referente já não é mais aquilo que deveria ser, mas sua potência, aquilo que pode vir a ser.

Colocar caos na ordem é permitir uma vivência experimental em um programa que preza pela organização imposta. É demonstrar que a imagem, oriunda e originante da realidade, pode descumprir aquilo que lhe é permitido pelo aparelho, é fazer do corpo, da moral e da certeza a matéria-prima, o código de um novo programa.


Gustavo L. Pozza

É fotógrafo, pesquisador e professor. Doutor em Filosofia e graduado em Fotografia, procura incorporar os conceitos desenvolvidos em suas pesquisas nas produções artísticas, de maneira a incutir percepções e temas contemporâneos em representações visuais. Autor dos livros “Contemplando um soldado morto” e “Anima”, participou de exposições coletivas e individuais. Suas produções buscam investigar os limites da fotografia, da representação e da relação do espectador com a arte.







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