* - A Maldição da Lenda

A Maldição da Lenda, por Raul Santos

Alberto era um jovem guitarrista de Serra Dourada, filho do farmacêutico e namorado da filha do prefeito, mas os delegados começaram a ser assassinados. Ele foi atirado na guerra pelo Governador e defrontou-se com índios que protegiam o segredo da extração de Urânio por extra-terrestres e que era contrabandeado, uma barragem que ameaçava uma castanheira secular, a criação de um pomar, uma horta comunitária, o criatório de cabras para fornecer leite, muita emboscada, muito amor e muita corrupção.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

ÍNDICE

CAPÍTULO UM - A Lenda da Maldição

CAPÍTULO DOIS - Problemas Ecológicos

CAPÍTULO TRÊS - O Piquenique

CAPÍTULO QUATRO - O Jantar

CAPÍTULO CINCO - O Cargo e o PATO

CAPÍTULO SEIS - Conjecturas, Confidências e Arrumações

CAPÍTULO SETE - Em Caráter de Urgência

CAPÍTULO OITO - Escafandro no Rio e Microfone Secreto

CAPÍTULO NOVE - Pesadelos e Balas Vindas do Nada

CAPÍTULO DEZ - Quem Não Tem Memória, Faz Papel de Bobo

CAPÍTULO ONZE - Falcão Entra na Caçada Com o Cérebro a Mil CAPÍTULO DOZE - Uma Fumacinha Azulada e a ENGETEC na Jogada

CAPÍTULO TREZE - O SANTO GUERREIRO Numa Noite de Cão

CAPÍTULO QUATORZE - Luz Acesa Fora de Hora e o PATO Ataca Novamente

CAPÍTULO QUINZE - O Contra-Ataque, e a Caça Vira Caçador

CAPÍTULO DEZESSEIS - Manobras Bem Coordenadas Previnem Surpresas

CAPÍTULO DEZESSETE - Silêncio Na Quadrilha, Mas a Placa do Caminhão Faz o Sargento Voar

CAPÍTULO DEZOITO - Segredo, Mas Nem Tanto, e a Morte de um Ser Humano

CAPÍTULO DEZENOVE - Inquérito No Conselho dos Anciões

CAPÍTULO VINTE - BOITATÁ Faz Prisioneiro e ET’s Tapam Buraco Com Totem

CAPÍTULO VINTE E UM - Dr. Charles Duvida, Mas Colabora, Porém Fica Intrigado

CAPÍTULO VINTE E DOIS - Meu Deus, Não Quero Ser Assassino!...

CAPÍTULO VINTE E TRÊS - Navegando em Brancas Nuvens, Mas Não o Ecologista

CAPÍTULO VINTE E QUATRO - Obrigado, Guitarra Querida!...

CAPÍTULO VINTE E CINCO - Dois Coelhos de Uma Só Cajadada e o Médico Arranca

. Lágrimas Do Delegado

CAPÍTULO VINTE E SEIS - Reunião de Cúpula e Uma Cervejinha, Que Ninguém é de Ferro

CAPÍTULO VINTE E SETE - Luzes no Final do Túnel, Mas, e os Índios?...

CAPÍTULO VINTE E OITO - No Ventre da Terra, Um Mundo À Parte, Mas Tem o Caminhão...

CAPÍTULO VINTE E NOVE - Parabéns, Sargento!...Obrigado, Pra Você, Também!...

CAPÍTULO TRINTA - O mundo Virou de Ponta Cabeça...

CAPÍTULO TRINTA E UM - ...e Mexeu Com Todo Mundo

CAPÍTULO TRINTA E DOIS - (Enquanto Chega o Dr. Carlos...)

CAPÍTULO TRINTA E TRÊS - ... Mas, Depois, o Mundo Pega Fogo

CAPÍTULO TRINTA E CINCO - BOITATÁ Só Diz o Que Pode, Mas o Carbeto Decide

CAPÍTULO TRINTA E SEIS - Sem a Peça-Chave, Nada Feito... e o Sargento Precisa Voltar

CAPÍTULO TRINTA E SETE - Insolência e Temor, Mas Será Que o Chefe Vai Almoçar?

CAPÍTULO TRINTA E OITO - O Índio Delator Apareceu, Mas É Hora de Almoço

. e os Anjos Dizem Amém

CAPÍTULO TRINTA E NOVE - Coreografia Para Almoçar? Quem Fez o Quê?...

CAPÍTULO QUARENTA - Vitória & Derrota

CAPÍTULO QUARENTA E UM - Terrível Angústia, Mas a Missão Foi Cumprida

CAPÍTULO QUARENTA E DOIS - Clarões Mentais: Amigos, Sim, Namorados, Talvez...

CAPÍTULO QUARENTA E QUATRO - Qual Foi o Erro do SCRIPT?..,

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

CAPÍTULO UM

A Lenda da Maldição

É uma pena, Excelência. Não sabemos mais o que fazer com a onda de crimes que invadiu Serra Dourada. Foram sete delegados que, ou se amedrontaram pela chantagem psicológica e se afastaram, foi violentamente assassinado ou sofreu misterioso acidente e a cidade ficou aterrorizada, querendo a população abandonar a região.

– Muito bem, Sr. Prefeito, mas o senhor não tem a menor ideia de onde partem tais desmandos? Uma pista, uma denúncia, um comentário, uma referência? Nada?

– Sinto muito, Excelência, mas nada há que nos dê qualquer pista para levar aos assassinos. Com certeza o único a descobrir qualquer coisa foi o delegado Euclides, que ficou surpreso e me telefonou informando ter descoberto uma pista para algo monstruoso. Eu era candidato, e depois dele, infelizmente, tivemos mais seis que ou abandonaram o cargo ou foram mortos por assassinato ou por acidente. O Problema maior é que estamos sendo pressionados pela comunidade, o juiz, o padre e eu, sob pena de vermos as casas em total abandono. Numa só palavra, Serra Dourada encontra-se em vias de ser tornada uma cidade fantasma como as dos filmes americanos.

– Como anda, Sr. Prefeito, o processo de nomeação do novo delegado?

– Sr. Governador, o motivo pelo qual encontro-me diante de Vossa Excelência, é que nenhum dos cidadãos de Serra Dourada quer assumir, temendo sofrer o mesmo que os outros, ou seja, morrer prematuramente ou abandonar o cargo sob a pressão chantagista.

– Como sabe o senhor que são chantageados?

– Primeiro foi só uma suspeita que tomou corpo após a morte do Epaminondas. Ele havia deixado o cargo sem explicações, mas cometeu o erro de confidenciar ao Fulgêncio o telefonema que recebera de ficar calado, recebendo os proventos, fechar os olhos e tapar os ouvidos. Homem de fibra mas com filhos para criar, preferiu deixar para quem tivesse mais coragem. Indignado, o Fulgêncio alardeou que não iria deixar a coisa como estava, e assumiu a delegacia. Daí, morreu Epaminondas envenenado. Nós sabíamos da sua mania de colher a primeira laranja que estivesse ao alcance da mão e fazer um suco, de manhã cedo. Sabedor disso, foi o bastante aplicar o veneno com uma seringa de injeção na laranja que estava mais próxima da porta da cozinha e aguardar que ela fosse colhida cedo ou tarde. Infelizmente, foi muito cedo. O Fulgêncio, temperamental e destemido, recebeu um telefonema e foi encontrado com o corpo crivado de balas em frente à sua casa, quando saía para ir ao encontro do misterioso comunicador.

– Uma dúvida, Sr. Prefeito, se todos na cidade se conhecem, ou pelo menos parecem se conhecer, por que a voz não é identificada e por que não se ouviram os tiros que mataram o delegado?

– Comenta-se que o Epaminondas não identificou a voz porque parecia a de um pato, muito fanhosa, e a arma era munida de silenciador. Por estes motivos é que venho rogar a V. Exª. que mande um delegado experimentado, se não uma força policial que vá lutar contra um fantasma, pode-se dizer inexistente.

– Sr. Prefeito, qual seria o motivo, qual seria a causa de todos esses crimes?

– Aí está, Excelência, o nosso problema. Nada temos que justifique essas mortes. Somos pessoas pacatas que vivemos modestamente do cultivo do feijão, milho, arroz, mandioca, criando porcos, perus e galinhas, Os mais abastados possuem seus rebanhos de vacas, mas todos em perfeita harmonia, a não ser pela MALDIÇÃO DA LENDA...

– MALDIÇÃO DA LENDA?!... Que lenda?

– Na época da colonização, os bandeirantes encontraram uma tribo indígena muito próspera no local onde hoje os nossos jovens se reúnem em piquenique, ao pé de uma enorme castanheira, que era o local preferido do cacique se sentar, em conselho, com o seu povo. Os bandeirantes sentiram a hospitalidade e acamparam no local, pretendendo renovar as provisões e continuarem desbravando. No meio deles havia, como em todos os lugares, pessoas de temperamento violento, que estavam constantemente em choque entre si e com os nativos, tanto por questões de direito como por causa das mulheres silvícolas que, dizem, eram muito bonitas, porque não dizer verdadeiramente belas...

O governador emitiu um Oh! de admiração e o convidou a continuar.

– Na época da colheita, estavam muito felizes mas um dos exploradores havia se apaixonado pela filha do cacique, prometida ao filho do pajé, resolveu tomá-la à força num momento que a encontrou sozinha na beira do rio, mas foi descoberto pelo rival, desconfiado, que lhe seguia os passos. Lutaram e apesar da força e agilidade do índio, o bandeirante versado em artes marciais dos países por onde andara como marinheiro e pirata, terminou por deixar ali o jovem mancebo com os sonhos de moço. A moça contou ao cacique que saiu em busca do agressor. As facções lutaram muito e a destruição foi inevitável. Conta-se que ao dar o último suspiro, o cacique declarou que naquele local, sempre que houvesse alguma maldade no coração de qualquer homem, os moradores seriam amaldiçoados. Os sobreviventes fundaram um povoado que recebeu moradores nascidos ou chegantes. A lenda passou de geração para geração até os nossos dias. Há três ou quatro gerações, os costumes fixaram a tradição de homenagear aquele povo pacífico com piqueniques anuais no local da tragédia. Só não sabemos como nem onde encaixar estes fatos à lenda, que nem sabemos ao certo se é verdadeira, apesar dos registros.

Pensativo, o governador quedou-se, meditabundo, deixando o interlocutor intrigado com o turbilhão de pensamentos que cruzavam aquela mente notadamente brilhante.

CAPÍTULO DOIS

Problemas Ecológicos

Do escritório bem montado de engenharia, Carlos Morales dominava grande parte da Avenida Atlântica, quando a secretária informou que havia uma ligação interurbana.

– Alô?!... Sim, é Carlos Morales!... Os nossos advogados trabalham incansavelmente, mas o problema com os ecologistas não pode ser resolvido do dia para a noite. Depois das mortes na Amazônia e do Juruna na Câmara Federal, temos de agir legalmente. Qualquer deslize a imprensa vai cair em cima da gente. Minha companhia goza de quinze anos de tradição e não vou permitir que um projeto qualquer venha pô-la abaixo... Sei que há muito dinheiro em jogo, mas prefiro um pássaro na mão do que dois voando... Se o senhor quer matar dois coelhos com uma só cajadada, eu prefiro ficar com o meu coelho e deixar o outro escapar. Se o senhor não pode esperar, arranja outra companhia pra cuidar do caso, que eu coloco à disposição... Claro, meu amigo, é por esta tradição que temos zelado todos estes anos o motivo da confiança que os senhores estão inspirados, e vamos trabalhar sempre em cima da maior lisura... Quando precisar, estaremos às ordens. Nossos advogados, em Brasília, estão cuidando do assunto com o apuro que o caso requer. Até breve.

Desligou e chamou a secretária:

– Por favor, chame Brasília, com urgência!

Feita a ligação, a secretária anunciou:

– O Dr. Sérgio na linha, Doutor!

– Alo, Sérgio?!... É Carlos Morales! Escuta, meu velho, como está o caso de Serra Dourada? Acabo de receber um telefonema deles, dizendo que estão dispostos a tomar as mais duras providências, se não agirmos depressa... Foi o que falei. Não vamos destruir dez anos de tradição por um ato impensado e irresponsável!... Fique frio, meu velho, só agiremos conforme suas instruções.

Desligou e voltou ao interfone:

– Dona Marilza, por favor, ligue com o escritório de Serra Dourada!

Um momento depois, ouviu a secretária:

– O Sr. Bonifácio na linha, Doutor!...

– Alo, Boni, como está?... Tudo bem?... Fico contente. E o trabalho?... Muito bem, continuem conforme o combinado. O prefeito, tem cumprido com a parte dele?... Ótimo! É um bom homem... Às voltas com quê?... Três assassinados e quatro abandonaram? Mas o que está acontecendo aí, amigo? Mistério do Hitchcock?... Mas você não é de se assustar com pouca coisa e vem me dizer que é coisa de deixar Sir Conan Doyle e Ágata Chrystie de bocas abertas? Santa Madre de Guadalupe. É o fim do mundo! Mas conta pra mim o que vem acontecendo por aí, Boni?!...

Depois de ter ouvido a narração, o engenheiro perguntou:

– Alguém tem conversado com você a respeito da área ecológica?... Deixa com a gente, e continue com o projeto da irrigação. Não se meta com os ecologistas pra não levar sobra e deixa os advogados cuidarem do caso... OK, Boni, boa sorte e um abração!... Até mais. – Desligou e exclamou, num desabafo: Ufa, uma bronca a menos!...

CAPÍTULO TRÊS

O Piquenique

O som da guitarra se confundia com os da natureza, fazendo coro à algazarra dos jovens, à sombra da enorme castanheira. As moças pulavam corda, as crianças jogavam bola, os adultos conversavam animadamente, os rapazes variavam entre futebol, namoro, cavalgada ou o banho no límpido regato que serpenteava por entre as pedras, um pouco mais distante. Qualquer pessoa que conhecesse A Lenda poderia facilmente identificar os pontos dos fatos ocorridos séculos antes, e cada circunstante como querendo apagar as imagens dolorosas do passado, elevavam os pensamentos como em preces harmoniosas ao Alto, procurando aproximar-se dos amigos como se tivessem a presença viva do cacique e estivessem a pedir desculpas pelas ofensas sofridas no passado, numa invasão profana aos costumes mais puros e às tradições mais sagradas.

O que mais chamava a atenção era o toque da guitarra havaiana que conduzia os pensamentos às mais variadas divagações conforme a circunstância em que eram feridas suas cordas. Quando parava por alguns instantes, outro a tomava, dedilhando, de parceria com o cavaquinho, timbale, violão, pandeiro e acordeão, transformando aquele recanto outrora palco de batalha em ambiente divino de festa. Barbosa entregou-a para Alberto, que deu início aos acordes de uma guarânia, e foi acompanhado pelo grupo. Antônio pegou o microfone e cantou com voz roufenha, mas não foi censurado, porque todos ali tinham liberdade de fazer o que bem entendessem. Depois, Alberto entoou uma música country que reboou pelos ares nas notas agudas, fazendo a quem as ouvisse ser transportado aos plácidos campos de preces celestiais.

Ao pé da castanheira, Dominício e Malaquias, secretários de Administração e de Fazenda da Prefeitura, comentavam a luta, como fato ocorrido na véspera.

– Foi neste local que o cacique caiu. A Lenda diz que uma raiz descoberta da castanheira serviu de travesseiro no seu último sono!...

– É verdade – respondeu Malaquias. – É como se a gente tivesse presenciado. Cada ataque, cada um que tombava, está presente, como verdade de hoje.

– Mas como podem ter tanta certeza, se a batalha foi há tanto tempo?

– Amigo, – informou Dominício sem atinar na intromissão do desconhecido – nós nascemos e crescemos com A Lenda e ela faz parte da nossa vida. Não existe uma criança de Serra Dourada que se entenda por gente que não conheça ao menos algum detalhe dela. O restante vai enriquecendo à medida que ouve as narrativas ou lê os escritos.

– Mas todos na cidade adotam esta concepção, quer dizer, todo mundo aqui acredita realmente que os fatos tenham ocorrido conforme as narrativas que se sucedem de geração para geração, ou porventura haverá alguém que coloque alguma dúvida na história, ao menos por supô-la diferente do que dizem?

Os homens se olharam como se não entendessem e Malaquias informou:

– Amigo, o senhor é novo na cidade e por certo quer se inteirar do nosso modo de vida, mas para seu próprio bem, aconselho a aderir aos ensinamentos, pois as tradições seguem cada um dos lances daquela luta fatídica de mais de trezentos anos. Ninguém por aqui tem a menor sombra de dúvida quanto à veracidade dos fatos ocorridos. Se há alguma pequena discordância em relação aos bandeirantes e aos índios, é que não temos escritos de todos os detalhes, mas do que houve de mais importante, não prescindiram os da época de repassar a nós, descendentes, as experiências vividas durante a batalha.

– Se os amigos permitem, apenas uma pergunta!...

– Toda pergunta será bem vinda!...

– Por que insistem em chamar de lenda o que está comprovado com registros?

Outra vez eles se olharam, mas para soltarem a mais gostosa das gargalhadas, e Dominício explicou:

– Nós sempre soubemos ou souberam os nossos avós, mas o senhor há de convir que com registro histórico ou não, a palavra LENDA oferece um toque de mistério, convidando qualquer pessoa a ser um bom ouvinte, ainda mais com a MALDIÇÃO!...

O visitante deu-se por satisfeito, agradeceu e saiu circulando por entre as pessoas, ainda arrancando um pequeno comentário dos interlocutores:

– ujeito simpático, este!...

– É! Parece gente boa!...

* * * * *

O estilo da festa era bastante singular. Uma diretoria eleita angariava fundos e as despesas corriam por conta da Tesouraria. Cada pessoa não devia tomar uma cerveja ou dose a mais da quota paga. Vez por outra, um morador trazia um convidado, certo de que ninguém levaria vários de uma só vez ou seguidamente, para evitar choque com outras pessoas, a menos que fosse feita comunicação prévia. Assim, os moradores eram livres de convidar quem quer que fosse. Além disso, eram eleitos garçons e garçonetes em cada temporada, que serviam sem fazer perguntas indiscretas, como: “Você pagou a quota?” ou “De quem você é convidado?”.

De prato e refrigerante nas mãos, o visitante deixou Malaquias e Dominício, circulando sem pretensão fixa, até que ouviu referência aos delegados e aproximou-se.

– ... e Fulgêncio recebeu o telefonema às duas da madrugada. Dona Mercedes disse que estava cansada mas quando ele falou que ia sair, olhou no despertador e ainda tentou convencer de ir no outro dia, mas ele disse que a pessoa estava apavorada e precisava dele, pois estava com medo. Todo mundo sabia como ele era, temperamental e não mandava recado. Daí, terminou costurado de bala numa madrugada fria. Só não entendo como é que o cara sabia que ele ia sair naquela hora?!... Vai ver, tinha grampeado o telefone dele ou da pessoa que ligou, como nos filmes... – E, malicioso – ou em Brasília! Ah! Ah! Ah!...

– Eu acho que eles ficam como os espiões, esperando a pessoa sair para atirar...

– Mas espião não atira em ninguém, eles só seguem...

– Eles, quem, se a gente nem sabe quem foi? Nem os tiros, a dona Mercedes ouviu. Quando o Tião levou o pão, viu o Fulgêncio caído, dentro do portão, no pé da roseira.

– Eu sei é que se o prefeito não der um jeito nisso, eu vou é me mandar daqui com a minha família. A mulher anda tão nervosa que até o sal na comida bota de mais ou de menos. Qualquer dia desses vai botar sal no café e açúcar na comida.

– O prefeito não tem nada a ver com essa história, não! Quem tem de providenciar outro delegado é o juiz, que vive se metendo no que não é da conta.

– Tudo que ele se mete é da conta. No que foi que ele se meteu, sem ser da conta?

– Comigo!...

– Quem mandou você se meter com de menor?

– Mas eu ia casar! Agora só vou casar obrigado por aquele enxerido.

– Tem certeza de que não gosta nem um pouquinho dela? – Perguntou o visitante, com olhar maroto, arrancando risadas. – Eu, quando casei, disse a mesma coisa.

– senhor também casou na marra?

– ão foi bem assim. Eu não queria me casar com uma virgem. Confessei à noiva, tentando convencer a colaborar comigo e ela disse que iria colaborar, deixando a vaga para outra que preenchesse os requisitos. Eu disse que só servia se eu desvirginasse, então ela perguntou o que era mesmo que eu queria. Eu disse que queria ter a sensação de estar em frente ao juiz com complexo de culpa. Sabem o que ela fez? Contou ao pai que contou ao padre e ao juiz, que decidiram fazer o casamento no religioso num dia e o civil no outro, quando ela já não fosse mais virgem. Percebi o engodo e quis cair fora, mas era muito tarde. Muito tarde demais, pois a viagem do juiz, só vim saber que fora simulada um ano depois, quando minha primeira filha nasceu. O presente que recebi foi a confissão. Fiquei com raiva, mas venceu o amor, não sei se por ela ou pela filha, ou por ambas!...

Os ouvintes ensaiaram um ar de riso para o final da narração, mas perceberam que acabavam de ter uma das maiores provas de inteligência, sensibilidade, amor e formação moral de que é dotado um ser humano e concluíram que aquele homem, fosse quem fosse, devia ser muito feliz no casamento. Encabulados, tentaram dizer alguma coisa, sem saber o quê, mas foram salvos pelo próprio, que perguntou:

– Quando cheguei aqui vocês falavam de pão e de roseira. O que significa isso?

– É que o senhor pegou a história pela metade. A gente falava do Fulgêncio que recebeu um tiro, caiu no pé da roseira e foi encontrado pelo Tião, quando levou o pão.

– Um tiro, não. Ele recebeu três tiros, pra ter certeza que matou.

– Como é que você sabe que era pra ter certeza?

– Ora! Quem dá três tiros, é pra matar, mesmo, e não deixar nem sinal de vida.

