* - Adeus, Sargento Jardim

ADEUS, SARGENTO JARDIM

Não! Ser Militar não é necessariamente um Sargento Tainha, que esmaga o pobre do Recruta Zero, nem tampouco um Sargento Garcia que é feito de bobo pelo Zorro a todo instante.

Ser Militar é ser um Sargento Davino, Bacharel em Economia, que nas aulas de História do Brasil, disse-nos a nós, Cursandos da Formação de Cabos da Aeronáutica, depois de provar por “a + b” as nossas origens genealógicas que somos descendentes de ladrões degredados, prostitutas deportadas negros revoltados e índios acomodados, realidade que as Escolas tradicionais, obstinadamente, se empenham em ocultar dos alunos, deixando-os descobrir mais tarde, nos bastidores brutais da Vida; ser Militar é ser um Capitão Glasner, que era o Comandante da Companhia de Polícia da Aeronáutica, em Recife, e também o Coordenador dos Cursos de Telegrafia e Polícia, que passava a noite em qualquer boteco com qualquer recruta, como bons amigos, mas se não chegasse, como ele, ao quartel, às sete da manhã, pronto para o serviço, seria punido como outro qualquer que faltasse; ser Militar é ser um Sargento Valfrides, na Base Aérea de Salvador, que nos tratava como filhos, com total apoio do Tenente Grangeon, saindo todos nós da P.A. sem uma única punição, pois as penalidades que davam eram somente dobrar o sábado e o domingo no serviço para os infratores do regulamento. Concedia dispensa para quem pedisse, desde que dentro dos limites estipulados. Perdoava qualquer falta ao expediente, desde que fosse justificada com um único telefonema, não sendo necessárias explicações. Jogava voleibol conosco, como se fosse um de nós. Praticava Educação Física, como qualquer garoto e zelava pelos princípios religiosos, como bom Cristão; ser Militar é ser um Sargento Lourinaldo que nos ensinou, em Educação Física, a Calistenia Moderna do C-2120, preparando-nos para um futuro mais saudável, o que prezo, apesar dos reumatismos, mas, acima de tudo, ser Militar é ser um Sargento Jardim, que na sua minúscula figura, como dizem na gíria militar, de um metro e sessenta nas pontas dos pés, cabelos mais brancos do que grisalhos, físico quase de menino, que entrava na sala para nos ensinar Geografia, ou Telegrafia, ou Matemática, sem a arrogância dos Sargentões, saudando, jovialmente:

– Bom dia, Meninas!

Ora! Nós não éramos Meninas! Nós éramos soldados fazendo o Curso de Cabos, para assumirmos as nossas posições. Nós passamos maus bocados nos matos em Salvador, Recife, Natal, ou Fortaleza, ouvindo nas noites escuras o chocalhar da Cascavel aos nossos pés. Nós desfilamos com o garbo dos Militares de Escol nas grandes Paradas Militares. Nós guarnecemos o avião do então Presidente Castelo Branco, C-47, Douglas DC-3, dormindo sob forte vento, na Base Aérea de Salvador, debaixo da asa, sendo preciso amarrar as pontas do lençol ao pescoço, à guisa de babador, para não sair voando. Guarnecemos o Alojamento de Trânsito, naquela Base Aérea, quando lá havia trinta e oito Sargentos presos, tidos como “Comunistas”, pobres coitados afastados dos seus postos por ridícula ideologia política. Guarnecemos o grande fiasco que foi a mentira deslavada da campanha do OURO PARA O BEM DO BRASIL, ponto de partida para os astronômicos depósitos na Suíça, pois filas enormes de senhoras, principalmente, depositavam o conteúdo de enormes envelopes, contendo brincos, voltas, pulseiras, etc., sem o menor controle de pesagem ou contagem, durante uma semana inteira, para receber um anelzinho metálico com a inscrição: DEI OURO PARA O BEM DO BRASIL. De cada militar foram descontados dois dias de vencimentos, fosse de qualquer corporação. Nós nos defrontamos com marginais, maconheiros, capoeiristas, no baixo meretrício do Pelourinho, atual Cartão de Visita da cidade de Salvador, em patrulhas mistas com a Polícia do Exército e Fuzileiros Navais.

Não! Nós não éramos meninas, mas, como pouco mais que adolescentes que éramos, imbuídos do Espírito Militar, respondíamos quase que em uníssono:

– Bom dia, Sargento!

