* - A Mexerica

A MEXERICA

Raul Santos

Já era século XX . Os jatos cruzavam os céus de norte a sul, de leste a oeste, as televisões coloridas já retransmitiam jogos olímpicos e fogos cruzados de desalmados adversários, através de satélites que perambulavam, não é bem o termo, em órbitas siderais dirigidas e sincronizadas com as respectivas estações transmissoras e retransmissoras.

O velho era preto, mas se nasceu no período da escravidão, dele saiu na mais tenra idade sem lhe haver conhecido na pele os horrores, graças ao providencial Decreto da Lei do Ventre Livre. Vira de perto inúmeras e enormes atrocidades que, somadas aos relatos dos pais e dos avós, tinham sofrido os pobres diabos na travessia do Atlântico rumo ao cativeiro na mais nova terra descoberta, irônica bizarria da Terra Prometida, acorrentados por dois longos meses, homens, mulheres e crianças, que misturavam fezes e urina com vômitos e, os que não resistiam às torturas, entregavam suas almas ao Criador e seus corpos eram atirados ao oceano, sem a menor piedade.

Não sabia contar ao certo a quantidade de anos que o prendiam àquela fazenda: sessenta, setenta, oitenta?... e que importavam os anos, se crescera com os antigos donos e vira nascer o novo patrão que assumira após o falecimento dos pais? Os pimpolhos, nem se fala, vira-os, havia apenas alguns anos, em fraldinhas, crescer com a rapidez do relâmpago, a cada período que retornavam, nas férias acompanhados dos colegas que se entregavam aos mais infantis folguedos, a fim de aproveitarem ao máximo aqueles pouquíssimos dias, brincando, sorrindo, tocando guitarra, jogando bola, nadando, cavalgando, tomando leite no curral de manhã, sem se darem conta de outra realidade, como se a temessem perder.

No calor da tarde, o enorme salão de amplos janelões recebia o grupo alegre de jovens, com o vento a lhes beijar as faces, em apoteótica confraternização com Deus e com a Natureza.

O velho Benedito subiu a pequena escada, ainda mastigando o último bocado, com passo lento em direção ao grupo, a caminho dos seus afazeres, e reconheceu a voz que tantas vezes acalentara chama-lo pelo nome, em tom seco:

– Seu Benedito, o senhor sabia que essas mexericas o meu pai mandou plantar para nós e os nossos amigos, quando a gente vem de férias? O senhor pediu a alguém para chupar? Eu não vou nem contar ao meu pai o que aconteceu aqui, agora, pois nem sei o que ele é capaz de fazer com o senhor, mas espero que esta seja a última vez que o senhor faz isto!

O pobre velho ouviu a admoestação e retrucou, simples e humilde:

– Ô, Patroazinha, eu não colhi no pé não. Eu peguei do chão, que tava com uma banda “pôde” – e apontou para o terreiro – pra num “esperdiça”. “Mim adiscurpe”, viu, Patroazinha? Eu num sabia que ia “aburrecê” a senhora!...

Percebendo o rumo delicado que tomava a conversação, ao ver a moça empalidecer frente aos colegas, seu namorado, de temperamento espirituoso, puxou-a para o meio da roda dos amigos e iniciou uma anedota, enquanto o velho descia a escada, contornando uma laranjeira, mais outra e outra mais, sentando-se ao pé de um pequeno e carregado coqueiro, enquanto ouvia as risadas alegres dos jovens com o epílogo da anedota. Fechou os olhos e exalou o último suspiro, sentindo-se envolver por suave música celestial e leve arrebatamento por mãos angelicais, cercado de inolvidável perfume de suave aroma.