– Mas quem era Fulgêncio e por que ele foi alvejado?

– Bem, ele sabia que o Epaminondas tinha recebido o telefonema do cara, dizendo pra ele ficar quetinho e de boca fechada. Daí, o Fulgêncio ficou com raiva e falou que ia ser delegado no lugar do Epaminondas e o Epaminondas morreu de manhã cedo quando tomava o suco de laranja e o Fulgêncio recebeu o telefonema de madrugada que a dona Mercedes não queria que ele fosse ver quem era de madrugada, mas ele disse que uma pessoa podia morrer e que confiava nele, e ele tinha de ir ver o que era lá perto da ponte que vai pela estrada velha do Córrego do Ouro.

– Acho que entendi. Mas quem foi que telefonou e quem atirou no Fulgêncio e por que foi que o Epaminondas morreu quando tomava o suco de laranja?

– Aí é que está o xis da questão. Ninguém sabe por que o Epaminondas morreu, nem quem telefonou e nem quem atirou no Fulgêncio. Tem mais, ninguém sabe quem telefonou para o Epaminondas com voz de pato.

– Voz de pato?

– É! O Epaminondas disse ao Fulgêncio que deixou a delegacia porque tinham telefonado pra ele com voz de pato, dizendo que ele ficasse quietinho, de bico e ouvidos tapados. Ele ficou foi com medo e caiu fora, mas morreu na hora que tomava o suco de laranja que ele mesmo preparou. Acho que tinha veneno no açúcar.

– Não tinha veneno no açúcar, não, pois eu tomei café que a dona Benta me deu...

– Então, ele morreu foi de coração, mesmo, e o povo só porque ele era delegado fica dizendo que morreu envenenado. Não sei por quê?!...

– E agora, o que vocês acham que as autoridades vão fazer?

– Quem sabe? Ninguém mais quer ser delegado aqui em Serra Dourada. Apesar de todos amarmos a cidade, depois da morte do Fulgêncio, todo mundo vive apavorado com a história da Lenda e se o prefeito ou o juiz ou o padre não tomarem uma providência, a cidade vai virar cidade fantasma, feito os filmes de caubói.

– Mas será que não aparece nem um homem capaz de ser delegado e vai ser preciso as pessoas abandonarem a cidade? Pelo que sabemos, só os delegados têm morrido. Daí, se conclui que as outras pessoas estão livres da ameaça.

– É aí que o senhor se engana, moço, pois os quatro que abandonaram eram homens alegres, amigos de todo mundo e depois que saíram, não falaram com mais ninguém. O Epaminondas foi o segundo, quer dizer, o primeiro depois do Euclides. Foi tudo muito rapidinho, mesmo. Depois que o Epaminondas saiu, assumiram o Baltazar, o Enoque, o Godô e o Miro. Eles levaram mais ou menos dois meses, entregaram a delegacia e se fecharam sem falar com mais ninguém. O único que abriu o bico morreu de laranjada. O outro quis ser mais macho e recebeu chumbo. Agora, o que é que falta? É a gente ver um bocado de tanques de guerra entrar pela rua e os nazistas acabarem com tudo. Não! A gente vivia uma vida tranqüila de apagar uma página vergonhosa e eu, pelo menos, não tenho mais nervos. Olha lá, o Alberto é que devia ser nomeado delegado. Sujeito metido a besta, só vive com aquela guitarra, parecendo que nunca precisa de ninguém. Há quem diga que é boa gente, mas eu, particularmente, não vou muito com a cara dele, não.

– Quem é o Alberto?

– É o filho do farmacêutico! Estuda na capital, namora a filha do prefeito, quer ser engenheiro ou médico, ainda não sabe... Não sabe porque nunca deu duro pra ganhar o pão. Queria ver ele na pele dos que saíram escorraçados. Eu acho é que já falei demais. Dizem que mato tem olho e parede tem ouvidos. Sei lá se vai sobrar pra mim, também... Por falar nisso, de onde vem o senhor, amigo, que mal pergunte, se não sou indiscreto?

– Nada!... Tudo bem e muito bem perguntado. Acho até que o pessoal daqui nunca pergunta nada. Já comi, já bebi – mostra o prato e a garrafa – e ninguém, a não ser o senhor, me perguntou nada. Sou da capital e venho à procura de um pedacinho de terra pra pastagem. Disseram que aqui seria fácil encontrar, mas agora estou confuso, pensando em desistir, com esses acontecimentos. Não tenho muita coragem de enfrentar o desconhecido e tem muito fantasma na história, pra o meu gosto. – Desculpou-se ao ver as fisionomias se fecharem e lembrou-se da Lenda. – Mas por que não indicam o rapaz para o cargo, apesar de parecer muito jovem, ainda?

– Jovem, nada!... Se é que ter vinte e dois anos significa ser jovem. Aí é que é bom. Sangue novo, nervos fortes, músculos ágeis, raciocínio agudo, se tocar guitarra, jogar futebol, lutar caratê e ler muito fazem tudo isso... Dizem que é muito inteligente!...

– Bem, creio que estou me metendo no que não é da minha conta e pode sobrar é pra mim. – Desculpem, mas vou dar uma circulada. Até mais ver.

– Até! – Responderam, em uníssono.

– pois que se afastou, o tagarelas perguntou:

– Quem é ele? Veio a convite de quem?

– Você não conhece a ética? Convidado de um, convidado de todos. Sozinho é que não ia aparecer por aqui. Era ser muito cara de pau, não acham?

– éééé!... Tinha de lavar o rosto com óleo de peroba, concentrado!...

– e circulou entre as pessoas, sentindo-se muito à vontade. Cumprimentava um saudava outro, brincava com uma criança, chutava uma bola, até chegar onde estavam os músicos. Aguardou um pouco e no intervalo pegou o violão do Louro do Bode, conferiu a afinação e jogou um Lá menor para o Alberto, que rebateu à altura e tocaram um dueto de maneira que pareciam velhos companheiros. Música vai música vem, a tarde declinava e resolveram dar uma parada para tomar alguma coisa, quando ele parabenizou:

– Não acha que você deveria gravar um LP no estilo do Poly?

– Eu não levo jeito. O senhor é que devia gravar um no estilo do Dilermando Reis!

– Modéstia!... Com um bom patrocinador e um bom empresário, você seria sucesso em pouco tempo. Tenho uns amigos que gostariam de ouvir você tocar. Quer tentar?

– Quem sabe, no início das aulas vá procurá-lo, então veremos.

– Ótimo! Vou deixar meu cartão, e não deixe realmente de me procurar.

– Devo marcar audiência ou simplesmente telefonar?

O rosto do homem empalideceu levemente, e ele respondeu:

– Basta telefonar. Ouvi algumas referências a seu respeito, mas a melhor de todas foi o dueto. Caso queira, após o jantar, poderemos continuar a tocata. O que acha?

– Ah! Com muito prazer!...

– Então, posso convidá-lo a jantar comigo?

– Com prazer!...

– Às oito?

– Britanicamente!

– Gosta da Inglaterra?

– Muito fria. Sou mais o Brasil!

– Sir. Connan Doyle?

– Moysés Weltmann!

– Sherlock, não?

– Jerônimo! É mais brasileiro, mais romântico, sabe? Aninha, Saci!...

Um acorde e o dueto voltou a funcionar, chamando de volta os parceiros.

CAPÍTULO QUATRO

O Jantar

– Muito britânica a sua pontualidade!...

– Londres tem o Big Ben, o Rio tem o da Central, Salvador tem o de São Pedro... temos muitos relógios não tão famosos, mas que marcam certas as horas. Assim, não precisamos ir buscar longe o que temos aqui!...

– Filósofo?

– Não, apenas observador do que tenho em volta!...

– Observador ativo, passivo ou indiferente?

– Conforme o ponto de vista!...

– Uísque ou cerveja?

– Um uísque, por favor!

– O uísque é escocês!

– Eles também tomam pinga!

– Vamos ao bar?

– Com prazer!

– Disseram-me que é filho do farmacêutico. Pretende seguir a mesma carreira?

– Ainda não fiz o vestibular, por motivos alheios à minha vontade. Sabe como é, minha mãe faleceu, cuidei dos afazeres do meu pai na rocinha que temos, eles se amavam muito, substituí uma professora em licença maternidade, a guitarra, essas coisas... mas não pretendo demorar para o vestibular. A idade está chegando e o meu pai já se mostra um pouco preocupado com o meu futuro. Nos damos muito bem, sabe?... Posso até dizer que somos ótimos amigos, apesar dos comentários que fazem à minha volta.

– Você sabe do que falam a seu respeito?

– Um olhar furtivo, um sorriso maldoso, um cochicho irônico dizem bem mais do que pode parecer à primeira vista. É como desvendar os segredos incomensuráveis do Universo nos álbuns de figurinhas!...

– Diga-me algo sobre a Lenda?!...

– Registros de trezentos anos falam da existência de uma tribo neste local que vivia pacificamente da caça, pesca e agricultura, até que chegou uma leva de bandeirantes. Acolhidos com hospitalidade, fixaram acampamento para o plantio e suprimento de caça e pesca, e chegou o tempo da colheita. Pela brutalidade natural da época, havia rusgas e até escaramuças, decididas em pouco tempo pelos contendores ou quando mais graves pelos chefes. Um desentendimento porém foi muito mais longe, quando um dos bandeirantes, indivíduo violento, dito até pirata e mercenário de guerra tomou-se de amores pela filha do cacique que tinha sido prometida ao filho do pajé, aguardando apenas a lua apropriada para o enlace. Em dado momento, encontrou-a à margem do riacho onde nos conhecemos, e quis tomá-la à força, mas foi rechaçado pelo noivo que desconfiava das intenções dele. Enquanto lutavam, a moça fugiu e avisou ao pai que veio em defesa do futuro genro, encontrou o branco ao pé da castanheira e entraram em luta corporal. Os índios quando viram o cacique em luta, tomaram os tacapes e os expedicionários tomaram as espadas e bacamartes, havendo ali uma das maiores carnificinas da história. Restaram umas pessoas feridas de ambos os lados que muito tarde entenderam a brutalidade daquele massacre mútuo. Com emplastros de ervas, curaram as feridas e juraram uma convivência pacífica. Os que sabiam escrever alguma coisa, procuraram reproduzir os fatos como se fosse um diário de bordo na linguagem rústica que lhes era peculiar. Quase nada se perdeu. Nossos avós, em respeito à solidariedade pós batalha, decidiram criar a Comissão Piquenique que atua ano após ano, há mais de um século. Quanto ao cacique, os escritos revelam que seu último sono foi repousado na raiz da castanheira que lhe servira de travesseiro para o descanso, quando em vida. A moça sobreviveu ao massacre e casou-se depois de muita relutância com um jovem guerreiro que tomou-a sob sua guarda. Conta-se a boca miúda entre os poucos descendentes dessa raça de bravos que ela ao morrer repassou um enorme segredo que o cacique lhe confiara nos momentos finais, mas jamais alguém conseguiu arrancar uma só palavra de nenhum deles. Dizem até que tentaram embriagar um deles para obter a verdade, mas falou mais alto a lealdade da raça e o segredo permanece.

– Qual a sua opinião a respeito desse segredo?

– Os escritos nada dizem. Talvez haja algo que me tenha passado despercebido.

– Haverá alguma ligação desse segredo com o caso dos delegados?

– Tudo pode ser possível. Conta-se que o Euclides pouco antes de morrer andava pelas ruas com ar preocupado de quem sabia algum segredo...

– Quantas pessoas notaram essa preocupação?

– Bem! Creio que uma, apenas...

– Você?!...

– Sim! Eu! Nós tínhamos uma saudação de saravá, quando nos víamos, desde o dia que visitamos um candomblé em Salvador, para comer caruru. Naquele dia ele entrou na farmácia do meu pai procurando remédio para dor de cabeça. Desprezei a falta da saudação e brinquei, perguntando se era para dor de cabeça ou para nervoso. Ele não respondeu e saiu como se lembrasse de algo inadiável. Ainda não eram dez horas, quando foi dado o alarme da sua morte. Ninguém ouviu os tiros, em pleno centro da cidade.

– Você comentou com alguém essa observação?

– Apenas com meu pai, no outro dia, que aconselhou-me a silenciar para evitar envolvimentos de testemunho. Afinal, eu não sabia de nada, mesmo.

– Na sua opinião, o que o Euclides descobriu de tão grave, para ser morto?

– É difícil dizer. Muitas coisas podem acontecer numa cidade por menor que seja, desde uma insignificante leviandade conjugal ao mais intrincado dos casos de espionagem industrial ou internacional.

– Você considera a infidelidade conjugal insignificante?

– Pra isto, existe o divórcio!...

– O que você entende de espionagem industrial ou internacional?

– Apenas o que vejo nos filmes, leio nos livros e jornais e o noticiário da televisão. Transporto-me mentalmente ao cenário, não do vídeo, mas dos bastidores. Quando o fato é noticiado, muitas coisas antecederam a ele e é a elas que procuro dedicar minha atenção. Como, o quê, quem, onde, quando, por quê, etc., enveredando-me por este caminho até discernir o raciocínio ou perder-me no labirinto. Daí, dou com a varinha mágica e acordo para a realidade. Pena que com o Euclides e os outros a realidade tenha sido um bocado rude, mas creio sim, que pelos bastidores pode-se chegar ao palco, mas indo diretamente ao palco, jamais chegaremos aos bastidores, pois os seguranças estão lá para impedir.

– Nesta... viagem pelos bastidores, o que você tem encontrado sobre os delegados?

– O ser humano é muito prático, muito tecnocrata, e em tais circunstâncias age com presteza. Morto o Euclides, em menos de uma semana lá estava o Epaminondas pronto para o serviço. Comedido nas suas atitudes, iniciou a função instaurando o inquérito da morte do antecessor intimando as pessoas que encontraram o cadáver, pobres coitados que de nada sabiam. O Lourenço apresentou-se dizendo que trocara palavras de boa noite com ele às nove e quarenta e cinco, entrara em casa e antes das dez dava-se o alarma. Euclides baleado na praça da Bandeira, cujos projéteis poderiam ter vindo da igreja, da delegacia, da prefeitura, de qualquer lugar, conforme o ângulo da posição do atirador.

– Que quer dizer com ângulo?

– Se Lourenço entrou em casa e ele foi baleado na praça, quer dizer que o atirador o esperava de frente. Como eu não vi o laudo, não sei em que posição recebeu os tiros nem como as balas penetraram, nem tampouco para onde se dirigia. Se ele passou na casa do Lourenço, então vinha de casa ou imediações.

– Ele comentou com alguém a causa das suas preocupações?

– Ninguém, que eu saiba, ao menos de leve mencionou...

– O que aconteceu depois?

– Aparentemente, rotina normal. O Epaminondas chegava às oito e saia às doze, voltava às quatorze e saia às dezoito, mas solucionar o caso que era bom, nada. Supúnhamos que fosse pela inexperiência, quando inesperadamente, por volta dos dois meses, pediu afastamento em caráter irrevogável, tomando a comunidade de surpresa. Quando foi questionado, acusou excesso de trabalho e que estava cansado, precisando repousar. Aceitas as explicações, foi substituído pelo Baltazar que deu os mesmos passos, demorou o mesmo período e pediu afastamento, queixando-se do mesmo mal e a coisa virou brincadeira para o povo, depois que o Enoque fez as mesmas coisas, seguido do Godofredo e do Miravaldo. Todo mundo dizia que os pedidos de afastamento eram causados pela incapacidade de resolver a morte do Euclides. Com a saída do Miro, quando se preparavam para arranjar outro substituto, o Epaminondas não resistiu e se abriu com o Fulgêncio dizendo que recebera um telefonema mandando ficar calado, receber os proventos e fechar os olhos e os ouvidos. Indignado, o Fulgêncio abriu o berreiro, contando a todo mundo e se apresentando como voluntário para ser delegado. Resultado, Epaminondas morreu com a laranjada e Fulgêncio recebeu um telefonema controvertido durante a madrugada, saiu de casa e foi baleado à porta para ser encontrado de manhã pelo entregador de pães, ficando a cidade em pânico, sem saber quem dá os telefonemas, quem é o atirador misterioso, por que Epaminondas morreu e qual a causa de todo esse mistério, se não temos nada de especial a não ser o segredo que o cacique, dizem, deixou com a filha, antes de dar o último suspiro.

– Disseram no piquenique que gostariam de ver você na pele do novo delegado. O que decidiria no caso de ser convidado?

– Muita responsabilidade, cedo pra viajar, incapacidade pra dirigir um inquérito, honesto comigo mesmo e com o meu pai para me deixar influenciar pela chantagem e vontade de cumprir as tarefas a mim confiadas. Obrigado, Excelência, pelo convite, mas não aceito.

– Quando e como descobriu quem sou eu?

– Não foi difícil. Passei a observar as pessoas, tentando encontrar um gesto, uma palavra, um olhar que parecesse suspeito, depois que vi o Euclides daquela maneira. Hoje, só o senhor era estranho. As outras pessoas tinham as mesmas caras, os mesmos defeitos e virtudes, os mesmos sentimentos, as mesmas palavras sábias ou idiotas... apenas o senhor, como um elefante na panela de um formigueiro. Roupas comuns, bigodes, chapéu, barba por fazer... ilusão? Conversou com Malaquias e Dominício, pegou o prato e o refrigerante, aproximou-se do grupo que fofocava a vida dos outros: poltrões! circulou, jogou bola, cumprimentou um e outro, brincou com criança e pegou o violão, me desafiando para o som. Comparei a fisionomia com a dos jornais, televisão e cartazes... inconfundível!... Tenho orgulho de ter votado no senhor. Não poderia ter feito melhor escolha.

– Uma coisa, por favor, só por prudência. Vamos manter a minha identidade em sigilo. Você não aceita, tudo bem, mas peço pra indicar um delegado que seja de acordo com as pretensões do assassino, covarde, corrupto, bajulador e língua solta.

– Um só? Temos uma manada!...

– Não, obrigado! Pra mim, um já é demais. Com fome?

– Puxa! Quase me esqueço do jantar!...

– Hoje só falaremos de músicas. A propósito, eu disse que estou procurando terra pra comprar, mas a quantidade de fantasmas é muito grande e eu estava com medo.

– Sem problemas! Qualquer um pode parecer um governador ou um presidente, sem ser o próprio. Por falar nisso, como o senhor se parece com o nosso governador!...

– É!... Já me disseram isso outras vezes!...

* * * * *

– Quanto à espionagem, você acredita que aqui possa ter algo tão vultoso?

– Ao ponto de envolver dólares ou rublos? Os satélites americanos e russos sabem primeiro que nós o que se esconde debaixo das nossas próprias camas. Numa época em que a tecnologia da informática ou espacial falam mais alto, não se pode duvidar de nada!

– Acho que vale a pena pensar nisso com seriedade. Pensando melhor durante a noite, concluí que o melhor é você assumir e travestir-se do pusilânime que tacham. Um título a mais ou a menos não vai fazer diferença. O que vale na verdade são os objetivos, não importando os meios para atingi-los. Não responda agora. Dentro de dois dias, tempo de sobra pra decidir e fazer circular o boato de que você deve ser indicado, aguardo seu telefonema neste número. Basta dizer seu nome que estará sendo aguardado. Vou acertar a conta e dar um toque de leve no recepcionista, sugerindo a sua nomeação. Se ninguém quer o cargo, melhor, porque não tem concorrente.

– Há momentos que por mais que um homem tente se esquivar, sente que não pode mais ser omisso, ainda mais quando se defronta com homens de peso cuja preocupação maior é o bem estar comum, a justiça e a segurança da sociedade. Prometo, Excelência, que farei todo o possível pra não decepcionar a confiança que o senhor está depositando em mim. – E, enfático: Mesmo que tenha de me arrastar aos pés desses miseráveis, ou eu os entregarei de pés e mãos amarrados ou eles me pegarão primeiro, mas prometo que não vou fugir do compromisso assumido aqui, agora.

– Sei disso, rapaz! Sei disso! Lamento sinceramente ter de envolver você nessa sujeira. Seu lugar é no palco com uma guitarra, mas infelizmente não temos mais ninguém à altura que possa competir com a seriedade que o caso requer. Três assassinatos são muito para um assunto que não esconda algo de muito vultoso e terrível por trás.

CAPÍTULO CINCO

O Cargo e o PATO

Alberto levantou o fone do gancho com estranho pressentimento que se confirmou às primeiras palavras na voz fanhosa, como se fosse realmente um pato:

– Olá, otário! Quer dar uma viajada também ou vai fugir como coelho assustado?

– Quem é você? Quem está falando?

– Olha, vou lhe dar também sessenta dias, nem mais um segundo, pra enfiar o rabo no meio das pernas e sumir do mapa, ouviu?

– Vamos conversar! Tenho uma proposta a lhe fazer...

– Se no final de sessenta dias você não der nos calos, sua vida não vai valer nem um centavo furado!...

– Onde posso lhe encontrar pra conversarmos?

– E tem mais. Lembre-se de que na farmácia do seu pai tem muito álcool e aquilo pega fogo muito fácil!...

– Se você quiser conversar, prometo que vou fazer segredo e ninguém vai saber...

– E mais: Você só vai ficar porque é o otário que é e não vai querer bancar o herói. Vai brincar com sua guitarra e não se meta a besta comigo pra garantir mais uns dias de vida. – CLIC!... TUT! TUT! TUT!...

– Alo?!... Alo?!... Desligou!... Bem, esse cara ou fez pouco caso ou é surdo como uma porta, pois não deu o menor sinal de ter ouvido. Parece até que era tudo decorado!... Decorado?!... Alberto, meu filho, meus parabéns por ter aceitado este cargo!... Sem isto, você jamais teria descoberto que a mensagem foi gravada!...

Parou para refletir e apesar do impacto, rememorou as palavras que ouvira do pato. Revisou o telefonema, certo de que o objetivo, ao menos por enquanto, era de assustá-lo. Convenceu-se de que tudo o que tinha a fazer era pegar a guitarra, ir para a rua e continuar tocando músicas alegres com a turma que o abraçava anteriormente.

