* - Professores Emergenciais - Os Prostitutos da Educação

PROFESSORES EMERGENCIAIS

(Os prostitutos da Educação)

Eu sei, porque sou e estou, mas isto é muito bom, porque a gente se despe do orgulho e do egoísmo, e aprende a amar e perdoar.

Foi nos idos dos cinqüenta que tudo começou. Eu era um garoto de dez anos, do interior da Bahia, onde não havia estrada e o primeiro jipe que vi, me deu vontade de mijar no meio da rua, de medo ou de emoção, sei lá...

Anos depois, fugi de casa e o meu pai foi me buscar. Daí, virei bregueiro e ele me mandou para Salvador. O irmão dele, tio Roberval, era da Secretaria da Fazenda, mas estava emprestado para a Segurança Pública, e foi o veículo para meu ingresso na Aeronáutica. Fiz curso de cabo radiotelegrafista e peguei alguns reengajamentos. O Presidente da República era João Goulart e um mês depois entrou Castelo Branco. Acho que ele não gostava de cabos e soldados, porque tinha um monte com vinte anos ou mais de serviço e uma das primeiras providências que tomou foi buscar uma Lei que nos impedia de completar dez anos, para não pegar estabilidade. No final de oito anos, fui dispensado e por sorte ou programação do Mais Alto, foi criado o quadro de radiotelegrafistas na Polícia Federal, em Ilhéus, pelaC.L.T.

Entre setenta e oitenta, fizemos provas teórica e prática, e não entramos no quadro porque havia muitos sargentos reservistas da Marinha e da Aeronáutica, que não podiam ser estatutários, e também nós ficamos impedidos. Resultado: esperei quase dez anos, fiquei de saco cheio, mandei tudo às favas e abracei a Educação.

Em oitenta e oito, lecionei no Colégio Municipal de Porto Seguro, mas, porque falei para Eduardo da Costa e Silva Abu Jamra que tinha preferência pela candidatura de Parracho ou Assir Ramos, o Baiano, José Ubaldino Pinto, eleito, suspendeu meu pagamento e fu para em São João do Paraíso, Mascote, Bahia, até noventa e dois, quando o Fernando Nunes da Silva, também adversário político, suspendeu meu pagamento por tempo indeterminado, ou seja, por quatro anos. O detalhe é que nenhuma das duas prefeituras recolheu a previdência, nem me cadastrou, sequer, como funcionário, ou ao menos não constou do cadastramento quando fui averbar o tempo de serviço, no INSS.

No dia onze de janeiro de noventa e três, ouvi no programa Show da Tarde, pela Nacional da Amazônia que o colégio de Castanheiras, em Rondônia, precisava de dez professores de nível superior. Telefonei e a tia Hilma, Secretária Municipal de Educação, ofereceu transporte, alimentação, pousada, contrato no Estado e um salário mínimo de gratificação. Dito e feito, em fevereiro, fui contratado emergencialmente, voltei algumas vezes à Bahia, a passeio.

O contrato atravessou os dois últimos anos do governador Osvaldo Piana, médico, e os quatro do Waldir Raupp, mas foi bastante o José Bianco tomar posse, governador, em noventa e nove, e mandou oitocentos e cinqüenta e dois para as cucuias, na primeira cacetada. Depois mandou mais alguns milhares, por volta de dez mil, que retornaram, ou não.

De primeiro de março a primeiro de julho de noventa e nove, fiquei em Ariquemes, desempregado, na casa da minha prima Ivone, carregando sacos de carvão, na bicicleta, para ela vender churrasquinho. Vim a Porto Velho, dar baixa na Carteira de Trabalho e encontrei Borges que me arranjou outro contrato, para o TELENSINO, pelo SESI, de parceria com a professora Maria Gadelha, para Abunã, distrito de Porto Velho, que eu nem sabia onde ficava e durou até trinta e um de janeiro de dois mil.

Em outubro de noventa e nove, peguei também contrato da Prefeitura de Porto Velho, para Mutum Paraná, e em dois mil e dois fui empossado em concurso público, também para Mutum.