E a aula, fosse de Geografia, Telegrafia ou Matemática, lá estava ele, sempre risonho, alegre e brincalhão, dando-nos tal liberdade que alguns de nós extrapolavam, chegando ao ponto de, no calor das tardes pernambucanas, tirar um cochilo, estirados nos largos bancos de madeira, sem dele ouvir a menor censura ou reproche. Quando um ou outro mais exaltado ou irreverente, às vezes fugia da conscientização militar não ouvia dele queixa a superior nem admoestação arrogante, mas apenas o comentário lacônico:

– Eu tenho moral, não gosto de usar!

As aulas de Telegrafia eram um gozo. Todo mundo “manicaca” ou “foca”, como eram chamados os calouros em telegrafia, quando ele começava a transmissão na cadência de uma ou duas palavras por minuto (cinco ou dez letras), preparava o pessoal psicologicamente, e dizia:

– Atenção! Já!

E começava na lentidão de um caracol reumático, mas o impacto do “Já!”, dava a impressão que a cadência seria superior à do vibroplex, que só os grandes operadores conseguiam captar.

Quando havia algum erro, que já tendia a se transformar em confusão, ele logo resolvia o problema, puxando pelo seu “r” paulista:

– Rrrrisca tudo, e vamos começar tudo de novo!

Todos preparados, ele dava o início:

– Atenção! Já!

E, começava: Pip! Pip, pip! Pip, pip, pip! ...

Mas, apesar da lentidão, com raras exceções, como o caso de Santana, que já era profissional, ou Brito e eu, que já tínhamos um bom começo, e algum outro excepcional, como Lins ou Alves, todos pulavam nos seus lugares, com medo de perder uma letra sequer.

Recordo-me de uma vez em que nos encontramos em um ponto de ônibus no centro de Recife, quando ele confessou estar sem o trocado para o coletivo, e pediu-me emprestado, vindo devolver mais tarde. Quando recusei, ele usou o argumento convincente:

– Se você não receber, de outra oportunidade, não lhe procuro mais!

Foi o bastante, não que importasse a mim o valor da passagem, mas o receio de ter o querido mestre em circunstâncias semelhantes, e não me procurar, por uma simples recusa.

Fatos como este, via de regra, ocorrem uma única vez, e não mais fui procurado por ele, como é de se supor.

Rara era a noite, após o jantar, em que Lourildo, Almeida, Vivaldo e eu não íamos à casa do Sargento Jardim, e lá ficávamos sentados conversando com ele ou com as meninas do lado de fora, ouvindo os garotos tocarem ao violão as músicas da década de Sessenta, até que chegava a hora de ir dormir. Lembro-me que ele tinha dois filhos e duas filhas, mas só me acode à mente os nomes de Célio, Tânio e Magali.

Numa das noites, Célio preparava o dever de casa, e, após ouvir do pai os ensinamentos necessários a respeito dos assuntos de Matemática, que era também uma das disciplinas que nos ensinava, foi resolver os problemas, não acertando, porém, e pedindo ajuda novamente ao pai, que retrucou:

– Célio, meu filho, você precisa aprender a resolver sozinho os seus próprios problemas, para saber viver!

Célio começou a chorar e não sei se ele ajudou após nossa saída, mas é quase certo que sim, pela sua índole.

E, assim era o nosso bom Sargento Jardim!

Era, porque hoje já não é mais!

Hoje ele nem jaz sob sete palmos de terra!

Como o Príncipe do Deserto, o bom Exupéry, ele se foi como se vão as andorinhas, após o Verão.

Ele se foi, para não mais voltar, e não se sabe para onde!

Foi assim:

Findo o curso, em dezembro de 1965, fui designado para Caravelas, no Sul da Bahia, e, posteriormente, para Ilhéus, um ano e meio depois, mas sempre perguntava a alguém vindo do Norte, pedindo notícias do pessoal de “lá”. Em uma das ocasiões, soube que o Sargento Jardim havia sido transferido para Fernando de Noronha. Tempos depois, procurei novamente notícias e me disseram que ele fora pescar nos penhascos do Arquipélago e não voltara para casa.

E, foi só!

A verdade é que o Sargento Jardim simplesmente desapareceu em Fernando de Noronha!

Carregado por uma Corrente Marinha?

Devorado por um tubarão?

Só Deus o sabe!

Mas, esteja onde estiver, Sargento Jardim, aqui fica o meu preito de gratidão a um dos maiores instrutores que tive em minha vida, especialmente no militarismo, lugar onde todos são considerados Monstros Destruidores, mas que, na verdade, só se encontram homens que amam, que sofrem e que choram, como em qualquer lugar do mundo.

Adeus, Sargento Jardim!...

Que Deus o abençoe, onde estiver!...

Raul Santos