Preparou-se para sair, mas ouviu novamente a campainha do telefone e ficou de sobreaviso. Enquanto se encaminhava para o aparelho, refletia:

– Esses caras estão muito a fim do papai, aqui. Nunca fui tão cotado, nem mesmo quando estou com a guitarra.

– Delegacia de Polícia de Serra Dourada?!...

– Está ótimo nas novas funções! Tão bom quanto com a guitarra!...

Não era preciso melhor código de identificação. Imediatamente reconheceu a voz do outro lado da linha. Ficou um pouco sem saber qual o tratamento a dispensar e resolveu se manter calado. Como em socorro ao seu embaraço, a voz continuou, porém:

– Alguma novidade nas últimas horas?

– Oh, sim!... – Pensou um pouco e completou: Minha guitarra apresenta certa dissonância e acho que preciso ir à capital para ver o que está acontecendo com ela. Aqui não temos pessoas especializadas.

– Quando chegar aí, quero que ela esteja em forma pra continuarmos as tocatas. E aí, conseguiu informação sobre a terra? Não quero coisa cara pois a grana é curta!

– Não! Ainda não apareceu nada, mas vou continuar procurando.

– Tudo bem! Vou desligar porque um telefonema hoje está pelos olhos da cara.

– OK! Qualquer coisa, aviso.

* * * * *

– Bom dia, Excelência!

– Oh! Jovem delegado, como está nas novas atribuições? Se saindo bem?

– Razoavelmente, pouco mais ou menos que um peixe fora d’água!...

– Com um pouco de treino, os peixes aprendem respirar!...

– Se não forem devorados antes ou, puf! – Fez um gesto, espalmando as mãos.

– Conhece a história do caboclo que decidiu ensinar o cavalo viver sem comer?

– Não, o que aconteceu?

– Pois é! O bicho aguentou firme trinta dias no mourão e morreu depois. Daí, o dono disse: Coitadinho, já estava acostumando!... – Riram e mudaram de assunto.

– Desculpe se inventei um defeito para a guitarra de último momento, mas não podia correr o risco de denunciá-lo no início das investigações.

– Havia alguém com você?

– Pior! O pato não se fez esperar. Logo que assumi, o telefone tocou e ele disse que eu me mantivesse afastado, ficasse de boca fechada por sessenta dias e depois pedisse as contas. Que a farmácia do meu pai tem muitos litros de álcool que inflama com facilidade e que eu só fico porque sou otário e o melhor que faço é ir tocar guitarra. Como eu não sabia se o telefone estava grampeado, preferi não correr o risco.

– Quando foi que ele ligou?

– Dez minutos antes do senhor.

– Éééééé!... Temos de traçar um plano com urgência. Não sou homem de desprezar qualquer sugestão e logo que cheguei, pedi ao Centro de Observações Aeroespaciais para examinarem se consta alguma reserva mineral na região que obedece às coordenadas geográficas do seu município. Se forem confirmadas as suspeitas, vamos levar o caso à Polícia Federal porque na certa você acertou ao falar de espionagem internacional. Só resta descobrir quem é ou quem são os assassinos. Tenha certeza de que não se trata de gentinha. Comece a observar os tubarões, pois as sardinhas estão escondidas nas locas.

– Mineração?! – Quase gritou Alberto, estalando os dedos. – Gentinha?! Tubarão?! Dinheiro?! Terraplanagem?! Canteiro de Obras?! é isso?!...

– Você é um gênio, meu rapaz. Não entendi aonde quer chegar, mas sei que este é o caminho certo. Agora troque em miúdos pra que eu possa ficar sabendo.

– Farei isso! – Respondeu, com o rosto afogueado. – Mas antes, por favor, ligue para a perícia. Preciso analisar o caso dos ângulos. Estou com uns pressentimentos e algo me diz que ao descobrirmos o ângulo de penetração das balas, teremos o assassino ou assassinos nas palmas das mãos.

– Pessoalmente não posso fazer isso, pra não levantar suspeitas, mas ao sair daqui pode ir ao Departamento de Polícia, que estarão à sua espera. Mas explique o que significa isso de terraplanagem?!...

– Vossa Excelência deve ter conhecimento que estão construindo uma barragem na nossa cidade para o abastecimento de água e as máquinas trabalham há quase um ano. Só não entendo como não deram com nada ainda, se é que existe algum minério por lá!...

– É válido! Vamos guardar para a primeira oportunidade. Agora vamos ao caso da balística. – Chamou a secretária e deu instruções. Alberto levantou-se e foi recomendado:

– Antes de viajar, volte pra fazer um relatório. Quero saber de todos os passos desta investigação. Não se esqueça da guitarra. Um pequeno erro e tudo irá por água abaixo.

– Por água abaixo?!... Era exatamente nisso que eu estava pensando!

– O que há, rapaz? Será que temos as respostas e continuamos com as perguntas?...

– Não é bem isso, Excelência! É que apesar do contato diário que tenho em Serra Dourada, jamais me preocupei em saber isto ou aquilo. Por exemplo, as minhas suspeitas convergem para a pessoa do prefeito. – O governador fez um gesto de incredulidade e ele continuou. – Antes de ser eleito, o Euclides, apesar de ser delegado, era como um cabo eleitoral. Sabe como é, nas cidades pequenas todo mundo é um pouco de tudo. Sua participação era publicamente pessoal, quer dizer, todos sabíamos que ele queria o melhor para Serra Dourada e trabalhava incansavelmente para a vitória do Sr. Afonso. Não creio em absoluto que ele não tenha compartilhado o segredo com o então candidato. Acho que pela amizade dos dois, a confidência deve ter sido feita.

– Infelizmente não fez! Lembro-me, na semana passada, quando ele esteve aqui, falou que o delegado tinha telefonado dizendo ter descoberto algo quiçá monstruoso, mas não quis dizer pelo telefone e não teve tempo de falar pessoalmente.

– Mais um motivo para suspeitas. Não importa o quê, mas ele sabia que o Euclides descobrira algo que de tão importante, no mesmo dia veio a lhe custar a vida. De uma forma ou de outra, o segredo fora revelado e o sigilo tinha de continuar. O segundo aspecto, que é também o terceiro, o nosso atual prefeito andava muito na prefeitura porque era o candidato apoiado pelo antecessor. O Euclides foi assassinado na praça da prefeitura, depois de ter passado pela casa do Lourenço, que fica entre sua casa e a praça. Quer dizer que ele deveria estar indo para a prefeitura contar a descoberta, mas não chegou a fazer porque não interessava a quem devia ouvir, se o prefeito em exercício também devia estar lá. O quarto aspecto é que o Fulgêncio também morava na rua que entra na praça, logo nas últimas casas. Pode-se ter um ótimo ângulo de tiro da prefeitura para a casa dele.

– Espera aí, no dia em que estive na sua cidade, ouvi as mais diversas opiniões a respeito da laranjada do Epaminondas, mas nenhuma delas coincidiu com a do prefeito, aqui neste gabinete, dizendo que injetaram veneno na laranja com uma seringa de injeção.

– Meu Deus! – Exclamou, abobalhadamente – em lugares pequenos as notícias correm como o pensamento e posso afirmar categoricamente que ninguém, mas ninguém mesmo, levantou sequer a mínima hipótese a esse respeito. Todas as pessoas estão se perguntando se foi veneno na água ou no açúcar ou se foi coração, mas veneno na própria laranja? Meu Deus! Juro, Excelência, que ninguém tocou jamais nesse assunto. Não sou de tirar conclusões precipitadas, mas esta declaração vem apenas reforçar as suspeitas de que ele é o assassino do pobre do Euclides. Só não consigo entender por que uma pessoa mataria outra que a está carregando nas costas, como o cavalo carrega o cavaleiro. Quem deu a vitória ao Sr. Afonso foi o Euclides. Ele não comia e nem dormia direito, só pensando na vitória do seu candidato. Ou a coisa é tão monstruosa a esse ponto, ou então estamos caminhando para o maior de todos os erros judiciários que jamais atravessou este país. Tenho motivos de sobra para pensar dessa maneira. – Concluiu, misterioso.

– Belíssima dedução, jovem! Vamos investigar, vamos apurar todos os fatos, todas as suspeitas pra não cometermos uma injustiça. Além disso, se fizermos uma acusação frontal, não se esqueça que ele é o prefeito e se não for o assassino, sua vida e do seu pai correm muito perigo. O verdadeiro assassino não vacilará em matá-los. Basta lembrar que nos próximos dois meses suas atribuições serão exclusivamente as de tocar guitarra.

– Taí, eu já nem lembrava mais disso! Agora, é tarde! Acho mesmo é que vou sair da linha de fogo das janelas da prefeitura e terei ao menos alguns minutos a mais de vida.

Uma ruga marcou a testa do governador, que guardou as conclusões, e comentou:

– Essa juventude!... – E sacudiu a cabeça paternalmente, chamando a secretária.

CAPÍTULO SEIS

Conjecturas, Confidências e Arrumações

Alberto retornou da capital e reuniu a rapaziada do som para mostrar as reformas da guitarra. O instrumento tinha ficado novinho em folha. Curioso, o Marquinhos perguntou o que ele pretendia fazer no cargo de delegado, e ele respondeu:

– Sabe que ainda não sei? Não pedi pra ser delegado e me colocaram ali porque quiseram. Se aparecer alguma bronca e eu puder resolver, eu resolvo, se não puder, quem pariu Mateus que embalance. Eu é que não vou arriscar minha cabeça por um povo que não tem coragem para nada. Não sei quem foi o engraçadinho que indicou o meu nome, mas se eu descobrir, vou perguntar por que não indicou o nome da mãe dele pra a vaga.

– E sobre a morte do Euclides, o que vai fazer? Vocês eram amigos. Vai deixar por isto mesmo ou vai tomar providências?

– Se os outros nada fizeram, eu é que não vou mexer em casa de marimbondo, pode dizer a todo mundo. Se tiver outro pra a vaga, que se candidate num dia pra tomar posse no outro, pois já vou estar me mandando, que eu não sou otário.

– E o telefonema do pato, você já recebeu?

– Que pato, que nada, rapaz, até agora, nem sinal de pato nem nada. Acho até que foi invenção do Epaminondas para ser delegado.

– Mas ele morreu!?...

– Tomando suco, na sua própria casa! O que isso prova?

– Mas o Fulgêncio, não morreu também?...

– Olha só, o Epaminondas abriu o bico e morreu, envenenado ou não, ninguém sabe. O Fulgêncio, usando a história do Epaminondas, quis dar uma de machão e assanhou a casa de marimbondos. Resultado, bim! bim! chumbo na asa e adeus. Vou lá me meter com o que não conheço? – E, feriu com força as cordas da guitarra, convidando ao som e dando o assunto por encerrado.

Mais tarde, em casa, trocou impressões com Agnelo:

– Papai, o senhor nunca ouviu falar de nada que justificasse essas mortes?

– Não, filho! Nestes anos que tenho vivido em Serra Dourada, nunca ouvi nenhum comentário que fugisse à rotina do cotidiano. É verdade que temos tido atos de violência, verdadeiros vandalismos, como o Zé Marques e o Amâncio que mataram o Nenê Peão e o Dominguinhos e falsificaram os documentos pra tomar as fazendas, mataram o Glostora, bêbado, pra tomar aquela micharia de dinheiro que ele ganhou deles no jogo, tivemos assassinatos por questões políticas, ciúme de mulher e coisas semelhantes, mas um caso como este de morrerem três delegados e quatro se afastarem, sem motivo aparente, não! Este caso por aqui é único e inédito. Se você quer levar adiante, meu filho, acho que vai ter muito trabalho pra descobrir. O melhor mesmo seria desistir enquanto é tempo, pois não se sabe o que há por baixo desse angu.

– O senhor não está falando sério, não é, papai? Logo o senhor?!...

– É, filho, alguém tem de assumir, não é? Vá em frente, meu filho, e boa sorte!...

– Só uma coisa, papai, por favor, não conte a ninguém nada, mas nada mesmo, das nossas conversas, OK? Preciso ter um confidente da mais absoluta confiança e não há nesta cidade ninguém mais indicado do que o meu próprio pai. Quando falei a respeito da estranheza do Euclides, o senhor me recomendou sigilo pra evitar problemas, agora sou eu quem pede pra evitar problemas incalculavelmente maiores do que os daquela época. Pode crer, meu pai, que não é o cargo de delegado que está me subindo à cabeça. Eu daria, neste momento, mil agradecimentos a quem me livrasse desta responsabilidade que caminha a passos largos para a catástrofe e tenho de suportá-la como homem, mas sozinho não vou conseguir levar adiante. Preciso de um confidente que saiba guardar segredos, de um bom ouvinte que possa colher o máximo de informações através da opinião pública e, acima de tudo, de um conselheiro que me dê diretrizes e repito, ninguém melhor do que o meu pai pra assumir tal posição, estou certo?

– Filho, você já pensou bem no que está me pedindo?

– Sim, papai! Pensei tanto que o senhor nem imagina o quanto, mas só vou poder adiantar qualquer coisa quando tiver certeza de que vou poder confiar no sigilo do senhor. Não é desconfiança da integridade moral do homem, que sei muito bem ser bem maior do que a minha, mas é a implicação que o caso exige. Em poucas palavras, digamos que seja o resultado de algumas investigações que já realizei e são tão comprometedoras que não podem ser ditas nem ao padre em confissão, entendeu, papai? – Exagerou o rapaz.

– Sim, filho! Meu primeiro impulso é arrancar você disso debaixo de palmadas, mas lembro de que meu filho já é um homem de vinte e dois anos e faz parte da sociedade de Serra Dourada. Desculpe, filho, se não o vi crescer, mas na verdade o que mais gostaria de ver neste momento era você em fraldinhas com uma mamadeira na boca e um chocalho ao invés de um revólver na mão, prestes a matar ou morrer. Desculpe mais uma vez, mas preciso consultar meu travesseiro esta noite pra tomar a decisão mais acertada, se é que vou conseguir. Sei, na verdade, que a única coisa que vou conseguir é ver a noite passar sem pregar os olhos, mas seja o que Deus quiser!...

– Obrigado, papai! Eu sabia que podia contar com o senhor. Sozinho, sei que não conseguiria dar mais que dois passos sem cair na rede desse maluco, pois ele já provou que é bastante astuto. Em um ano já matou três delegados, escorraçou quatro e nem ao menos sabemos o motivo que o leva a agir dessa maneira. Se ao menos ele se traísse!...

– Uma coisa só, filho, você já recebeu o telefonema do tal pato?

– O senhor faz mesmo questão de discutir isso hoje, ou quer deixar pra amanhã, quando já tivermos colocado os nossos pensamentos em ordem? Desculpe, papai, mas acho que falar disso hoje tem uma certa dose de precipitação!...

– Como quiser, filho. Eu não sei o que está ocorrendo e se você faz tanto mistério, acho que devo me acautelar, fechar o bico e aguardar o que vem dessa cabecinha-de-vento que nunca toma juízo.

– Papai, você não existe!...

– Então, pára de falar sozinho, se eu não existo!...

– Se o senhor não existe, de onde eu vim, então?...

– Boa noite, filho!... – Disse Agnelo, beijando a fronte do rapaz, que permaneceu sentado, tentando coordenar as idéias para o dia seguinte.

– Boa noite, papai. Bom sono!...

* * * * *

Enquanto Alberto conversava com o pai, Bonifácio distribuía os serviços para o dia seguinte, no acampamento da ENGETEC:

– Recebi correspondência do Rio, mandando agilizar o serviço e vocês sabem como é o chefe, não admite falhas e é intransigente quando se trata de cumprir contratos.

– E como vai ficar o caso da castanheira, Boni?

– Conversei com ele, ou melhor, ele telefonou na semana passada, perguntando como estão as coisas e disse para a gente não se meter pois tem envolvimento com o pessoal do IBAMA e da Defesa Ecológica, e coisa e tal. Eu por mim, vou aguardar as ordens do alto. Não quero saber de perder um emprego que me dá bons rendimentos com todos estes anos de serviço, além da família que formamos!...

– O aterro está quase terminado, faltando só a parte do concreto. As máquinas vão permanecer aqui ou vão ser mandadas de volta para o Rio?

– Vou ligar pro Dr. Carlos e ver o que decidiram. Ele disse pra a gente ficar quieto quanto ao caso da castanheira, mas agora, ou eles decidem se fazem a irrigação ou não. Do contrário, a gente vai ficar de braços cruzados, vendo o tempo passar, o que não é do meu feitio. Peão desocupado e faturando só arranja encrenca, tomando pinga.

– Ora, a cidade tem delegado novo e é bom ir treinando pra enfrentar o matador, se é que ele tem coragem e não vai fugir com o rabo entre as pernas, feito os outros.

– Eu contei ao chefe – disse Boni – porque se não contasse, quando estourasse a bronca, ele ia montar nas minhas costas. Ele não deu opinião e só fez recomendar a gente ficar de fora com o problema da castanheira que não é para ser derrubada.

– Como foi que começou esse caso, Boni, você que está assim com os homens?

– Assim com os homens, não sei, mas começou quando o prefeito tomou posse e lançou o Projeto, pra aproveitar a água do Córrego Dourado e fazer uma barragem pra o abastecimento da cidade e irrigar uma horta comunitária e um pomar, pra acabar com a fome. Diz que vai fazer um criatório de cabras pra dar leite às criancinhas desnutridas. Um problema, é que pra fazer isso tem de canalizar a água por onde está a castanheira. E é aí que ele começa. No passado, alguém foi ao Ministério da Agricultura e requereu o subsolo da área. Daí, num raio de cem metros pra qualquer lado e vinte pra baixo da árvore, ninguém pode tocar. Estou contando em caráter profissional e particular. O pessoal da cidade não pode saber. Pensem do que serão capazes? Vai ser a maior polêmica, uns contra derrubar a castanheira e outros a favor da horta e do pomar. A Prefeitura contratou a ENGETEC pra os dois serviços, mas só vamos iniciar o segundo depois que o Dr. Carlos autorizar. Ele disse que a Assessoria Jurídica está cuidando do caso e tem de esperar o resultado.

– E como foi que descobriram, se o pessoal da cidade não tem conhecimento?

– Simples. O homem está com oitenta anos e bem lúcido. Tem acesso na Prefeitura e na Câmara e quando soube do projeto, bastou um ofício e pronto, a ENGETEC recebeu a notificação de não dar início às obras, sob pena de ter a licença cassada. Eu sei é que o Dr. Carlos está ficando careca e de cabelos brancos de tanta preocupação, quer dizer, medo de alguém meter a motoserra na árvore e a culpa ficar nas nossas costas.

– Que bronca, né, compadre?...

– É! Agora vamos ao que interessa. Roberto cuida do aterro. Use as máquinas que estiverem disponíveis que é pra terminar esta semana. Paulinho cuida da tubulação. Confira os tubos e as conexões. Rivaldo, o almoxarifado está em ordem?

– Claro! Antes de me arranjarem o fichário KARDEX aquilo era um inferno, mas agora posso achar uma agulha na maior escuridão.

– Qualquer dia desses vou colocar um D8 lá dentro, para ver se você acha.

– Valendo uma dúzia de geladinhas?

– E a sorte?!... Carvalho, verifique o cimento e a ferragem, quero tudo na contagem certa, pra dar a posição aos homens lá de cima.

– Boni, que diabo de caixão de ferro foi aquele que mandaram assentar naquele buraco que cavamos no leito do rio? É segredo, ou você pode nos explicar?

– Segundo os entendidos, é pra filtrar a água e não deixar passar sujeira. Trocando em miúdos, ela vai funcionar como uma espécie de tanque subterrâneo. Em épocas normais, as válvulas ficarão abertas ou fechadas, conforme a conveniência, porém, em tempos de chuva, aquele caixão é dotado de vários compartimentos semelhantes a uma casa, só que o morador, ou melhor, a moradora será a água. Quando estiver chovendo ela entrará em um dos compartimentos que repassará a outro através de filtros especiais, os quais terão manutenção diária pra retirar o barro retido, e assim, de um compartimento a outro, quando a água subir pra a caixa, estará tão limpa que ninguém perceberá se é tempo de sol ou de chuva, além do combate à verminose.

– E tudo isso foi idéia do prefeito ou tem mais alguém por trás disso? Porque, se forem só dele essas idéias, era pra ele estar na Presidência da República, e não numa prefeiturazinha do interior, como esta!...

– Dizem que ele está muito bem assessorado. Parece que contratou gente grande de fora. Veja há quanto tempo a ENGETEC está cuidando disso. O Secretário de Obras é um engenheiro da mais alta capacidade. Já viram como ele chega aqui? Examina detalhe por detalhe os serviços sem deixar escapar um sequer. O homem parece ter olhos de raios-X. É boca fechada e olhos abertos.

– E você já foi lá dentro depois de pronta?

– De vez em quando ele me chama pra dar uma olhada. Aparentemente, não tem nada de especial. Muitas válvulas, muitas comportas, muita tubulação, etc. A coisa é tão perfeita que lá debaixo d’água a gente fica mais seca do que em cima. Aqui, se chover, a gente se molha, mas lá embaixo a gente nem percebe que está chovendo.

– E como é que a gente entra sem se molhar?

– É por aquela casinha na beira do rio. A gente desce por uma escadinha e já está lá embaixo como se fosse num submarino.

– Será que eu podia dar uma espiadinha, também?

– Se você quiser, é só pedir, que talvez ele deixe!...

– Não! Deixa pra lá!... Acabo de perder a vontade!...

* * * * *

Alberto não teve necessidade do despertador para acordar. Encontrou Agnelo com o jornal e uma xícara de chá de canela, na poltrona favorita, hábito que cultivava desde o falecimento da esposa, a cuja memória guardava na recordação, o que acentuava o amor do filho e os fazia mais amigos.

– Bom dia, papai, dormiu bem?

– Oh, filho, bom dia, dormi otimamente bem. Até com os anjos sonhei!