Em dois mil e três, uma equipe da SEDUC recrutou nova turma para a Zona Rural, e meu nome saiu para Vista Alegre do Abunã, porque na divisa com o Acre e Amazonas, Rondônia tem cinco Abunãs, que são:Distrito de Abunã, dez quilômetros antes da balsa, no Rio Madeira, rio Abunã, Fortaleza do Abunã, Vista Alegre do Abunã e o conjunto todo que é a Ponta do Abunã. Mizael, diretor em Mutum Paraná, correu para puxar

meu contrato, mas a escola Nossa Senhora de Nazaré, sendo Municipal, não teve estrutura para implantação do Nível Médio, e daí Edson me puxou para a Marechal Rondon, em maio de dois mil e três, contratado, desta vez, de parceria com Joelma, até janeiro de dois mil e quatro. O grande problema foram os cinqüenta quilômetros entre Mutum Paraná e Abunã, sem transporte. O único ônibus que passava no horário era a Teklatur , que saía de Porto Velho às dezesseis e trinta e só passava no Mutum às dezenove horas, quando eu já deveria estar em sala. Comprei um fusquinha, mas o que eu ganhava não dava para o combustível, e o Edson saiu em campo para ver se conseguia financiamento pelas Secretarias, enquanto eu me virava com as caronas. O esforço foi infrutífero, mas por uma questão de concorrência, o impasse foi resolvido, porque a Real Norte colocou um ônibus para Extrema e aTeklatur antecipou o horário, passando as duas em Mutum por volta das dezoito horas. O fusca ficou parado e depois vendi para o Pedrinho, técnico de telefonia. Em março de dois mil e quatro, pegamos outro contrato, até janeiro de dois mil e cinco.

Em abril de dois mil e cinco, porque Joelma assumiu a direção da Nossa Senhora de Nazaré, peguei o contrato, já de parceria com Carlinha, que ficou balançado em dezembro de dois mil e seis. Por uma questão de regularização do TELENSINO na Marechal Rondon, nos meses seguintes, foi sendo empurrado com a barriga, até sair o concurso Público, entre abril e junho de dois mil e sete, deixando no ar a pergunta inquietante: Se não é permitido por Lei a contratação de funcionários sem concurso público, mas os professores têm sido usados como joguete nas mãos das autoridades, em que situação fica a Educação, com as nossas crianças, sem aulas, recebendo cobranças de aprendizagem daquilo que não lhes foi ministrado?...

Quanto aos emergenciais, estes, nos quadros oficiais das Secretarias de Educação, de maneira discreta, mas às vezes explícita, são vistos e tratados como as prostitutas, ou melhor dizendo, como as piranhas de beira de BR, em que o caminhoneiro pega em Porto Alegre e vai até Boa Vista, numa boa, quase como um casal apaixonado. Na primeira oportunidade, porém, por encontrar outra mais bonita, um telefonema de casa ou mesmo por ter enjoado da cara dela, dá-lhe um pontapé no traseiro, atirando-a da boleia de cara na poeira da rua ou da estrada, e lá se vai ela, rodar bolsinha numa terra que jamais houvera sonhado conhecer ou que existia, depois de ter ouvido a frase:

– Sai daqui, vagabunda!...

Perambula por algum tempo e ocorre aparecer outro caminhoneiro que vai para Rio Branco. Descompromissada com o mundo e de alma lavada do tratamento anterior, sorri, abre a porta e parte, como se aquela boleia tivesse sido sempre o seu lar, mas que não dura mais que uns poucos dias, e eis que, novamente, à mercê da crua realidade, recebe outro pontapé e ouve a velha frase:

– Sai daqui, vagabunda!...

Um banho num igarapé, um pão seco com água e novamente a bolsinha na beira da BR, de alma lavada da rotineira afronta, mas não dá tempo de se revoltar, porque o estômago é mais importante.

De Rio Branco para Recife, a demora é o próximo convite, e a certeza do próximo pontapé e da frase padrão:

– Sai daqui, vagabunda!...

Mas a vagabunda aprendeu a não se importar com os pontapés e os xingamentos, ela aprendeu a trazer a ternura ao seu modo no coração, até porque, depois dos percursos de Porto Alegre para Boa Vista e de Rio Branco para Recife, traçou sem querer uma cruz no solo brasileiro.

De maneira similar, também os professores emergenciais são tratados como essas prostitutas que vão com o primeiro que aparecer, porque a necessidade é premente e o estômago não tem tempo para falsos moralismos e, depois de carregar tantas cruzes, aprende facilmente a perdoar a sucessão de pontapés e xingamentos recebidos.

Sai daqui, vagabunda!...

Raul Santos