– Que felizardo!... Papai, vire o jornal, a menos que o senhor esteja relendo, pois está de cabeça para baixo.

– Ah, filho, é uma pintura que não entendi e virei, pra ver se entendia!...

– Sei! Sei! Papai, quantas horas o senhor dormiu durante a noite?

– Bem, filho, você sabe que o que tenho de discreto, tenho de curioso, não é? Então não poderia ter dormido tão bem!...

– Não, papai, o senhor não é curioso! O senhor está é muito preocupado com a minha situação. OK, papai, vou me arrumar e num minuto voltarei pra a gente conversar. Tenho noventa minutos inteirnhos pro senhor. Não vou me dar ao luxo de chegar atrasado, pra não dar o que pensar a certas pessoas por aí!...

* * * * *

Quinze minutos, e estava narrando desde a preocupação do Euclides, a declaração do Lourenço, o encontro com o governador, a nomeação, o telefonema do pato, a viagem à capital, o laudo pericial, as suspeitas que tinha do prefeito, a desconfiança de um caso de espionagem ou de uma jazida em Serra Dourada, deixando para falar da ameaça no final, propositadamente, para acentuar a cautela que deveriam ter em fazer segredo e não esquecer que a qualquer instante a farmácia poderia ir pelos ares ou coisa pior.

Depois de ouvir a narrativa atentamente, Agnelo fitou longamente o filho e disse:

– Me sinto bem melhor, meu filho! Eu sabia que você era um homem, em matéria de caráter, mas achava que fosse um cabeça oca que só queria tocar guitarra e brincar. Mas você há de convir que preciso digerir essa história que acaba de me empurrar goela abaixo, não é? Então, que tal falarmos ao meio-dia, quando eu tiver formado uma opinião? Quanto ao sigilo, fique tranqüilo. A farmácia, o seguro dá outra, mas o filho, quem me deu não vai mais poder dar e tenho de zelar por ele acima de qualquer coisa. – Concluiu, com uma lágrima teimosa a bailar no olho, que terminou por escorrer pela face e foi enxugada ternamente pelo rapaz com o lenço, beijou o local e disse, com voz entrecortada:

– Obrigado, papai! – E saiu para a delegacia, respirando fundo.

CAPÍTULO SETE

Em Caráter de Urgência

Com o relatório de Boni na mão, Carlos Morales chamou a secretária, mandou fazer ligação para a Assessoria Jurídica e foi direto ao assunto:

– Alo?! Sérgio?!... É, companheiro, Carlos Morales! Escuta, amigo, nosso problema se agravou. Acabo de receber relatório de Serra Dourada informando que os trabalhos se encontram em fase de acabamento no aterro, faltando o concreto. Sabe o que significa?... Pois é, ou deixamos o maquinário parado ou recolhemos pra mandar de volta, quando vocês derrubarem o tombamento. O que diz?... Não, eu não vou autorizar uma invasão, pode ficar tranqüilo. Isso é briga pra cem anos. Se a prefeitura não quer assumir, imagine eu, que sou apenas empreiteiro... Pois é, amigo, no último caso, vou recolher o maquinário e acabar com essa fofoca de uma vez por todas. Antes, porém, vou ligar pra o prefeito e ver o que ele tem pra dizer. Até mais. – Desligou e chamou a secretária.

– Dona Marilza, por favor, ache o telefone de Serra Dourada e ligue pra o prefeito.

Feita a ligação, iniciam a conversa:

– Alo?! Sr. Prefeito?!... É Carlos Morales, da ENGETEC, como está o senhor?

– Dr. Carlos! É um prazer muito grande falar com o senhor depois de tanto tempo. As obras que o seu pessoal está fazendo, posso garantir que é da melhor qualidade. O Sr. Bonifácio vai levar uma menção honrosa assinada diretamente pelo prefeito, com a sua...

– Muito obrigado, Sr. Prefeito! Fico satisfeito em saber que a minha equipe tem se mostrado digna de elogios. É o fruto dos quinze anos de trabalho árduo pra conquistar esta posição. A propósito, acabo de receber um relatório do Sr. Bonifácio informando que as obras de aterro da barragem do Córrego do Ouro estão no final, prestes a entrar na fase do concreto. Acontece que os nossos advogados não conseguiram derrubar o tombamento e nem vão conseguir porque a castanheira, está provado, é uma árvore secular e faz parte da história, inclusive de caráter épico. O que o senhor tem a dizer?

– Sinto muito, Dr. Carlos, não poder dar informações detalhadas porque o caso está com o Dr. Charles Burnier que é o Secretário de Obras, mas vou conversar seriamente com ele e logo que tivermos uma posição definida, entraremos em contato com o Senhor.

– Creio que não me fiz entender direito. Estou dizendo que tão logo o aterro esteja pronto, as máquinas serão recolhidas pois não podemos esperar por uma solução que falta apenas a comprovação de que não haverá recurso capaz de reverter o processo.

Grossas gotas de suor rolaram pela face do executivo que retirou o lenço, e disse:

– Fique tranqüilo, Dr. Carlos. Hoje ou amanhã, teremos uma posição para o senhor!

– Assim espero, Sr. Prefeito, assim espero!... – E, despedindo-se, desligou.

Livre do telefone, o chefe do executivo chamou a secretária e ordenou:

– Dona Lúcia, por favor, marque uma reunião com todos os secretários para daqui a uma hora, impreterivelmente!

– Sim, Sr. Prefeito, com licença!... – E a moça saiu estranhando nunca ter visto o prefeito tão nervoso e agitado antes.

* * * * *

Pigarreou, mais para acalmar-se do que para chamar a atenção de ninguém, pois estavam muito curiosos com a urgência da convocação, e começou:

– Senhores, esta reunião é para colher opiniões ou sugestões dos senhores. Desde a nossa campanha, não podendo esquecer o nosso querido Euclides que, como poderoso mártir, ergueu o mais alto que pôde a nossa bandeira, conquistando voto após voto com a promessa de que teríamos uma horta comunitária, um pomar e um curral de cabras para fornecer alimento para a população carente e leite para as nossas criancinhas desnutridas. Para coroar o nosso projeto, no entanto, seria necessária a canalização do Córrego do Ouro para as terras que ficam ao lado do Sítio do Piquenique, que é o palco onde há trezentos anos se desenrolou a tragédia revivida ano após ano, mês após mês, dia após dia, na memória de cada um dos nossos concidadãos. Um problema, porém, veio de encontro aos nossos mais caros anseios no sentido de realizar o nosso projeto. – Fez uma pausa, tomou um gole de água e continuou – Há vários anos, sabedor que era da Lenda, com o intuito de preservar as nossas tradições, um dos nossos mais queridos conterrâneos – fez outra pausa, olhou as fisionomias como a colher impressões e prosseguiu – o Dr. Lourinaldo Marques de Abreu, digníssimo engenheiro agrônomo, registrou, ainda no Rio de Janeiro, quando Capital Federal, a castanheira no Ministério da Agricultura, requerendo subsolo da área num raio de cem metros em qualquer direção e vinte metros para baixo, deixando o caso ou em segredo ou rolar no esquecimento. Desconhecedores do fato, contratamos a ENGETEC para represar o Córrego do Ouro, abastecer a cidade, irrigar a horta e o pomar e desenvolver a pesca, quando ele, supondo que pretendíamos depredar a área ou mesmo por zelo das mais caras tradições, decidiu comunicar ao Ministério, pois a canalização deveria ser por onde se encontra a árvore, o qual não se fez esperar no desempenho da defesa ecológica, e notificou a ENGETEC que ficaria sujeita a duras sanções no caso de insistir nas escavações. Em contato conosco, a empresa informou o ocorrido e solicitamos que fossem tomadas as providências cabíveis, transferindo-lhes plenos poderes na solução do caso. Depois de muita análise, concluíram não ser possível canalizar a água por outro local, a menos que tenhamos de onerar os cofres com monumentais obras de concreto para suavizar as curvas de nível do terreno ou a água se perderia morro abaixo sem atingir os objetivos previstos. A empresa decidiu por impetrar um Mandado de Segurança com o propósito de invalidar a ação do Dr. Lourinaldo enquanto aguardávamos o aterro. Hoje de manhã recebi uma ligação do Dr. Carlos Morales, proprietário da ENGETEC, informando que o aterro está em fase final e deseja saber em caráter de urgência o que fazer com as máquinas. Recolher aos galpões, investir nas monumentais obras de concreto ou canalizar por outro ponto, fazendo um curso bem mais longo, detalhes que o Dr. Charles Burnier, caso queira, poderá explanar. Se necessitar de alguns dados poderemos marcar o reinício para daqui a meia ou uma hora. Dr. Charles, por favor!...

O Dr. Charles pediu alguns instantes e a reunião se desfez.

* * * * *

Alguns minutos depois o prefeito reiniciou os trabalhos e imediatamente passou a palavra ao Dr. Charles que sem rodeios foi direto ao assunto.

– Senhores, sem mais delongas, devo informar que o relato do Sr. Prefeito embora sucinto carece de poucos esclarecimentos, visto que ele se encontra perfeitamente a par das obras, restando apenas detalhes técnicos que pela sua própria complexidade não lhe seria possível reter de memória, pois se trata de obra da mais alta envergadura e exige complicadíssimos recursos da Engenharia. Temos notado em algumas cidades que via de regra quando as chuvas são muito freqüentes, a água chega às casas com uma coloração leitosa, demonstrando que o processo de filtração não passa de um deficiente critério de tratamento, sendo a nossa maior preocupação e instalamos no leito do córrego uma caixa feita totalmente de chapas de ferro de meia polegada que exigiu muitos dias de duro serviço, aqui relatado para justificar o altíssimo nível do projeto. Desnecessário dizer do zelo que tivemos com a imersão em produtos anti-corrosivos, relatamos sem exagero os detalhes internos da caixa que é uma verdadeira casa debaixo do rio, dotada de válvulas, comportas, filtros, entradas para escafandristas e outras adaptações. Em tempo normal, elas podem ser abertas sem problemas para a cloração da água, mas em tempo chuvoso, a água entra no primeiro salão e passa para o segundo por um filtro que côa a lama mas a cor permanece, de forma que ao passar de um salão para outro vai clareando até tornar-se natural, eliminando os germes e bactérias. A barragem é necessária para elevar o nível da água no local da caixa, desenvolver a piscicultura e aumentar o volume para canalizar na direção da horta e do pomar. Os problemas podem ser considerados resolvidos, restando a tubulação, porque o valado deverá passar exatamente por onde está a castanheira. Mesmo que tenhamos o bom senso de contornar a árvore, o raio é de cem metros e seria o mesmo que passar por onde ela se encontra. Tangenciar os cem metros, seria como construir um leito artificial. O declive não suportaria qualquer enchente e transbordaria inundando tudo ao redor. Conforme foi dito pelo Sr. Prefeito, temos apenas três alternativas, que são, parar as máquinas até a solução judicial o que não é do agrado da ENGETEC, retornar para o Rio de Janeiro até a decisão final ou investir no concreto, onerando excessivamente os cofres. Eis aí, senhores, em linhas gerais, o caso em questão.

O prefeito retomou a palavra e perguntou:

– Algum dos senhores gostaria de fazer uso da palavra?

– Uma pequena dúvida em relação ao problema da caixa. – Disse Agnelo, que era o tesoureiro – Qual é a utilidade do escafandro, se é que entendi bem?

– Muito bem entendido! – Disse prontamente o Dr. Charles. – No tempo seco não será necessário, mas para o tempo chuvoso os trabalhos serão excessivos na limpeza dos filtros que estarão totalmente impregnados de lama. Mais alguma dúvida?

– Não, Senhor, muito obrigado!

– E se canalizamos a água por baixo do solo, dentro do raio dos cem metros? Área ecológica exige o verde e não importam as marcas do progresso dentro dela!...

– Muito bem pensado! – Disse o prefeito, entusiasmado.

– Com um pequeno problema, no caso de ampliar a rede ou em épocas de reparos teremos de cavar o gramado, o que não será muito agradável.

– A ampliação não será necessária, desde que coloquemos uma tubulação condigna!

– Acho que esta solução nos trará grandes complicações com a opinião pública, pois área tombada torna-se invulnerável.

– Doutor Charles, qual é mesmo a sua posição?

– Anular o tombamento, preservando a árvore! – Respondeu, convicto.

– E se tentássemos inicialmente a concessão para passar por baixo, não seria um bom começo? Não seria necessário destruir a árvore, se é este o problema em questão!...

– Sim! Seria uma vitória e creio que este seja o melhor caminho.

O prefeito retomou a palavra e perguntou:

– Mais alguma sugestão, senhores?

Os homens se consultaram e decidiram que a solução seria tentar a tubulação por baixo do gramado. O prefeito dissolveu a reunião e correu ao telefone.

– Alo, Dr. Carlos?!... Sim, é o prefeito de Serra Dourada!... Creio que chegamos a uma solução parcial. Seria possível canalizar a água por baixo da área tombada?... Sei!... Sei!... Muito bem, Dr. Carlos, enquanto o Sr. faz contatos com Brasília, vamos tentar argumentar com o Dr. Lourinaldo para ver se ele está disposto a abrir mão!... Está bem! Até breve! Passar bem, Doutor!

Desligou o telefone e disse à secretária:

– Dona Lúcia, temos de redigir um documento!...

CAPÍTULO OITO

Escafandro no Rio e Microfone Secreto

Alberto chegou à casa ao meio-dia e encontrou o pai esperando para o almoço.

– Olá, papai, como foi a manhã? Calminha ou agitada?

– Oi, filho, mais ou menos calma, mais ou menos agitada, pra ter perfeita dosagem no medicamento!

– Falou, Doutor! Se não fosse farmacêutico, seria, inevitavelmente, farmacêutico ou farmacêutico. Acertei na receita?

– Farmacêutico, hein? Quer trocar de lugar? Eu delegado e você tesoureiro, topa?

– Quer papinho com o Pato, não é? Não, muito obrigado! Deixa eu com o meu patinho feio, mesmo, pelo menos nos próximos sessenta dias. E, aí, alguma novidade?

– Tudo normal! Uma reunião com o prefeito. Queria sugestões sobre a canalização do Córrego do Ouro pra irrigar a horta e o pomar e o Pernambuco sugeriu a passagem da tubulação por baixo do gramado do Parque. O prefeito ligou pra o Rio de Janeiro e o dono da ENGETEC ficou de ligar pra Brasília e ver o que podia conseguir.

– Peraí, papai! O que significa isso de tubulação por baixo do gramado? Não era público e notório que por ali deveria passar um canal de irrigação? Por que isso agora?

– Desculpe, filho, eu devia ter começado do princípio! – Justificou-se Agnelo, meio embaraçado. – Esqueci que você não estava lá e não tem obrigação de saber o que houve. Do princípio, então, na época que o Afonso era candidato e o Euclides delegado, um dos principais objetivos, se não o principal, era a construção da barragem para represar o Córrego do Ouro, fornecer água pra a cidade e canalizar pra irrigar a área vizinha ao Parque, projetada pra a criação de uma horta comunitária e um pomar. Acontece que o Dr. Lourinaldo, quando era Delegado de Terras, requereu o subsolo ao redor da castanheira num raio de cem metros pra os lados e vinte pra baixo, como se previsse algum projeto semelhante, talvez pela intuição profissional e agora frustrou a tentativa de desviar o curso do riacho, o que deixou o prefeito preocupado com as máquinas da ENGETEC que não podem tocar o serviço nem ficar paradas e nem retornar pra o Rio de Janeiro. O Dr. Charles Burnier recusou a sugestão do Pernambuco de passar a tubulação por baixo do gramado, querendo a anulação do tombamento.

– O que foi que o tesoureiro disse?

– Bom! Eu perguntei qual a utilidade do escafandro!...

– Escafandro em Serra Dourada? Que negócio é esse? Isto aqui virou alto-mar ou estou sonhando acordado? – Perguntou o rapaz, num assombro.

– Sim, filho, escafandro! Tive o cuidado de perguntar pra que o escafandro, mas deixa eu contar. No fundo do rio foi colocada uma caixa feita com chapas de ferro, e disse o Dr. Charles que é pra o tratamento da água, cujo interior é uma verdadeira casa cheia de salões dotados de válvulas, comportas, filtros, passagens falsas de um salão pra o outro, pra limpar a água, etc. Em épocas de chuva, a água que entrar no primeiro salão vai deixar os filtros cheios de barro e será necessário o escafandro pra a limpeza. Foi a resposta dele!

– Impressionante! – Comentou, laconicamente, Alberto.

– Impressionante – repetiu, laconicamente, Agnelo, tentando fazer eco às palavras do rapaz. – Quem poderia imaginar que algum dia alguém fosse cometer o disparate de usar um escafandro em Serra Dourada, como se nossos cofres estivessem abarrotados!...

– Papai, quanto tempo o Dr. Charles demorou pra responder a pergunta?

– Ah! Foi imediata! Fez parte da conversa. Alguma dúvida a respeito, filho?...

– Sim, papai, muitas! Quando conversei com o governador, falamos de infidelidade conjugal e de espionagem industrial ou internacional, evidenciando a possibilidade de sob o nosso solo haver uma mina de alguma coisa muito valiosa que pode ter sido localizada por satélites. Se for verdade, não será o padeiro ou o lixeiro quem deverá saber de tal coisa e sim alguém de cúpula. Sendo o Dr. Charles uma pessoa que se encontra entre nós há apenas dois anos como Secretário de Obras e com todo o conhecimento técnico que traz na bagagem, é, na verdade, a pessoa mais indicada para ser alvo das suspeitas. Papai, temos de vigiar este homem dia e noite. Precisamos fazer um levantamento sigiloso dos gastos que a Prefeitura vem tendo com equipamento técnico. Receio que por trás desse escafandro esteja havendo algo de assombrosamente vultoso debaixo dos nossos narizes e não estamos vendo. Trocando em miúdos, papai, vou entrar naquela caixa e verificar de perto o que ela tem. – Concluiu com rosto afogueado.

– Mas filho, e se ele for o assassino? Sua vida vai correr um enorme risco!...

– Não se preocupe, papai! Não vou descer de qualquer jeito. Vou traçar um plano de ação pra empreender a aventura, pois ainda não tenho nada em mente. Não se esqueça de que minha preocupação maior é sua vida, pois até a farmácia já foi ameaçada. Até agora, temos dois suspeitos que, ou o assassino é um dos dois ou ambos ou, o que é pior, nenhum deles e a gente está correndo atrás de fantasmas. Pode ser que tudo o que está acontecendo não passe de um amontoado de coincidências e que os verdadeiros culpados sejam bem outros e o motivo também. Papai, acredito que o Dr. Charles não deve fazer sigilo quanto a guarda dos planos da rede hidráulica, não é? Sinto ter de envolvê-lo nisto, papai, sinto muito, mesmo, mas precisamos conhecer essa bendita caixa por dentro e por fora, como as palmas das nossas mãos. Se meu palpite estiver certo, uma dessas passagens falsas deve ser a via de acesso pra os subterrâneos do córrego. Pelo tempo que instalaram a caixa, creio que já deve ter qualquer coisa bem avançada. Acompanhe o meu raciocínio e discorde se puder. O Dr. Charles trabalhava no Serviço de Geoaerofotogrametria, no Centro de Observações Aeroespaciais e um belo dia dá de cara com a informação de que no paralelo tal, meridiano tal, há uma invejável mina de ouro ou coisa que o valha. As pesquisas são confirmadas e levam ao conhecimento do Governo Federal que anda às voltas com Serra Pelada e manda abafar o caso, como fazem as companhias de petróleo, pra manter as reservas e etc. O Dr. Charles aprofunda-se nas pesquisas e dá uma olhada no mapa, encontrando na latitude tal, longitude tal, Serra Dourada. Atraído pelo nome da cidade e do córrego, tira férias e vem verificar o motivo das suspeitas e encontra um prefeito que tem um candidato a sucessão com umas idéias meio malucas de barragem, horta comunitária, pomar, criatório de cabras, canalização, etc. Checa os recursos do Município e constata ser razoável a receita. Apresenta-se ao candidato e dá um leve toque, como se fosse idéia própria. O homem que andava de olhos revirados e todo suspiros pelo projeto, só falta colocar o Sassá Mutema no colo e convida imediatamente a ser assessor quando vencer a campanha eleitoral. Ele consulta as pesquisas e verifica ser o homem imbatível nas urnas e o convence a ser aceito pelo atual prefeito na Secretaria de Obras, ficando com a manteiga, o queijo, a faca e o pão prontos para o sanduíche. Cutuca daqui, cutuca dali, dá de cara com o filão ou pelo menos algumas pepitas michurucas que lhe facilitam as primeiras despesas e começa a contrabandear o minério, mas é descoberto pelo delegado que, inexperiente, telefona para o maior amigo, o candidato a prefeito, que repassa a preocupação ainda incógnita ao próprio interessado, o Dr. Charles, informando ainda que o está aguardando à noite para ouvir a história. Expert no manejo das armas, o Dr. Charles observa tranqüilamente por uma das janelas da Prefeitura, enquanto na sala ao lado o prefeito e o candidato traçam planos de campanha sem ao menos imaginarem que a apenas dez passos um assassinato está sendo friamente planejado. Preocupado com a descoberta, o delegado Euclides caminha para a prefeitura sem perceber que de uma das janelas a morte o espreita silenciosamente. Ao passar embaixo da lâmpada de mercúrio da praça, oferece um belo alvo para o homem que não hesita e atira uma, duas, três vezes com um moderníssimo rifle automático de longo alcance, prostrando-o no solo. O novo delegado abre o inquérito e o Pato é criado para assustar curiosos, até que o Epaminondas dá com a língua nos dentes para o Fulgêncio e, sem que se liguem os fatos, cada um tem uma morte diferente, no mesmo dia, sobrando agora toda essa bananosa nas nossas mãos pra descascar, se pudermos. Que acha, papai, sonho ou realidade?

– Nos sonhos, como nos filmes, meu filho, toda realidade é permitida, mas na realidade, não se deve sonhar demais. Se isto é sonho ou realidade, já se foram três bons amigos, quatro estão apavorados, sendo inclusive tachados de covardes e o meu próprio filho enterrado até o pescoço no lodaçal e se alguém pode fazer alguma coisa, este alguém sou eu, só que não vejo nada na minha frente que possa fazer pra enfrentar...

Alberto colocou o indicador sobre os lábios, interrompendo a frase de Agnelo pela metade, recomendando silêncio e olhou ao redor, pálido como se visse um fantasma. Quando o pai quis dizer qualquer coisa, fez um gesto desesperado de silêncio, retirou a caneta do bolso, pegou um papel e escreveu:

Agnelo leu o minúsculo texto e também empalideceu, pondo-se a tentar seguir o raciocínio do rapaz, que, reconhecia, ser bem mais aguçada do que a sua.

– Puxa! Falei tanto que até me deu sede. Quer água, papai?

– Acho que um copo d’água e um cafezinho caem bem – respondeu, impressionado com a facilidade de reflexo do filho. Arrastaram as cadeiras e, silenciosamente, puseram-se a procurar pela casa onde julgavam ser possível a colocação do aparelho, vasculhando canto por canto até que em dado momento ao remover um quadro de São Jorge da parede, como se fosse uma pequenina aranha por entre as teias encontraram o minúsculo aparelho. Voltaram-se um para o outro pálidos e silenciosos como cadáveres. Devolveram o quadro à parede e Alberto fez um gesto para saírem. No quintal, foi direto ao assunto:

– Papai, estamos no horário do almoço e o assassino só ataca na praça e à noite. Além disso, praticamente já sabemos quem é. Se ele ouviu a nossa conversa, só tem duas coisas a fazer, ou vai tentar nos pegar como fez com o Fulgêncio ou desaparecer da cidade a passos largos. Afinal, sente que o segredo está se espalhando e o cerco apertando.

Agnelo meneou a cabeça, fingindo uma segurança que estava longe de sentir.

– OK, filho, então vamos almoçar e depois registrar uma queixa contra ele!

– Se o delegado estiver lá!... Esses caras só querem faturar a grana do governo e não fazer nada!... – Abraçaram-se, amorosamente e foram para dentro de casa.

Logo que terminaram de almoçar, o telefone tocou e eles se entreolharam meio assustados. Alberto atendeu e passou ao pai, dizendo:

– É o seu Afonso, pra o Senhor!...

Agnelo pegou o aparelho, ouviu por um instante e respondeu:

– Tudo bem, depois do almoço vou verificar. – Desligou e informou:

– O Dr. Charles foi ver a metragem da área e o Afonso quer fazer o levantamento de verbas para informar o Dr. Carlos Morales, da ENGETEC. – Enquanto falava, percebeu que a fisionomia do rapaz se iluminava num sorriso e perguntou meio encabulado:

– Feliz, meu filho, com o provável sucesso do empreendimento?

– Papai, tudo que se refere a benefício pra a nossa cidade me dá muito prazer. – Apontou o quadro de São Jorge, fez um gesto para irem ao quintal e completou: Bem! Se o senhor está indo pra a prefeitura, eu também vou pra a delegacia. Não tenho nada mesmo pra fazer nesta cidade paradisíaca!...

No quintal, falou, entusiasticamente:

– Papai, fomos salvos pelo gongo! Uma pessoa não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Se o Dr. Charles estava no campo, então não estava na cidade e se não estava na cidade, não pode ter ouvido a nossa conversa, concorda?

– Filho, você é um gênio! Tenho orgulho de ser o seu pai! – Concluiu, emocionado.

– Resta-nos saber se existe mais alguém por trás ou, o que é pior, se realmente é o Dr. Charles. Afinal, o que conseguimos até agora foi um amontoado de suspeitas que nem sabemos se são verdadeiras. Se for ele, não deve estar sozinho, deve ter mais alguém sob suas ordens. Resta-nos saber quantos são, qual a utilidade real do escafandro, quem o usa, se estão extraindo ouro qual o método usado de escoamento pra fora, e etc. Deve ser um processo muito bem organizado de contrabando. Outra coisa, se estão cavando sob o leito do rio, o que estão usando pra evitar desabamentos? – E, exaltado: Papai, sabe o que está acontecendo em Serra Dourada? Estamos fazendo papel de besta, o senhor, eu, o prefeito, a comunidade em peso!... Meu Deus!... É impressionante como se apresenta tão real!... Não tenho a menor dúvida. Sabe de uma coisa, papai, acho que vou entrar em contato com o governador e requerer uma força policial pra agirmos com segurança. O que acha?

– Espere, filho. Deixa eu verificar as contas e à noite falamos melhor, OK?...

– OK, papai, tudo bem!... Então, vamos à luta, que a morte é certa. Acho que demos um grande passo hoje. O Dr. Charles Burnier ou quem quer que seja tem as horas contadas pra prestar contas com a justiça!

CAPÍTULO NOVE

Pesadelos e Balas Vindas do Nada

Alberto quase não conciliou o sono naquela noite. Sempre que fechava os olhos, apareciam as visões mais esquisitas. Máquinas que não identificava, homens cavando e carregando, navios e caminhões, porém, quase tangível, era o escafandrista, chegando em determinado momento parecer-lhe vê-lo à porta do quarto. Sentou-se na cama de um salto e ao perceber o delírio, sorriu, virou-se para o canto da cama e dormiu até as seis. Quando se levantou, encontrou Agnelo a se barbear.

_ Bom dia, papai! Dormiu bem?

_ Oi, filho, um pouco de insônia, mas tirei um bom cochilo. E você, dormiu bem?

_ Na verdade, papai, minha noite não foi das melhores. Muitas visões desconexas, mas que me deram uma certa diretriz pra hoje. – Ia começar a falar mas lembrou-se do microfone, apontou o quadro e disse: Vou tomar banho!...

_ Não demore pra o café!...

_ É pra já, doutor!...

Durante o café, Agnelo perguntou quais os projetos para a manhã, sabendo de antemão que não seria dita a verdade. Cuidadosamente, Alberto apontou o quadro e disse:

_ Sabe, papai, esse negócio de ficar fazendo papel de bobo não está me agradando. Acho que vou conversar com o prefeito e colocar o cargo à disposição. Não estou mais ligando pra os estudos, estava quase noivo e não ligo pra a namorada, nunca mais pisei na farmácia. Em resumo, minha vida está toda desorganizada. Dentro de algumas semanas será o vestibular e tenho de voltar aos estudos. A propósito, acabo de me lembrar – disse, piscando um olho – que tenho um trabalho de Geologia pra fazer, quer dizer, não é bem de Geologia, é de Química, mas envolve reações de silicatos e vou procurar o engenheiro da ENGETEC pra ver se ele me dá alguma dica. Vê que eu já tinha esquecido e era para entregar no dia que os professores entraram de greve no cursinho do pré. De certo modo foi até bom pois tenho tempo e campo pra pesquisar.

Na delegacia, espanou a mesa, arrumou alguns papéis, verificou a correspondência que era quase nenhuma e preparou-se para ir à barragem, quando o telefone tocou. Tentou adivinhar quem poderia ser, mas surpreendeu-se ao ouvir mais uma vez a voz do Pato:

_ Escuta aqui, otário, vê se faz o que eu mando. Tu só vai deixar isso aí quando eu quiser, se não quer ver a espelunca do teu pai virar churrasquinho, tá sabendo?

Quando tentou dizer alguma coisa ouviu o som intermitente do aparelho desligado. Impossibilitado de falar, tentou ligar os fatos mas achou muito pouca coisa para alguma conclusão. Sentou-se, tentando descobrir o que lhe martelava a mente mas obstinadamente o cérebro se recusava a fornecer a informação desejada. Tentou não pensar e descobriu que não podia, que se encontrava por demais envolvido no processo e se não se integrasse ficaria como o aro do barril: por fora, sendo o fator segurança e desconhecendo o conteúdo. Envergonhado, prometeu a si próprio que não abandonaria o caso até descobrir os culpados ou uma bala o estendesse no solo. Voltou à carga, dando tratos à bola e quanto mais tentava se envolver no raciocínio mais se sentia impotente, como se uma parte importante do seu EU houvesse fugido para longe, aumentando-lhe ainda mais a angústia e arrancando grossas gotas de suor da testa, frontes, axilas e costas, molhando a camisa e permaneceu naquela posição por mais de uma hora, sem nada lograr de êxito.

Levantou-se cambaleante, com a premente necessidade de algo que não conseguia definir. Mecanicamente, disse ao policial de plantão que estava de saída e foi para casa.

Como um autômato, apanhou a guitarra, foi para o quintal e sentou-se num galho do abacateiro que crescera na horizontal e lhe permitia tocar o tempo que quisesse. À medida que feria as cordas do instrumento, percebia que a mente se aclarava e entendeu que sua capacidade dedutiva era inspirada pela música e recordou o que dissera ao governador: “É como desvendar os segredos incomensuráveis do Universo nos álbuns de figurinhas!”. Diacho, então era isso! Ele desvendava tudo e sabia de tudo porque na verdade sempre fora um filhinho do papai e nunca se interessara por nada que dissesse respeito aos seus semelhantes, nunca tivera responsabilidade direta com o trabalho duro e agora estava enterrado naquele poço cheio de merda e ainda ameaçavam jogar seu pai, seu amado pai lá dentro e ele precisava de provas, de muitas provas, e iria conseguir, nem que tivesse de entrar naquela caixa de ferro ou fosse lá o que fosse.

Enquanto refletia, o rapaz não percebeu que atacava a guitarra num ritmo frenético que só não arrebentava as cordas pela perícia no manuseio. Descobriu porque não atinava com a realidade. A música era terapêutica ao seu sistema nervoso. Ele se acalmava e conseguia raciocinar com a lucidez de um erudito. Ele praticamente via os fatos, mas não via como levantar as provas e não podia arriscar a farmácia e muito menos a vida do seu pai. Sim! Precisava urgentemente dar um basta naquele estado de coisas. Teria de levantar as provas ou não mais se chamaria Alberto. À medida que se acalmava, suavizava também o ritmo da melodia, terminando por tocar baladas tão suaves que deleitavam os ouvidos da vizinhança, arrancando os mais diversos comentários.

Durante a reflexão, começou a sentir o mal estar que sentira na delegacia, mas procurou concentrar-se na música, ficando envolvido num misto de sonho e realidade, como à noite. No pensamento de ir à barragem, deixou-se envolver pela música, com o intuito de acalmar-se, quando, de repente, saltou do galho e ouviu atrás de si um ruído inusitado na casca do galho. Olhou, ainda abaixado, e viu a casca ser arrancada pelo nada, bem às suas costas. Percebeu, num relance o que acontecia e rolou pelo chão. Soltou a guitarra e ocultou-se atrás do abacateiro. Observando ao redor, tentou localizar o atirador, sabendo de antemão que não ouviria nenhum tiro pois a arma usada devia estar munida de silenciador. Esperou imóvel por alguns segundos, mas só ouviu o barulho de uns poucos carros que passavam e um ronco mais forte que parecia ser de um caminhão ou trator. Deu pouca importância e, percebendo que o astuto atirador àquela hora da manhã não poderia se dar ao luxo de atacar um delegado e permanecer muito tempo no local e ser descoberto, arriscou-se um pouco e vendo que o caminho estava livre, apanhou a guitarra e correu a toda velocidade para dentro de casa, guardou o instrumento e, desprezando todas as leis de segurança própria, correu à prefeitura. Entrou no prédio, mas sentiu-se frustrado ao passar pela Secretaria de Obras, pois o Dr. Charles Burnier estava de costas e ele não conseguiu avaliar o impacto da surpresa. Caminhou resoluto para a Tesouraria, fechou a porta atrás de si e colocou o indicador nos lábios logo que foi visto, para não denunciar sua presença. Fez outro gesto com o dedo frente à boca, como a dizer que tinha urgência para falar. Com o instinto da astúcia despertado, Agnelo foi à porta de maneira displicente e não notando ninguém no corredor, foi à sala vizinha e recomendou:

_ Se alguém me procurar, fui tomar um cafezinho em frente!

Saíram rapidamente para não serem notados e entraram no bar.

_ O que aconteceu, filho? Por que tanto mistério?

_ A coisa esquentou, papai! Não vá se assustar porque estou quase desmaiando!...

_ Não brinca, filho! Quer logo falar o que é?

_ OK, papai, mas é que o assunto é mais grave do que parece. Como falei, não vá se assustar, hein? Disfarça, faz qualquer coisa, mas pelo amor de Deus, não escandaliza, tá?

_ Tá! Tá! Mas conta logo o que é?!...

_ Tá bom! É simples. Eu tava tocando no abacateiro, quando lembrei de uma coisa. Pulei no chão para vir falar com o senhor e Tcheck!, ouvi a casca ser arrancada. Me escondi conforme o ângulo em que se encontrava o atirador, aguardei um pouco e, nada. Curioso é que os tiros pareciam vir do telhado, mas não vi ninguém descendo.

No fim do relato, estava vivamente preocupado com a fisionomia do pai que, nos seus cinqüenta e poucos anos jamais se envolvera em qualquer tipo de violência, tendo-lhe passado os conceitos de caridade, fraternidade, justiça, perdão e amor e estavam no meio de um fogo cruzado, sem ao menos saber de onde vinha, como ou quem era o atirador. Engoliu em seco e como já tinha começado, era imperativo continuar.

_ Lembra que falei em deixar o cargo e pedir ao prefeito pra me substituir? Pois é! Foi um pretexto pra não dar com os burros n’água. Mas ou o que eu falei ou aborreceu o patinho ou eles ouviram as conversas de ontem. O certo é que ele telefonou, dizendo que eu não vou sair e vou fazer o que ele quer e não o que eu quero, do contrário a farmácia que ele chamou de espelunca vai virar churrasquinho. Quando vim da capital, falei pro Marquinhos que estava à disposição e eu queria saber quem me indicou pra perguntar por que não deu o nome da mãe. Eu tô careca de saber que quem indicou foi o governador. Quanto ao atentado, não sei também se ouviram a conversa de ontem ou se foi a de hoje. O certo é que eles têm recursos pra atacar à luz do dia e longe da prefeitura. Agora foi que a coisa arrochou. Acho que vou é fugir de Serra Dourada. Não quer vir comigo, papai?!...

_ Pára de brincar, filho!... Será que você ainda não atinou pra a gravidade do caso? Esse pessoal quer acabar com a sua vida e você aí parecendo que vai pra uma festa!?...

_ Mas eu não sei raciocinar de outra maneira. Depois do almoço, eu quase fiquei maluco de tanto querer pensar feito gente grande. Deu foi uma suadeira dos diabos que vou ter de tomar banho. Foi só pegar a guitarra e as coisas clarearam. Se não fosse o bang-bang, eu estaria na barragem, que é pra onde pretendo ir, só que não vou mais sozinho. Fiz amizade com o Falcão que parece ser boa gente e de confiança, gosta de música e foi com a minha cara. Vou dar uma dica da pesquisa e indiretamente advertir do risco que vai correr. Dois delegados mortos no exercício e um depois que saiu... Ele é inteligente e vai entender o que terá de fazer!...

_ Agora, sim, meu filho, vejo que estou falando com uma pessoa de juízo. Não gostaria de ver você sair de casa estirado num caixão tão cedo. A dor da perda de sua mãe ainda é muito grande. – Disse Agnelo com uma lágrima teimosa a bailar no canto do olho.

_ Ela está olhando por nós, papai!... – Disse Alberto, tentando disfarçar a voz, para quebrar a emoção do momento.

CAPÍTULO DEZ

Quem Não Tem Memória, Faz Papel de Bobo

_ É claro! Mas você há de convir que o meu filho foi colocado lá dentro por indicação não sei de quem e posso garantir que ele não tem absolutamente nada pra relatar de concreto. Depois, tem uma coisa que quero lhe dizer, ele não quer que ninguém saiba porque vai virar alvo de gozação, mas com a história do telefonema do Epaminondas, o negócio do Pato, ele está apavorado e não quer nem tocar no assunto.

_ Pobre rapaz! – Lamentou o mandatário. – Eu também não gostaria de estar na pele dele, mas não posso fazer nada pra substituir sem motivo justo, a menos que ele coloque o cargo à disposição!...

_ Mas, se é cargo de confiança, você pode pedir a substituição dele!?...

_ Pra colocar quem, se ninguém quer aceitar?!...

_ É! Acho que você tem razão. Afinal depois de dois assassinatos...

_ Dois assassinatos? E você não conta o Epaminondas?

_ Ora, todo mundo sabe que ele morreu enquanto tomava a laranjada...

_ ... que estava envenenada! – Interrompeu o prefeito.

_ Qual a prova, alguém fez exame?

_ Bem, não, mas foi dito que o assassino aplicou o veneno na laranja com uma seringa de injeção, você não ouviu falar também?

_ Não! – Mentiu o farmacêutico. – Esta é a primeira vez que ouço alguém falar sobre isto. Quem foi que lhe falou?

O prefeito fez um esforço de memória tentando lembrar, desistiu e disse:

_ Sinceramente, não me lembro. Certamente foi alguém que comentou, talvez por acaso, e eu ouvi, não sei!...

_ E você não acha que a pessoa que falou pode ter um bom conhecimento de causa?

_ Como assim?

_ Pense comigo. O Epaminondas morreu, digamos, envenenado com a laranja. O culpado, discretamente sugere ao prefeito que foi veneno aplicado na laranja com uma seringa. O prefeito espalha o boato ou pelo menos comenta com uma ou duas pessoas. Ora, no caso, quem espalhou o boato, levou a notícia surgida do prefeito e não de quem falou pra ele. Depois do boato generalizado, ninguém mais vai poder saber de onde partiu. Sugiro a você fazer o máximo de silêncio a respeito, e mais, tentar a todo custo lembrar quem falou. – Disse o farmacêutico com uma pontinha de orgulho, desejando que o filho estivesse perto para acompanhar sua linha de raciocínio, mas logo se envergonhou, pois ele sabia antecipadamente e foi só transformar em palavras o que era apenas idéia, enquanto o filho tirava as ideias das circunstâncias, conforme elas se apresentavam.

Pateticamente, o prefeito olhou para o interlocutor e disse:

_ Quer dizer que tentaram me fazer de idiota perante o povo do município e eu seria no caso o originador do boato, não foi?

_ Não quero dizer que tenha sido assim, mas você há de convir que as aparências indicam, concorda?

Envergonhado com o papel que estivera a ponto de representar inconscientemente, o homem disse, laconicamente:

_ Concordo! – E, levantando-se da confortável poltrona que se houvera sentado durante a conversa, enquanto caminhavam, falou, decidido:

_ Se não caí no ridículo até agora, vai ser difícil cair de agora em diante. Prometo que vou tentar me lembrar quem falou.

Consciente do dever cumprido ao plantar a semente, Agnelo retornou ao serviço, atacando com entusiasmo redobrado o levantamento das contas, passando o restante da manhã nas buscas, checando um balancete aqui, conferindo uma fatura ali, somando um total acolá, até que percebeu o movimento de saída para o almoço. Arrumou a papelada, trancou a porta e saiu, defrontando-se com o Dr. Charles Burnier, circunspecto, no seu ar de poucas palavras. Trocaram um leve aceno, dirigindo-se ambos para a saída, o que ensejou o início da conversa, cujo tema girou em torno das obras, naturalmente, que era do interesse de ambos. Se tinha sido tema de reunião, não havia motivo para sigilo.

_ Então, Dr. Charles, podemos contar com alguma esperança na liberação dos tubos por baixo do gramado?

_ Ontem fui fazer um levantamento da área e pretendo concluir o relatório ainda hoje, momento em que passarei às mãos do prefeito para que as providências cabíveis sejam tomadas. – Concluiu, dirigindo-se a lugar diverso ao que se dirigia seu interlocutor. Intrigado, o farmacêutico franziu o sobrolho.

CAPÍTULO ONZE

Falcão Entra na Caçada Com o Cérebro a Mil

_ Delegado, amanhã de manhã vou precisar de uma dispensa pra ir ao Batalhão receber meu pagamento, antes do meio-dia vou estar de volta. Já falei com o sargento.

_ OK, Falcão. À tarde vou dar uma chegada na represa pra fazer uma pesquisa escolar. Você não quer ir comigo, pra conhecer?

_ Até que é uma boa. Nunca mais aconteceu nada de novo por aqui. Pena que a gente não descobriu quem matou os delegados. Eles eram meus amigos e se eu pudesse fazer alguma coisa, eu já tinha feito. – Disse, denotando uma leve ponta de acusação.

_ É verdade, Falcão! Você tem ideia de quem pode ter feito isso e por quê?

_ Se eu tivesse a menor suspeita, eu já tinha descoberto esses criminosos, mas os caras parece que cometem os crimes e se metem debaixo da terra.

_ É, Falcão, eu também penso do mesmo jeito. Não tenho a mínima ideia do que pode ter acontecido. O que você acha que a gente devia fazer pra descobrir?

_ Sei lá, rapaz, parece até coisa de filme ou de fantasma. Fantasma não atira em ninguém e filme, é muito real pra ser coisa de cinema. Tô mais perdido do que cego em tiroteio. Meu negócio é pegar o vagabundo na marra e meter atrás das grades, mas essa coisa de ficar correndo atrás do que não sei o que é, não é comigo, não.

_ É verdade! Vamos almoçar e à tarde, a gente vai na barragem, tá bom?

_ Tá falado! Então, vamos embora?

_ Quer almoçar conosco? Uma companhia como a sua vai quebrar a monotonia.

_ Se você faz questão, não custa nada filar a boia do chefe de vez em quando. Dona Marieta, na pensão, vai pensar que saí pra alguma diligência. Já é costume...

_ Por falar em diligência, acho bom você tomar cuidado andando comigo, pois não se sabe a que horas as balas podem começar a circular ao nosso redor.

_ Sou um policial com quinze anos de serviço e já vi algumas coisinhas!...

_ Sei disso, mas é só um aviso pra ter cuidado.

_ Tá falado!...

* * * * *

_ Papai, veja quem veio almoçar com a gente!...

_ Oh! Olá, Falcão, como tem andado?

_ Muito bem de saúde, graças a Deus! Só um tanto aborrecido com as mortes dos delegados, pois eles eram meus amigos.

_ Certo, meu rapaz, mas não se culpe, pois ninguém tem a menor ideia de quem pode ter feito isso.

_ Mas eu sou um policial e minha obrigação é proteger a sociedade. Pra isso, ganho do governo o imposto que o senhor paga!...

_ Não seja severo consigo mesmo. Só se pode agir quando há culpa formada, mas até agora não se tem nem suspeita, portanto, como prender quem não existe?

_ É verdade, mas não me perdoo mesmo assim. A coisa que mais desejo neste mundo é descobrir uma pista e ir por ela até o fim, desembaraçando essa tramoia.

_ Falcão, foi por falar assim que o Fulgêncio foi assassinado. Ele só decidiu ser delegado depois que o Epaminondas contou pra ele o telefonema que tinha recebido!...

_ Eu não me esqueço, mas isso não é motivo pra eu ficar de braços cruzados, vendo os meus amigos serem mortos como porcos e eu sem fazer nada, tremendo de medo!...

Alberto, viu o rumo que a conversa tomava, entrou no quarto e começou a tocar, dizendo que aquele não era momento para falar de serviço, muito menos de assassinatos, mas fez sinal para que Agnelo levasse Falcão para o quintal, o que deixou o soldado visivelmente aborrecido, acreditando que o rapaz não estivesse nem um pouco interessado no caso. Agnelo percebeu o impasse e temendo que o filho perdesse um valioso aliado, convidou-o a olhar a horta que cultivava, o galinheiro e a criação de coelhos. Alberto continuou tocando e os seguiu instantes depois. Procurou discretamente conduzir o soldado até o abacateiro e disse com certa firmeza:

_Falcão, eu vi que você não gostou do modo como desviei o ritmo da conversa, mas eu tenho meus motivos. Acredite que não estamos negligenciando este trabalho, mas antes que a gente possa lhe dar qualquer pista, temos necessidade de saber se podemos contar com sua absoluta discrição, quer dizer, precisamos saber se você sabe guardar um segredo sem revelar nem ao seu pai, nem à sua mãe, nem à namorada, nem ao melhor amigo, enquanto tomam uma cerveja.

Nesse ponto, Agnelo achou que todo o caldo estava entornado e que o soldado nem iria almoçar, pois de tanta raiva ficara vermelho, encarando o rapaz como se quisesse esganá-lo. Preparado, porém, para o temperamento forte do militar, Alberto assumiu a atitude firme do superior hierárquico e disse:

_ Falcão, não se esqueça que o delegado de Serra Dourada sou eu e no momento sou seu superior. Não estou tentando humilhar, mas pelo contrário, pedindo colaboração e cobertura policial, inclusive com o risco da própria vida, mas pra que eu possa contar o que está acontecendo, preciso antes ter a certeza de que você seja mais discreto que um túmulo. Então, posso confiar em você ou existe alguma dúvida quanto a isso? Por enquanto, só posso adiantar que se você abrir o bico, as vidas de nós três a partir de agora não vão valer mais nem um centavo furado. Aliás, acho que falei até demais.

Perto do abacateiro, colocou o dedo numa das marcas de balas e olhou o militar de maneira significativa. Notou a confusão em que se encontrava a mente franca mas não brilhante do interlocutor, mostrou o outro pedaço mais abaixo, conseguindo arrancar do pai que ainda não tinha visto o resultado do atentado uma exclamação de surpresa e o viu empalidecer. Sentou-se no local em que estivera tocando, iniciou alguns acordes soltos e passou a observar as expressões dos dois homens, tentando adivinhar o vulcão que lhes explodiam nos peitos e o turbilhão de pensamentos que lhes atormentavam as mentes. Aumentou os acordes da guitarra, passando a tocar como se nada estivesse acontecendo. Precisava deixá-los tomar as próprias decisões, porque as suas estavam tomadas. Percebeu que se quedavam estáticos como aguardando ordens. Parou de tocar e perguntou:

_ Você entendeu alguma coisa, Falcão?

_ Claro! Isto é marca de bala de calibre grosso. Quem atirou aí?

_ Ainda não recebi sua palavra de que posso confiar no seu silêncio. Desculpe, mas não é pela minha vida que me preocupo, mas pela do meu pai. Você não ignora o que vem acontecendo pra saber que uma palavra só de qualquer um é motivo suficiente pra que nenhum de nós possa contar aos netos o que está acontecendo agora em Serra Dourada. – Arrematou, dramaticamente, tentando quebrar a tensão do momento. – Entendeu?

Um pouco confuso com o que acabava de ouvir, o soldado engoliu em seco, acenou de leve com a cabeça e disse, num fio de voz:

_ Sim, entendi!...

_ OK! Tenha certeza de que não vou lhe esconder nada do que eu pensar nem do que vou fazer, mas só vou contar aos poucos pra não lhe confundir a cabeça. Quer tomar um banho pra refrescar a cuca?

_ Não, não é preciso...

_ Ora, Falcão, você é meu convidado pra almoçar. Acha que vou ter apetite, vendo essa cara de velório na minha frente?

Sorrindo, o militar percebeu o espírito da coisa e encaminhou-se para a casa.

Um pouco apreensivo com a euforia do soldado, Alberto chamou-o e disse:

_ Só uma coisa, Falcão: o lugar menos indicado pra falarmos deste assunto é dentro de casa. Por favor, não se esqueça em momento algum. Esta é a primeira e mais importante lição deste curso. OK?

Falcão sentiu a mente dar um estalo e percebeu que a partir dali todos os conceitos que tivera de segurança de policiamento teriam de ser reconsiderados sob a orientação de um garoto leigo que quase poderia ser se não seu filho, mas pelo menos um irmão bem mais novo. Para demonstrar o alcance a que chegara o entendimento, respondeu:

_ Pode dar as ordens que estou disposto a cumprir, como bom militar!

_ Então, prepare-se para uma surpresa bem grande. Não se esqueça de manter absoluto silêncio, pois esta será a maior de todas as revelações. Preparado?

Falcão acenou com a cabeça, dando a entender que recebera bem a lição. Entraram, pé ante pé, viram a dona Zefa preparando o almoço e foram para a sala. Silenciosamente, Alberto pegou o quadro, virou-o, colocou os dedos sobre os lábios pedindo silêncio mais uma vez e mostrou o minúsculo microfone oculto em forma de aranha e viu o soldado empalidecer. Cuidadosamente, recolocou o quadro e com um gesto convidou-o a voltar ao quintal, onde perguntou:

_ Entendeu agora o que está acontecendo?

¬_ Sim, Alberto! Desculpe se dei aquelas piadas quando cheguei. O que eu queria dizer era que você e os outros eram covardes. Agora descobri que eu é que sou um burro...

_ Não, Falcão, você não é burro e vai ter toda a oportunidade de provar. O que você tem é muita responsabilidade profissional e não aceita injustiça. Se você fosse burro, acha que eu estaria escolhendo logo você para confiar estes segredos? O que acontecia era que ninguém lhe contava nada e você não sabe adivinhar.

_ Mas, como foi que você descobriu aquilo?

_ Só fiz pensar que ele poderia estar ali e não duvidei da possibilidade. Procurei, e, pronto, lá estava ele. Se não estivesse, teria se confirmado a sua inexistência. Ademais, não fui eu sozinho, teve mais gente na jogada. – Disse, olhando significativamente para Agnelo, que, discreto, desviou a vista. – Muito bem, agora chega de emoções por hoje, e vai tomar um banho pra a gente ir almoçar.

_ Eu preciso mesmo! Não esperava por este aperitivo. Desculpe, tá, Alberto!...

_ Falcão, por favor, não me faça pensar que confiei cedo demais. Se continuar com a mente voltada pra essas minúcias, vai desviar a atenção do mais importante, abrir a guarda e ser apanhado. E lembre-se que ainda tenho muita coisa pra lhe contar. Só a título de informação, meu pai perdeu a primeira noite antes que eu lhe contasse, e agora nem parece que está aqui. Mas se eu bem o conheço, sei que aí dentro está morando um vulcão prestes a explodir a qualquer momento. Tenho até pena desse pobre coitado que anda fazendo essas estrepolias por aí, pois na hora que a gente botar as mãos nele, nem sei o que este velhão vai ser capaz de fazer pra mantê-lo atrás das grades pelo resto da vida.

_ Não é só ele, não. Mas o pior castigo seria pedir esmola em Serra Dourada, pois iria morrer de fome e sede na primeira semana, se não acontecesse coisa pior.

_Tá bom, agora se você não for tomar banho, vai ficar com fome. Dona Zefa, por favor, arranja uma toalha pra o Falcão. Outra coisa, lá dentro, só vamos falar de galinhas, horta, coelhos, guitarra, prefeitura, etc. Se tocarmos no assunto, vai ser só pra fazer papel de besta. O cara que estiver ouvindo, vai ficar muito feliz, lá do outro lado.

_ Ah! Então foi por isto que vocês não tiraram o negócio de lá!?... Eu estava me perguntando o motivo. Mas não é muito arriscado deixar aquilo lá?

_Será que não vale o risco, dizer ao inimigo que estamos no caminho que ele quer?

_ Claro! Claro que vale!... Só estou cada vez mais surpreso com sua inteligência e sangue de barata. Pô!... É preciso ter muita tranquilidade para manter toda essa calma!...

_ Tranqüilidade, uma zorra!... É medo, mesmo!...

* * * * *

Enquanto almoçavam, Alberto falou da pesquisa, da necessidade de apresentar a tarefa quando retornasse ao colégio e mais uma vez convidou o soldado a irem até a barragem. No final da refeição, prepararam-se para sair quando Falcão parou em frente ao quadro que estava com o microfone e perguntou:

_ Quem é devoto de São Jorge, aqui, você ou seu pai?

_ Nem ele, nem eu. É recordação de mamãe que comprou há muitos anos atrás, quando eu ainda era garoto. – Respondeu Alberto, tentando adivinhar o que se passava na mente do soldado. – Por quê?!...

_ É que eu sempre quis ter um quadro de São Jorge no meu quarto para me proteger e se vocês quiserem vender este, estou disposto a comprar.

Alberto entendeu a mensagem e comunicou ao pai a proposta, dando a entender por gestos a intenção do militar. Agnelo também entendeu, pensou um pouco e disse:

_ Falcão, este quadro era da mãe de Alberto e pra nós é como se fizesse parte da família. Acho que nós não saberíamos viver sem ele aí nesse lugar. Vamos conversar e depois decidimos. Está bem assim?

_ Claro! Eu verdadeiramente tenho devoção por São Jorge e ao ver este quadro senti uma enorme vontade de ter no meu quarto, como se ele fosse me livrar de muitas desgraças. – Concluiu, surpreendendo os anfitriões com sua argúcia.

_ Tudo bem! Então, vamos conversar e depois lhe diremos o que decidimos. OK?

_ OK! Vou aguardar, então!

Na rua, Alberto lembrou para ter cuidado ao tecer algum comentário na delegacia, pois, além de poder haver outro microfone, os outros militares que ainda não sabiam do segredo poderiam ouvir e por isso deveriam ter locais especiais para se comunicarem.

CAPÍTULO DOZE

Uma Fumacinha Azulada e a ENGETEC na Jogada

Apesar do sol quente da tarde bem ventilada, Alberto trajava uma jaqueta jeans sob a qual portava o coldre subaxilar. Com um bloco de anotações e uma prancheta, saiu com Falcão para olharem a caixa. Despreocupadamente, sem chamar a atenção de ninguém em especial, dirigiram-se à barragem. Quando avistaram o maquinário da ENGETEC, Falcão foi surpreendido por um empurrão e um grito de Alberto, que se atirou ao solo, enquanto uma pequena nuvem de fumaça se elevava de alguns arbustos a certa distância. Alberto sacou o revólver e fez fogo em direção ao local, secundado por Falcão que notara a fumaça se dissipando, mas ainda denunciava o esconderijo do franco-atirador. Afastaram-se um para cada lado e correram em direção ao local, na certeza de que fosse lá quem fosse, não poderia ser um suicida para querer lutar contra dois policiais em campo aberto, ainda mais desejando ocultar a própria identidade. No local, perceberam claramente as marcas de pés descalços no solo, em direção ao rio. Seguiram-nas por alguns metros e perceberam que desapareciam dentro d’água, o que os deixou um tanto aborrecidos. No espírito de Alberto, nasceu uma suspeita de que o mistério só podia estar dentro da caixa. Foram ao acampamento e decidiram que já era tempo de acabar com o segredo e contaram que acabavam de ser vítimas de assassinato. Requisitaram o pessoal disponível para dar uma busca nos arredores, mas foram contestados por Boni que disse haver recebido determinação do dono da empresa de se manterem distantes de complicações pelo bom nome da firma. Compreensivo, Alberto dispensou a ajuda e para não quebrar a estrutura do plano, informou o motivo da visita, mostrando a prancheta e o bloco de anotações, prometendo voltar mais tarde. Pediu para ver se faltava algum funcionário e ao constatar que estavam todos presentes, conferiram as medidas dos pés, constatando que nenhum deles tinha as calças molhadas. À primeira vista, estavam fora de suspeitas. Pediu para ficarem de olhos abertos e comunicarem se aparecesse alguém suspeito, especialmente se estivesse armado. Com precisão cronométrica, correram para a cidade e Alberto mandou que o soldado Jerônimo ficasse de plantão na farmácia, mas se ocultasse ao máximo para não levantar suspeitas. Foram à Prefeitura e, na Tesouraria, contaram ao farmacêutico o que acabara de acontecer. No gabinete do prefeito, estava o Dr. Charles com o relatório da pesquisa. Comunicaram o fato e convidaram-no a conduzi-los ao rio para vistoriar os compartimentos da caixa, com a respectiva planta para se orientarem no interior. Na caixa, apesar de procurarem entradas falsas nos compartimentos, nada encontraram e ficaram sabendo que cada uma das chapas, cada porta, cada válvula, cada filtro foram colocados sob a orientação pessoal do Dr. Charles, fazendo Alberto concluir que ou aquele homem estava correndo um risco muito grande em assumir toda aquela responsabilidade ou então o projeto realmente era de uma seriedade incontestável e ele estava no caminho errado.

Decepcionado com o rumo que as coisas estavam tomando, foram à prefeitura e apanharam Agnelo. Na delegacia pegaram o sargento Argolo, os dois cabos e os soldados disponíveis, deixando três de plantão, passaram na farmácia e foram à casa de Alberto, onde ele pegou o quadro de São Jorge, retirou o microfone e informou que a guerra estava declarada contra os assassinos, fazendo os militares vibrarem com a decisão. Retornaram à delegacia e vasculharam os locais possíveis e impossíveis. A seguir, fizeram uma rápida reunião para traçar diretrizes. À tarde foram ao local da emboscada e vasculharam a área sem no entanto encontrarem nada, a não ser as pegadas que levavam ao rio, apesar de procurarem acima e abaixo, em ambas as margens.

Naquela noite, Alberto não conseguiu ir para casa. Na sua intuição, algo de muito grave estava para acontecer e precisava ficar atento. Ou o assassino era um louco varrido ou então ele estava muito perto da verdade para ser atacado ao lado de um policial em plena luz do dia. Por outro lado, o camarada não parecia ser nem um pouco maluco, pois mesmo tendo frustrada a tentativa, conseguiu desaparecer pelo leito do rio sem uma pista sequer. Começou a rememorar os acontecimentos e se levantou num ímpeto, sem perceber que Falcão estava grudado nos seus calcanhares. Na verdade, era o único que conhecia mais detalhes daquela intrincada história. A tarde fora tão agitada que Alberto não tivera tempo de contar mais nada, a não ser os dois balaços no abacateiro e o microfone no quadro de São Jorge, além do próprio atentado que sofreram juntos. Agradeceu ao santo lhes haver salvo as vidas e só na rua foi que percebeu a presença do soldado. Agradeceu o apoio com um tapinha no ombro e disse:

_ Obrigado, Falcão! Sua presença é muito importante, pois dez minutos depois que assumi a delegacia, recebi um telefonema do Pato, dizendo que se eu não ficasse quieto, a farmácia do meu pai seria queimada, e nem sei onde ele está. Vamos passar na farmácia pra ver se está tudo bem e depois, pra casa. Ela está no seguro, e o que me importa é a vida do meu pai. Hoje ainda, se não formos interrompidos, vou lhe contar o que sei, porque se alguma coisa me acontecer, vocês podem começar as investigações de onde eu parar. Com qual dos seus colegas, você mais se afina?

_ Da vez que o banco foi assaltado, há cinco anos, quem mais se destacou foi o Rui. O cara parecia que enxergava no escuro. Eles eram cinco e o Rui sozinho prendeu dois, eu prendi um, o Jorge prendeu os outros dois com o cabo Magalhães. Quando a gente se encontrou, ele tinha algemado o braço de um na perna do outro e cadê fugir naquela situação? Apesar da preocupação, Alberto riu da criatividade do soldado e decidiu:

_ Quando chegar em casa, vou telefonar pra o sargento colocar turnos de guarda na farmácia e se reunir conosco lá em casa com os cabos e o Rui. Por enquanto, vamos dar descanso aos outros, mas que fiquem de sobreaviso pra o caso da coisa esquentar.

CAPÍTULO TREZE

O SANTO GUERREIRO Numa Noite de Cão

A dona Zefa se desdobrava para atender os sete homens naquela noite. Raramente Alberto ou Agnelo trazia mais de um convidado, mas sete de uma só vez, só em época de campanha política. Iniciado o jantar, pela urgência do assunto, Alberto não se fez esperar e foi direto ao assunto, olhando fixamente para cada um dos circunstantes.

Senhores, o momento não é pra brincadeiras, mas não é por isto que pretendo atrapalhar o apetite dos senhores. Nós sabemos como foi que começou, só não sabemos qual foi o motivo. De certo modo fui testemunha, não da morte do Euclides, mas do estado de espírito em que ele se encontrava na tarde daquele dia. Ele chegou na farmácia, procurando remédio pra dor de cabeça. Perguntei se era para dor de cabeça ou pra nervoso e ele saiu sem responder, e foi assassinado poucas horas depois. Comentei com papai e ele disse que não era prova de nada e o melhor seria eu calar pra não me meter em problemas. Ainda bem que estou livre da bronca! – Brincou, para quebrar a tensão do momento, fazendo os outros rirem. – O tempo passou, seu Afonso foi eleito, os delegados assumiram e desistiram numa rapidez que não dava pra entender, até que o Epaminondas deu com a língua nos dentes pra o Fulgêncio que assumiu a delegacia e foi assassinado com três tiros numa madrugada, depois de um telefonema que o tirou da cama, certamente de alguém conhecido pra ele sair com tanta pressa. Na mesma manhã, o Epaminondas foi tomar sua costumeira laranjada e também encontrou a morte, ficando Serra Dourada mais uma vez sem delegado. No dia do piquenique, enquanto eu tocava com o pessoal, notei uma pessoa diferente no meio da festa, mas tão diferente que se parecia com um elefante na panela de um formigueiro. Conversa com um, conversa com outro, pega o prato e o refrigerante, chuta uma bola, afaga uma criança, pega o violão do Louro do Bode e tocamos até o final da festa. Jantamos no restaurante do hotel, e conversamos até tarde. No outro dia, como sendo um comprador de terras, mas na verdade sendo outra pessoa bem diferente, que me reservo em guardar segredo para evitar envolvimentos, indicou o meu nome, ou melhor, espalhou o boato primeiro e depois foi só confirmar a nomeação. Agora, estou aqui, às voltas com não sei quantos assassinos que querem arrancar minha pele e a do meu pai, além de querer tocar fogo na farmácia.

Continuou falando da suspeita que tinha do prefeito, dos telefonemas do Pato, mas quando ia falar da conversa do prefeito com Agnelo sobre a laranja envenenada, parou repentinamente, correu ao telefone e discou um número. Pediu para chamar o prefeito e advertiu-o a não atender ninguém até que ele próprio chegasse, porque sua vida corria perigo. Desligou o telefone e, apressadamente, armou-se, pediu licença para sair e correu para a porta. Os outros que tinham ouvido o telefonema e visto a ação inesperada, saíram no seu encalço. O sargento deixou o Maurício de guarda, mas não viram o rapaz na rua. Assim que percorreram alguns metros, ouviram três tiros esparsos e correram na direção, encontrando o Jerônimo que estivera de guarda na farmácia, e informou ter surpreendido um camarada agachado junto à porta, em atitude suspeita. Dera voz de prisão e o meliante o alvejara e dobrara a esquina, mas ele o alvejara pelas costas, depois de se haver atirado ao chão. Acreditava tê-lo baleado, pois ouvira um gemido abafado. Correra até a esquina e o vira entrar numa casa velha. Tentara seguí-lo mas novamente fora alvejado, ouvindo o sibilar da bala no ouvido. Protegera-se e retornara à farmácia, não por covardia, mas para não deixar o posto desguarnecido e para obedecer à ordem do delegado de ninguém se arriscar, pois queria todos vivos no final. Sabedor que era da reunião na casa de Alberto, estava indo para lá, quando os encontrou.

Satisfeito com o relato, o sargento parabenizou o soldado e correu até a farmácia para verificar o que fazia o assaltante e sentiu forte cheiro de gasolina. Apanhou no chão uma garrafa de água sanitária, cujo conteúdo estava ainda acima do meio. Cheirou e constatou que era gasolina. Escalou Falcão para montar guarda com a eficiente sentinela e correu com os outros para a casa do prefeito, onde encontrou Alberto repetindo a narração do jantar. Alberto perguntou pelos soldados e o sargento relatou os fatos de minutos antes e mostrou a garrafa com gasolina, o que fez o prefeito empalidecer visivelmente. Alberto pegou o vaso, sopesou e examinou, observando que a tampa continha um pequeno furo e comentou de si para consigo:

_ Que arraso iam fazer!...

As pessoas entreolharam-se, confusas e ele explicou que de acordo com a ameaça do Pato, o objetivo era incendiar a farmácia, jogando o conteúdo da garrafa por baixo da porta o mais longe possível, em forma de leque e em seguida riscar um fósforo. Quando o fogo atingisse as caixas e o álcool, seria impossível de conter, arrasando o estoque. Pediu ao cabo Magalhães para reunir o maior número possível de policiais na casa do prefeito. Acertados os trâmites, decidiu ele mesmo levar mais um soldado para sua residência, mas o telefone interrompeu as ordens e Maristela, sua namorada, que se mantivera afastada junto aos outros familiares, atendeu e entregou ao pai, dizendo:

_ É o Dr. Charles, pra você, papai!

Alberto tomou a dianteira e pediu ao prefeito que não denunciasse a presença da polícia em sua casa. Ele assentiu e tomou o telefone da mão da filha.

_ Alo, Charles?!... Tudo bem? O que há de novo?... Bem, não sei, espera um pouco, porque estou cheio de serviço. – Voltou-se para Alberto, tampou o fone e disse que o Dr. Silvano estava reclamando sua ausência no jogo de canastra que costumavam jogar todas as noites e que ele abandonara depois da posse. Alberto acenou negativamente com o dedo e disse que naquela noite ele não poderia sair de casa por nada. Retornando ao telefone, o prefeito argumentou que estava muito atarefado com a folha dos funcionários. O Dr. Charles acusou-o de virar as costas a quem o indicara e dera a vitória na candidatura. Com tais argumentos e pela amizade que dedicava ao correligionário, o homem vacilou em querer sair, mas encontrou um quase garoto à sua frente, irredutível como uma rocha. Prático e maleável, o mandatário propôs uma rodada tão logo se visse livre das folhas, dentro de dois ou três dias. Desligou o telefone e Alberto, sacudindo a garrafa, gritou: Cigarro! – E saiu em desabalada carreira, deixando a todos perplexos. O sargento Argolo lembrou-se do que ocorrera meia hora antes na casa do farmacêutico, deu ordem ao cabo Vanildo para escalar a guarda e saiu mais uma vez no encalço do delegado, seguido de Agnelo que não pretendia de forma alguma deixar o filho sozinho naquela confusão.

Na porta, perceberam que ele já dobrava a esquina e para não o perderem de vista, encetaram também uma louca correria pela rua, assustando a quantos os viam passar, indo alcançá-lo à porta da farmácia, de conversa com o Jerônimo e o Falcão, de guarda.

Enquanto falava, Alberto notou que alguém se aproximava com um cigarro à boca, retirando o palito da caixa de fósforos. Num impulso vertiginoso, arrancou a caixa das suas mãos e gritou: Cuidado! – O pobre diabo, assustado, dobrou a esquina em menos de um segundo e desapareceu. Alberto olhou para o alto e disse: Obrigado, meu São Jorge, foi bem na hora! – Respirou fundo, acalmou-se e esclareceu:

_ Desculpem, se não estou dando explicações, mas o tempo é muito importante, e não quero me responsabilizar por um crime que quero evitar a todo custo. Enquanto o prefeito falava, eu olhava a garrafa, refletindo que a ação do Jerônimo fora providencial. Se não fosse ele, a esta hora, a farmácia estaria sendo uma labareda só. Pensei que se demorasse um pouco mais era só alguém riscar um fósforo, jogar no chão, e, pronto, o fogo estaria dentro de casa num só tempo. Quando sacudi a garrafa, percebi que quase a metade da gasolina tinha sido jogada aí dentro e era o bastante alguém passar fumando e jogar o palito aceso, e a desgraça estaria feita. Graças a São Jorge, na hora que chegamos, foi só o tempo de tomar a caixa da mão do rapaz, coitado, ficou tão assustado que deve estar correndo até agora, sem saber o que aconteceu.

_ Será que ele não sabia, mesmo? – Perguntou o sargento, surpreendendo.

_ Que quer dizer, sargento?

_ Foi só um palpite, mas com o que aconteceu aqui hoje, não creio que a passagem dele tenha sido só coincidência. Acho mesmo é que depois da tentativa frustrada, o chefe da quadrilha mandou esse cara acabar o serviço que o outro começou. Veja bem, o cara chegou dizendo que tinha despejado quase metade da gasolina embaixo da porta, quando foi descoberto pelo Jerônimo e foi obrigado a abrir fogo contra ele, que jogou-se ao chão e revidou, ferindo-o, não se sabe onde e perseguindo-o até a casa velha aí atrás. Irredutível no seu propósito, o chefe quer a todo custo concluir o seu objetivo, que é o de lhe assustar, não pode ficar desmoralizado e o recurso foi o de terminar o serviço mandando outro tocar fogo na gasolina. Pode ter sido coincidência, mas acho que a gente devia interrogar aquele moço, que saiu correndo como se estivesse preparado para fazer isso depois de jogar o palito aceso. Só que correu antes de jogar, porque você interferiu. – Arrematou o sargento, recebendo um aperto de mão do delegado, que completou:

_ Obrigado pela lucidez, sargento. Sem este esclarecimento, eu não teria tido um mínimo de suspeita desse camarada. Sei onde ele mora e podemos mandar buscá-lo para explicar. Com certeza é um dos membros da quadrilha que vem assombrando Serra Dourada. Até que enfim temos algo de substancial nas nossas investigações. O nome dele é Zé de Ticha e mora na rua do Lava-pés, perto da casa do Paraíba. Vamos mandar três soldados pra buscar, pois ele pode estar acompanhado com outros membros da quadrilha, se é que está em casa a esta hora. Ele deve estar mesmo é fazendo o relatório do fracasso ao chefe. Falcão, por favor, vou precisar muito de você esta noite pra coordenar a guarda aqui na farmácia. Vamos pegar a chave lá em casa e você pegue mais um soldado pra fazerem rodízio os três, a noite inteira. Agora cedo, não creio que vá aparecer ninguém, mas de madrugada é quase certo que tentarão. Por favor, não se arrisquem à toa. Qualquer movimento suspeito, atirem pra matar, pois eles são perigosos, mas o serviço aqui hoje é apenas de não deixar ninguém passar na calçada, pelo menos enquanto a gasolina estiver oferecendo risco. Por falar nisso, vamos jogar água, pra ver se ela some mais depressa. Espalhar mais do que está, não é possível. Agora, vamos pra a casa do seu Afonso, que o pessoal deve ter chegado e depois pegar a chave da farmácia pra o pessoal se acomodar.

_ Eu vou pegar a chave, filho. – Disse Agnelo, sentindo-se inútil e querendo ajudar.

_ Mas nem por sonho vou deixar o senhor andar sozinho por aí, à noite, e dar a maior chance que esses patifes estão procurando!... Papai, se Deus nos ajudar, vamos pegar todos eles sem derramar uma só gota de sangue, mas pra isso não podemos cometer nem um pequeno deslize pra eles nos pegarem. – Rebateu o rapaz com meiga autoridade, diante do pai, dando a entender que a tentativa de ajuda teria sido o maior desastre, e acrescentou: - Falcão, quem é que você escolhe pra ficar aqui, à noite?

_ Bom seria o Maurício, mas como ele está em sua casa, vou ver com o Jerônimo quem ele vai querer.

O soldado interferiu e disse:

_ Como vamos ter de virar a noite praticamente acordados, acho bom o Agnaldo, pois o cara é duro de roer. Quando tira serviço nas festas, ele vira o outro dia acordado, como se tivesse dormido a noite inteira. Uma vez, ele virou quarenta e oito horas, como se nada tivesse acontecido. Outra vez, passou uma noite inteira dentro de um brejo com água pelos peitos, cercado de índios por todos os lados, e se não fosse um litro de conhaque que tinha levado, teria morrido de frio.

_ Eu conheço essa história!... – Confirmou o sargento, respeitosamente.

_ Então, decidido, Agnaldo, não é? – Inquiriu Alberto.

_ Ele está muito bem!... – Confirmou Falcão.

_ Não esqueci do seu pagamento, não, OK?... – Disse Alberto, fazendo-os rirem.

Da casa do prefeito, telefonou para casa e o cabo Magalhães informou que estava em paz. Deu algumas instruções e desligou. Pediu três soldados ao cabo Vanildo para irem em busca do Zé de Ticha, recomendou o máximo de cuidado e completou:

_ Amanhã vamos dar uma busca na casa que o atacante do Jerônimo entrou. Pelas marcas de sangue, acho que não vai ser difícil de encontrá-lo. Pena que a gente não tenha equipamentos de hand-tolk, pois iria facilitar bastante. – Pediu acomodação ao prefeito para dois soldados descansarem na sala enquanto o terceiro montaria guarda no rodízio noturno. Consultou o relógio e chamou o pessoal para levar seu pai em casa, apanhar as chaves da farmácia e se aquartelarem na delegacia, recomendando que não se arriscassem e a qualquer suspeita telefonassem, deixando claro que àquela altura dos acontecimentos, todos, indistintamente, eram suspeitos. Olhou para a namorada e disse:

_ Daqui a pouco telefono pra você, tá?

A moça assentiu com a cabeça e eles saíram.

Na delegacia, convidou o sargento e os dois cabos que substituíra por soldados para uma reunião, a fim de darem um balanço na situação. Iniciou, pedindo uma relação de nomes e endereços dos soldados, para as emergências, além de que eles também estavam na mira dos assassinos. O contingente compunha-se de um oficial que estava de férias, um sargento, dois cabos e vinte soldados, que se encontravam distribuídos nos postos da farmácia, delegacia, casas do prefeito, do delegado e busca do Zé de Ticha, restando ainda cinco à disposição. Dando curso ao que iniciara em casa, falou das suspeitas de um veio aurífero sob o solo de Serra Dourada, esclarecendo que gostaria de saber qual tinha sido o segredo deixado pelo cacique Jutorib, o que traz a alegria, e que vinha sendo passado de geração para geração, com inabalável sigilo. Transferiu ao sargento o encargo de verificar os descendentes do cacique e voltou a atenção para os cabos, perguntando pelos soldados que tinham ido capturar o suspeito, mas recebeu resposta negativa. Fez um gesto de impaciência e exclamou: Droga, será que vão demorar muito?. – Ligou o telefone e disse:

_ Seu Afonso?... Tudo bem aí?... Ótimo! Alguém telefonou? Por favor, se alguém convidar o senhor pra sair, seja qual for o motivo, não aceite, pois pode ser armadilha. Não se esqueça de que foi assim que mataram o Fulgêncio, e o que é pior, deve ter sido alguém da absoluta confiança dele, do contrário ele não teria saído de casa tão confiante. Em Serra Dourada não existe ninguém estranho, ao menos que seja de destaque social. Acho que o chefe da quadrilha é alguém que cruza conosco a todos os instantes e em todos os lugares. Seria até bom que o senhor tentasse se lembrar quem falou sobre o veneno aplicado na laranja, pois isto poderá ajudar a desvendar o mistério, e ele pode querer tirar o senhor de circulação, antes que se lembre. Quem sabe, um casamento, um aniversário, um doente, são bons motivos pra afastar alguém de casa à noite?!... Bem, não sei se é, mas pode ser meu pai, pode ser o senhor ou qualquer outra pessoa. Não podemos confiar em ninguém. A coisa só estourou porque tentaram me pegar com o Falcão, hoje, na beira do rio, mas eu queria fazer esta investigação em sigilo. Posso contar com sua colaboração?... Obrigado! Isto ajudará muito, pois não vou precisar me preocupar com o senhor e dirigir a atenção pra outras coisas. Se houver alguma coisa de urgente, vamos estar aqui por toda a noite, que temos diligências a fazer. Mais uma vez, muito obrigado e não se preocupe. Se depender de nós, nada de mal vai acontecer a ninguém, até que a gente ponha a mão nesses assassinos. Posso falar com Maristela?... Obrigado e boa noite, seu Afonso. – Aguardou um pouco, suavizou a fisionomia e disse:

_ Alo, filha, como está a cabecinha nesta noite de cão?... Ora, você não vai querer que eu comece a chorar, não é? Tenho mais é que levar na brincadeira. Se só em ver você, eu já estava feliz, ainda mais em poder falar – galanteou – mas se você está preocupada, reze pra que termine bem e o mais rápido possível, tá bom?... Mas, falando sério, todo cuidado vai ser pouco, até que possamos pegar esses bandidos. Eles já provaram que não vão recuar diante de nada. Acho que tem coisa muito grande por trás. Se começaram essa mortandade com o pobre do Euclides, imagina o que não são capazes de fazer até concluir o que pretendem. – Ouviu um instante e continuou: Tá bem, meu amor, não se preocupe. Eu estou cercado de policiais muito capazes que provaram mais de uma vez a eficiência que têm. Olha, não abra a porta pra ninguém sem a presença dos soldados e vê se alguém telefona pra seu pai. Não posso fazer segredo, pois as vidas de vocês realmente estão correndo perigo. O que podemos fazer é agilizar as investigações, mas não se preocupe, querida, que se São Jorge nos ajudar, quando menos a gente esperar, eles estarão nas nossas mãos. Eu estava com medo de acontecer alguma coisa com meu pai, porque na hora que eu assumi a delegacia, recebi um telefonema do Pato ameaçando a vida dele, e eu não sabia o que fazer pra enfrentar a situação, nem sequer confiar nos policiais, pois ele foi claro em dizer que a farmácia iria pelos ares, como realmente provou que estava falando sério, mas agora que a guerra está declarada, eles que se cuidem, pois não vão mais poder se esconder, e além do mais, cometeram mais erros do que se podia esperar, e é através desses erros que nós pretendemos acertar... Tá bom, meu amor, agora vai tirar um soninho, porque temos muita coisa pra fazer... Tá bom! Não esquenta que não vamos andar sozinhos. Estamos trabalhando em equipes, exatamente pra evitar surpresas. Vou ligar pra a farmácia e ver se está bem por lá e depois pra papai e desejar boa noite. Tchau, amor, e até amanhã. Vai dormir, hein? E não se preocupe que está tudo sob controle, OK? Tchau! meu beijo! Te amo muito, tá? Te vejo logo de manhã, mas vai dormir!

Desligou e aguardou um pouco para ver se alguém ligava e em seguida ligou para a farmácia. Deu instruções para não deixarem ninguém se aproximar, e se fosse mais de uma pessoa, acionar logo os outros dois e não se exporem nem bancarem os heróis, e brincou: Mais vale um covarde vivo do que um herói morto!...

O sargento Argolo pegou o telefone e perguntou aos soldados se tinham apitos. Ficou satisfeito em saber que ao menos um tinha tido a idéia de levar o seu e recomendou que passasse ao que estivesse no plantão da hora.

Alberto fez a terceira e última ligação e foi atendido por um pai desesperado:

_ Alo, quem fala? Aqui é da casa de Agnelo!...

_ E eu não sei? – Brincou Alberto, ao perceber a angústia do pai.

_ Filho, o assunto é sério! Por favor, não brinque, ao menos por hoje. Quantas vezes em menos de uma hora tive vontade de ir aí, ver o que está acontecendo?!...

_ Calma, papai! Eu estava falando com seu Afonso e aproveitei pra namorar um pouco, que eu não sou de ferro, né? Liguei pra a farmácia e agora, adivinha com quem estou falando? – Perguntou com voz misteriosa. Para quebrar a tensão, Agnelo respondeu:

_ Bem, deixa ver, acho que não vou acertar. Fala logo, com quem é?!...

_ É com o meu querido pai-pai-zão! – Falou, com voz carinhosa, como se não fosse o delegado. – Agora, vai dormir e pelo amor de Deus, não sai daí por nada deste mundo, esta noite, pois só assim ficaremos tranquilos para pensar. Qualquer coisa, pode ligar para cá, que não vamos sair a noite inteira.

_ Então, vem pra casa, filho. Amanhã cedo, você volta pra o serviço!...

_ Não posso, Paiê, porque mandamos buscar o Zé de Ticha, o cara que ia acender o cigarro, e queremos interrogar agora de noite.

_ Ah, filho, eu queria participar também!...

_ Se ele for encontrado e disser alguma coisa de interessante, telefono pro senhor e pro seu Afonso, e mando uma escolta buscar os dois. Mas veja bem, só concorde em abrir a porta depois que eu telefonar dando o código, a senha, fui bastante claro?!...

_ Por que não diz logo agora?

_ Porque só vou dizer quando eles estiverem na porta. Agora, vamos traçar planos pra amanhã e tirar um cochilo, pois a noite vai ser longa. Tchau, papá, e vai nanar, pra ficar bem fortinho, tá bom? – Falou com voz meiga, que emocionou o pai.

Desligou e olhou os policiais que o observavam em silêncio quase reprovador, por estar brincando com assunto tão sério, e disse:

_ Puxa!... Quase não consigo botar essas crianças no berço. Tava todo mundo tão nervoso que pareciam não querer dormir nos próximos dez anos. Meu pai quis vir várias vezes. Maristela, tive de usar um argumento mais convincente pra ela despertar e vigiar o pai. Ele pode receber um telefonema e os soldados se sentirem constrangidos em discutir com o prefeito. Se isto acontecer, ela vai telefonar pra nós e eles vão ficar isentos da responsabilidade. Além do mais, vou medir o grau de esperteza da minha futura esposa.

Os militares riram, concordando com a esperteza do rapaz. Alberto retomou a palavra e os convidou a irem ao Lava-pés para verem o que estava havendo. Já era tempo de os soldados terem retornado.

_Mas você não disse que não ia se afastar daqui?

_ Surgiu uma emergência – piscou um olho – e somos obrigados a sair. Duvido que alguém ligue pra cá, a menos que seja por motivo justo, pra não atrapalhar o raciocínio do Sherlock – concluiu, lembrando-se do governador, como se houvessem passado dez anos desde o encontro de apenas algumas semanas antes. – Então, mãos à obra? Quem vai e quem fica? Quantos somos, agora?

O sargento contou rapidamente e informou:

_ Somos nove, ao todo!

_ Então, como fazemos? Alguém tem de dormir. Quem está mais descansado, pra ir comigo? Os outros, colocam um de plantão e vão tirar um ronco.

_ Se tem alguém aqui que vai para o berço, é você, viu? Ainda não descansou um segundo, depois que cheguei na sua casa, e ainda quer ir atrás de vagabundo? Não senhor! O senhor fica e nós cuidamos disso!...

Alberto quis discutir, mas o sargento replicou:

_ Quem for mais velho dá as ordens e não se discute!...

Sorridente com a solidariedade dos colegas, fez uma continência cômica, se dirigiu a uma das celas, deitou-se no primeiro catre que encontrou e gritou:

_ Então vem trancar a porta que quero dormir!

O comentário arrancou risadas dos que estavam reunidos lá fora.

CAPÍTULO QUATORZE

Luz Acesa Fora de Hora e o PATO Ataca Novamente

Despertou às duas, com a chegada do pessoal. Eles tinham procurado pelo baixo meretrício, onde os vagabundos costumavam freqüentar até altas horas e não tinham a menor idéia de onde poderia ter-se metido. Concluiu que nada havia a fazer e ligou para a farmácia, casa do prefeito e a sua. Alertou que dobrassem a atenção, porque era a partir daquele instante o momento mais propício para qualquer ação. O sargento saiu com um cabo e dois soldados para uma ronda e Alberto foi com eles. Encontraram uns poucos transeuntes reconhecidamente noctívagos que não representavam ameaça aparente, mas como o Zé de Ticha era considerado inofensivo, acharam por bem anotar os nomes, para futuras referências. O soldado de plantão na farmácia alertava da gasolina a quem passava. Àquela hora não devia mais existir vestígio, porém não deixava de ser um ótimo argumento. A casa do prefeito estava calma. Na de Alberto, uns gatos namoravam nos telhados, fazendo uma algazarra infernal. Vez por outra, um cachorro latia, defendendo os supostos domínios do dono, deixando-os seguir adiante, sem molestá-los. No retorno, de passagem pela praça, notaram que havia luz em uma das janelas superiores da prefeitura, que foi apagada imediatamente. Correram para verificar as portas, e encontraram um calmo vigia rondando na base do prédio e nada havia percebido no interior. Alberto perguntou se tinha as chaves de entrada e ele negou, informando que a prefeitura era aberta de manhã, pelo pessoal da limpeza.

Deixaram os dois soldados, voltaram à delegacia e telefonarem para o prefeito a fim de comunicar a invasão. O mandatário, apesar do sono, denotou visível preocupação, pois não devia haver ninguém além do vigia e prontificou-se a sair. Diante da situação de expor o chefe do executivo, decidiram que o que estivesse procurando, já devia ter encontrado e, devia estar querendo eliminar intrusos dos seus planos maquiavélicos. Pegaram a chave e por volta das três e trinta, foram para a delegacia. Alberto compartilhou as desconfianças quanto aos tiros que eliminaram o Euclides e o Fulgêncio terem partido da prefeitura, justificando a asserção com o argumento de que tanto um quanto o outro se encontravam em lugares diversos, mas em posições que davam ótimas linhas de tiro, do prédio, e o assassino poderia estar em uma das janelas, ou mesmo colocar uma bomba. Traçaram planos quanto ao local em que poderia estar, a hora para detonar e a suposta vítima, com o objetivo de evitarem surpresas desagradáveis. Concluíram que seria estupidez armar uma bomba para explodir na madrugada, sem uma vítima em potencial, portanto o correto seria programá-la para explodir a partir das oito horas, momento do pessoal começar a chegar, inclusive o prefeito, que apenas o serviço extra impedia de chegar no início do expediente.

Decidiram investigar o que estaria alguém fazendo na prefeitura, àquela hora. Os soldados e o vigia rondavam até onde podiam, pois alguns muros impediam o circuito. Informaram não ter percebido nenhum movimento. Apesar disso, pela certeza que tinham de haverem visto a luz acesa, quiseram verificar, antes que o dia amanhecesse, para evitar o caso de ser uma bomba e a prefeitura ir pelos ares. Afastaram-se para se certificarem da janela, e ficaram surpresos porque era a Tesouraria. Irritado pela impotência de não poder desvendar o mistério, medo de alguém ser morto e a responsabilidade da missão assumida fizeram o rapaz tomar a chave e caminhar em passos quase suicidas para o interior, mas foi advertido pelo sargento Argolo que tivesse cuidado. Obediente e disciplinado, refreou o passo e começou a observar os cantos das salas, depois de terem distribuído o pessoal, de forma que ninguém ficava desguarnecido. Se houvesse alguém, indubitavelmente, seria obrigado a denunciar seu esconderijo, certos de que o invasor não poderia ter ficado na sala e ter ido para outra. Por mais que procurassem, quando os primeiros raios solares surgiam no horizonte, foram obrigados a reconhecer que todas as dependências estavam na mais perfeita ordem, sem suspeitos, sem bombas ou ao menos um simples microfone, pois foi um dos objetos da atenção do delegado, ao recordar o que encontrara em sua casa.

De volta à delegacia, não se haviam passado muitos minutos, ouviu-se o telefone, que Alberto atendeu e empalideceu. Os companheiros notaram que sua fisionomia passou da surpresa para a raiva incontida, até que no auge da irritação, soltou um terrível brado em forma de palavrão, desligou e bradou:

_ Eu vou pegar esse cara! Eu vou matar esse cara! Quando eu botar as mãos nesse cara, ele vai se arrepender de ter nascido! O filho da puta não teve vergonha de ligar a esta hora da manhã, pra gozar com a minha cara. Ligou só pra perguntar se eu tinha prendido alguém na noite que passei andando pela rua, com cara de besta. Eu mato aquele filho de uma puta! Eu mato! Eu mato! – Repetia, impotente, dando com o punho fechado sobre a mesa, como se nela se vingasse dos desagravos sofridos no telefonema.

Percebendo que ele se acalmava, o sargento perguntou quem tinha telefonado e ficou lívido, por sua vez, ao ouvir a lacônica resposta:

_ O Pato!...

Sem articular palavra, olhavam para ele que permanecia cabisbaixo. Como crianças que aguardam ordens do pai, não atinavam que o mais novo deles tinha quase o dobro da idade daquele jovem que mostrava ter uma maturidade acima do comum. Além do mais, era a primeira vez que tinham contato quase direto com o misterioso personagem e, naturalmente, pelo que tinha feito com os outros delegados, não deixavam de ter uma certa parcela de receio por estarem lidando com o desconhecido, o que fazia com que o respeito pelo jovem aumentasse consideravelmente. Eles o tinham visto desafiar pessoalmente, sem imaginar que poderia ser uma gravação, o que não implicava que ele não estivesse ouvindo o retorno da comunicação. O sargento percebeu que o choque fora muito violento para o rapaz e fez sinal para os soldados se sentarem, até que ele reassumisse o controle dos nervos, o que levou uns cinco minutos.

Voltando a si, começou por praticar exercícios respiratórios e passou a falar:

_ Desculpem! Acho que me excedi um pouco, mas prometo que no desenrolar deste caso, não vai acontecer outra vez. Sinto muito, mas é que fui apanhado desprevenido!

Com tais palavras, os policiais deram mostras de maior admiração pelo rapaz.

CAPÍTULO QUINZE

O Contra-Ataque, e a Caça Vira Caçador

Alberto não deu muita importância aos sentimentos de admiração que provocara. Calma e decididamente levantou-se, pegou o catálogo telefônico, selecionou um número, tirou o fone do gancho e discou com calma e firme determinação estampada no rosto. Aguardou algum tempo sem demonstrar pressa alguma até ser atendido. Ao ouvir a voz sonolenta do outro lado da linha, começou o discurso, dizendo:

_ Eu sou Alberto, você deve saber muito bem. Este o momento de acertarmos as contas. A partir de agora, você será responsabilizado. Só não vou aí, agora, lhe dar voz de prisão porque não tenho a menor prova que lhe possa incriminar, mas é a melhor coisa que pode me acontecer, porque o jogo virou. Agora, eu deixo de ser a caça e passo a ser o caçador, enquanto você que se julgava o caçador invencível, passa a ser a caça. A partir de agora, você pode fazer o que quiser, que estou nos seus calcanhares. Pode agir à vontade, que não vou fazer nada pra lhe pegar. Aliás, só estou telefonando, porque não quero mais nem uma gota de sangue derramada, nem do lado de lá, nem do lado de cá. Se você quer saber, você cometeu duas grandes besteiras e eu estava lá, enquanto você escorregava para o fundo da fossa, e está todo lambuzado de merda. Agora, nem toda a água do mundo vai conseguir lavar essa sujeira que você se enfiou. Vou lhe dar algumas alternativas, pra você escolher a melhor delas. Ficar quietinho pra ganhar bombom, mandar me apagar enquanto é tempo, como fez com o Euclides, esconder embaixo da saia de sua mãe, me processar por falsa acusação ou fugir do país, batendo o calcanhar na bunda. Qualquer uma que você escolher, pra mim tá muito bom, pois vou estar esperando e é uma deixa pra apertar mais ainda o nó na sua garganta nojenta, até ela estourar. De agora em diante, só vou colher provas para pedir o Mandado de Prisão e ter o prazer de lhe enfiar atrás das grades, seu grande filho da puta, assassino, traidor. Só pra você sentir de perto o arrocho que vou lhe meter, vou passar o fone pra o sargento Argolo, que ainda não sabe quem é você, e você pode fazer o que quiser, que para mim não será novidade. Ou desliga sem se identificar, confessando sua culpa ou se identifica, dizendo a ele que vai me processar, o que não deixa de ser também uma confissão, ou se declarar inocente pelo tempo que quiser, até que eu reúna as provas. A decisão é toda sua. Mais uma coisinha só, se você quiser, ainda pode aplicar injeção numa laranja e fazer um suco. A hora é apropriada, pois foi bem numa hora desta que o pobre Epaminondas viajou. Ah! Não adianta querer tirar o seu Afonso de circulação, pois ele está bem guarnecido e o primeiro safado que se aproximar dele só vai ser o intermediário para nós lhe pegarmos mais depressa. Só não vou lhe dar o mesmo tratamento porque, por incrível que pareça, não perdi o respeito pelo que eu achava ser um grande homem, amigo do meu pai. Que amigo!... Um assassino vulgar!... Seu silêncio pra mim é mais do que uma confissão, mas não vale como prova no tribunal, pois nem os policiais que viraram a noite e estão ouvindo, sabem com quem estou falando, mas não vou dizer, pra não tirar deles o prazer da descoberta. Eu só estou curioso qual vai ser a sua atitude quando o sargento pegar o fone. Quero dar a eles o prazer de descobrirem através do próprio raciocínio quem foi que andou assombrando a cidade por mais de um ano. – Depois do discurso, entregou o fone para o sargento e completou: Por favor, sargento, vê se o senhor consegue arrancar alguma coisa desse moço, pois até agora ele só tem feito fungar no telefone. Ou está muito gripado, ou com muita raiva, ou muito medo!..

O sargento colocou o fone no ouvido, disse Alo! Escutou um pouco e desligou.

_ O homem passou todo esse tempo, como você disse, fungando no telefone e desligou sem dizer uma só palavra. Será isso realmente uma confissão?

_ Por isso, não falei o nome dele. Os advogados chamam a isso de "barro na parede". Se for culpado, pode tomar a mais diversa das atitudes, inclusive processar-me ou querer me tirar de circulação, só pra se vingar, mas vou deixar uma denúncia escrita, no caso de me acontecer alguma coisa. Se for inocente, acho que o máximo que poderá fazer será contar ao meu pai e ao seu Afonso o que fiz, mas sei que eles me tiram do bolo. Basta a noite que passaram, pra sentir que qualquer recurso é válido pra encerrar uma carreira de crimes. Bem, agora vou em casa tomar um banho, fazer a barba e tomar um gostoso café feito pela dona Zefa. Durante o dia, vamos poupar o pessoal e deixá-los dormir o tempo que quiserem, pra de noite pegar no batente. Vamos escoltar meu pai e o seu Afonso pra evitar surpresas desagradáveis e recomendar que não saiam sozinhos. Pacíficos como são, não vão nem pensar em contrariar nossas recomendações. Enquanto isso, aproveitaremos pra tirar um cochilo. Por favor, recomende aos soldados pra não ficarem sozinhos.

CAPÍTULO DEZESSEIS

Manobras Bem Coordenadas Previnem Surpresas

Ligou para a farmácia e constatou que a madrugada fora calma e que os soldados se encontravam bem dispostos. Ordenou que um ficasse de plantão e os outros darem uma busca, pelas pegadas e pelas marcas de sangue. Ligou para a casa do prefeito e Maristela atendeu, com voz ansiosa, de quem quase não conciliara o sono. Sorriu, ao recordar o que dissera aos policiais a seu respeito. Suavizou a voz e perguntou como fora a madrugada, como o pai havia se comportado e pediu para falar com um dos policiais. Quando ouviu a voz masculina, perguntou como fora a noite e constatou que também estavam descansados. Orientou que deixassem um de plantão e os outros irem em busca do Zé de Ticha, só dando a missão por cumprida depois que o encontrassem. Orientou Maristela a não facilitar em momento algum durante o dia. Sabendo que era filha do prefeito e namorada do delegado, frustrados como estavam, se vingariam no ponto mais frágil, que era ela própria. Desligou ao tomar conhecimento de que o prefeito ainda se encontrava deitado e discou o número da sua casa, sendo atendido por Agnelo que quase não pregara o olho durante a noite. Recomendou que não andasse sozinho durante o dia para não dar facilidades aos criminosos. Pediu para falar com um dos policiais e verificou que também estavam descansados. Ordenou que deixassem um de plantão e os outros fossem à Reserva Indígena, em busca de algum descendente direto do cacique Jutorib, o que traz a alegria, para esclarecer o grande segredo deixado com a filha.

Dando por satisfeitas as providências, confiou a delegacia ao sargento e saiu no fusca com um dos soldados. Determinou que usassem o chevette em apoio à procura do Zé de Ticha. No momento, ele era a peça mais importante do quebra-cabeça. Se fosse da quadrilha, seria a ponta do fio da meada. Marcou para as nove horas, depois que tivessem descansado por umas duas horas. Encontrou o prefeito de pé e barbeado. Recusou o café, argumentando que ia tomar banho e sua passagem era só para ver se ele havia lembrado quem falara sobre a injeção na laranja. Como o garoto apanhado em falta, o mandatário enrubesceu e informou que apesar dos esforços, não conseguia se recordar de nada. Para facilitar a retrospectiva, o rapaz pediu para buscar na memória não a pessoa, mas o local e as circunstâncias em que se encontravam no momento da confidência. Supervisionou a segurança, deu-se por satisfeito e foi se cuidar, após receber a terna recomendação da namorada para ter muito cuidado. Emocionado, beijou-a, ternamente.

Agnelo estava saindo com o soldado, Alberto entregou a chave do fusca e ordenou que o levasse à prefeitura, mas só parasse se fosse o sargento e retornasse, enquanto ele se banhava e barbeava. Quando o soldado chegou, pediu para olhar o veículo a fim de evitar sabotagem e foi para a cama, de onde saiu com menos de duas horas, como se houvesse dormido a noite inteira. Fez as ligações e encontrou tudo calmo. Deixou um vigia e saiu com o acompanhante. Encontrou o sargento, os cabos e dez soldados a postos. Procurou saber das diligências e o sargento relatou que fizera contato com os soldados em missão, e deixara o gol com os que estavam à procura do Zé de Ticha. Ele parecia ter desaparecido do mapa. Ninguém conseguia dar notícia da sua existência. Conduzira os que faziam averiguações na Reserva e os da casa velha quase não estavam conseguindo seguir a pista, pois as marcas eram quase nada. Estavam bastante empenhados na busca. Um deles era o Jerônimo que descobrira a sabotagem e fora vítima dos disparos do bandido.

Aborrecido com os resultados, mas satisfeito com o andamento das investigações, convidou o sargento e dois soldados a darem um giro pela cidade. Trafegaram ao longo do muro lateral da Prefeitura e dobraram a primeira esquina. Pararam em frente a uma casa e tocaram a campainha. A doméstica informou que o Dr. Silvano passara a noite jogando canastra e estava com muita dor de cabeça. O rapaz disse que era assunto da polícia e necessitava falar-lhe com a máxima urgência. A moça entrou e instantes depois as cortinas davam passagem ao proprietário que mostrava realmente estar com aparência de poucos amigos. Alberto desculpou-se e começou a narrar o que conseguira descobrir nos poucos dias de gestão. Omitiu os entendimentos com o governador e encerrou informando que julgava estar a sua vida em perigo e pretendia deixar os dois soldados de segurança. Advertiu que os seus passos deveriam ser acompanhados até que o perigo passasse. O Dr. Silvano ouviu e declarou, laconicamente:

_ Faça como quiser, delegado!...

Agradeceu por os haver recebido e se retiraram. Ao lado do carro, deu instruções detalhadas, deixando claro que enquanto não tivessem a quadrilha desbaratada, qualquer pessoa, inclusive seu pai, deveria ser considerada suspeita. Os bandidos eram pessoas que circulavam pelas ruas de Serra Dourada, e qualquer facilidade poderia custar uma vida. Acentuou que se ocorresse qualquer deslize, por menor que fosse, por negligência, ele disporia de todo o empenho em responsabilizar o culpado e levaria às últimas consequências. Determinou que não se afastassem um do outro, e reforçou o argumento, dizendo:

_ Se um for ao banheiro, o outro monta guarda na porta. Por favor, sejam vigilantes ao extremo! Posso confiar, ou existe dúvida?...

Os soldados assentiram e ele acrescentou:

_ Nós estamos em fase complementar de investigações e os criminosos são capazes de qualquer coisa, quando são descobertos. Vocês sabem muito bem o que eles já fizeram, e eu não quero que façam o mesmo com nenhum de nós. Quero apanhar todos eles, sem perdas para nós. Praticamente, já sei quem é o chefe... Como não tenho provas, posso estar enganado... Mais uma vez, repito: não confiem em ninguém!... O chefe pode ser meu pai ou meu sogro, que é o prefeito, ou qualquer outra pessoa!...

Encerrou o pequeno discurso e convidou o sargento a irem à Reserva, averiguar o que os soldados tinham conseguido. Estavam conduzindo o índio Moacir, não sem uma certa relutância. Ele fora informado que era para prestar declarações relativas ao segredo do cacique, e se obstinava em não falar. Sabia que não era prisioneiro, mas tinha uma tradição a resguardar. Se os antepassados o haviam feito, ele não podia fugir à regra.

Na delegacia conversaram tentando convencê-lo da necessidade de colaborar na solução dos assassinatos. O índio entendeu que dependendo da sua participação, a história poderia ser modificada. Fora amigo dos homens, mas tinha a responsabilidade de zelar pelo segredo. Chegaram à conclusão de que a revelação só poderia ser feita pelo conselho dos anciões. Marcaram para mais tarde e, para ganhar tempo, foram designados um cabo e um soldado para o acompanharem e trazerem a confirmação da hora da reunião.

Quando ficaram a sós, Alberto perguntou:

_ Sargento, hoje eu tomei uma atitude arbitrária, movido pela raiva. Depois, refleti que talvez tenha sido precipitada, muito embora não me censure pelo que fiz. Muito pelo contrário, continuo achando que foi correta. Eu telefonei para a única pessoa capaz de cometer dois deslizes tão grandes a ponto de denunciá-la como chefe dessa organização criminosa. Quer dizer, eu não tenho a menor dúvida de que ele é realmente o chefe da quadrilha. Acontece, porém, que me faltam dados para fazer uma acusação formal. O que desejo saber do senhor é se devo revelar o nome desse homem ou se devo buscar mais provas para irmos lá e dar voz de prisão?!...

_ À primeira vista, o certo seria você dizer o nome dele. Haja vista que, perigoso como ele é, sabendo que eu estou a par do que vem acontecendo, a qualquer momento que cruzar comigo, saberá quem sou eu e eu não saberei quem ele é... Por outro lado, se você fez uma acusação direta como a que ouvi, é porque tem motivos mais do que suficientes, e qualquer nome que disser vai parecer o do culpado, desde que apresente um argumento aceitável. Como você disse, o bom mesmo é nós termos o prazer de descobrir pelos nossos próprios recursos. Puxando a brasa pra a minha sardinha, me deu vontade de bancar o detetive. Quem sabe, não vou ligar os fatos e chegar à mesma conclusão?... Ele deve ter ficado uma fera e a qualquer momento vai querer pegar você de jeito. Particularmente, acho que foi uma temeridade, mas acho que ele depois daquilo não vai conseguir dar mais nem um passo sem pensar que você está nos calcanhares dele... E agora, o que vai fazer?

_ Agora, vamos intimar o Dr. Charles Burnier pra depor... O que me emboscou, desapareceu nas instalações da responsabilidade dele. Não entendo esse tipo de coisas, e por isso vou precisar da orientação do senhor!...

_ Muito bem!... Então, mãos à obra pois temos a audiência com os índios!... Não acha bom falar com o agente da FUNAI?...

_ Vamos bancar os inocentes e deixar eles resolverem os assuntos internos!...

_ Legalmente, não concordo, mas se você acha, deve ter seus motivos, acertei?...

_ Sargento, acredito que aqui embaixo de nós passa um rico filão de ouro, que é a causa de tudo isso... Serra Dourada e Córrego do Ouro... Será coincidência ou foi alguma descoberta que não sabemos?... O Dr. Charles Burnier vai nos dizer de onde vem, onde trabalhava, o que faz em Serra Dourada, etc., etc., etc... Só não podemos aborrecer a fera e arrumar as perguntas, de forma que ele solte o leite. Temos de criar perguntas que tragam respostas com nomes de outras personalidades como o seu Afonso, o Dr. Silvano e muitos outros que devem ter muita coisa interessante a nos dizer e que nem eles mesmos sabem que são importantes para as investigações. Considerando que tudo isso seja verdade, o que devemos fazer? Espalhar a notícia antes que seja comprovada ou deixar que os entendidos cuidem dessa responsabilidade?... Nós nem sabemos o segredo dos índios, e querendo ou não, temos de desenterrar. Será que o agente da FUNAI é um homem íntegro, ou tem a sêde do ouro?... Será que não é ele o chefe, ou um dos membros da quadrilha?... No momento, quem não têm inocência comprovada, é suspeito... Concorda comigo?

_ Concordo!... Vamos agir?...

_ Só se for agora!...

CAPÍTULO DEZESSETE

Silêncio Na Quadrilha,

Mas a Placa do Caminhão

Faz o Sargento Voar

O tilintar foi interrompido por uma mão masculina que atendeu com voz forte:

_ Pronto?!...

_ Toma conta, o moleque descobriu! Espera eu ligar! Não faz besteira! – A voz do Pato soava inconfundível, vinda do outro lado. O homem desligou e disse, ao interfone:

_ Entornou o caldo!...

A resposta veio lacônica:

_ Tá!...

* * * * *

_ “... após o sinal, diga o seu nome e a cidade de onde está falando...”

_ Trânsito interrompido nas estradas!... Passagens bloqueadas!...

_ Previsão?...

_ Aguarde!... Algum carro?...

_ Dois caminhões!...

_ Faça voltar!...

_ E, a madeira?...

_ Desligo!...

* * * * *

_ “... declarou que veio a Serra Dourada atraído por uma nota de jornal, que falava da “Lenda”. Indigenista convicto, decidiu visitar a cidade e conhecer os seus costumes. Travou conhecimento com o prefeito em exercício, o candidato eleito, o Dr. Lourinaldo e outras personalidades de destaque público ou social.”

“Perguntado sobre os antecedentes, declarou que é divorciado, pai de duas filhas e um filho, residentes no Rio de Janeiro. É dono de uma firma construtora, em sociedade com o filho que a gerencia.”

“Perguntado quais as ligações que tem com o Centro de Pesquisas Aeroespaciais, respondeu que tem alguns conhecidos, mas que jamais se envolveu com qualquer tipo de pesquisa do gênero.”

“Perguntado se tem alguma ligação com exploração de minério, respondeu que o curso de Engenharia exige que o estudante se aprofunde na Geologia, mas que nunca se dedicou economicamente ao garimpo de qualquer tipo.”

“Perguntado se nas escavações realizadas nos trabalhos da barragem do Córrego do Ouro notou sinais de algum minério de valor comercial, respondeu que o solo apresenta certo teor de radioatividade e que pesquisas mais sérias poderão revelar alguma jazida nas profundezas do córrego ou de outro local qualquer.”

“Perguntado por que deixou a empresa com o filho para trabalhar como Secretário de Obras em uma prefeitura do interior, respondeu que é ótimo administrador e ao descobrir que em Serra Dourada planejavam construir obras de utilidade pública, com tecnologia e preservação ambiental, respeitando as tradições ecológicas, e sendo indigenista convicto, necessariamente, teria que ser bom ecologista.”

“Perguntado se tem conhecimento de qualquer ato ou propósito de qualquer tipo desonesto nas instalações sob sua responsabilidade, respondeu que, a não ser o atentado sofrido pelo delegado Alberto e o soldado Falcão, nas imediações da barragem do Córrego do Ouro, desde que assumiu a Secretaria, nada de anormal tem ocorrido, ao menos que seja do seu conhecimento, assumindo pessoalmente a responsabilidade por tudo que seja da sua alçada. Acentuou que muito se admira da pergunta elaborada, não atinando com o alcance dos objetivos, já que tem controlado pessoalmente todo o material colocado, mão-de-obra e todo pessoal que ali tem trabalhado.”

“Advertido de que poderá voltar a ser convidado para prestar esclarecimentos, prontificou-se, e declarou que se é para o bom andamento da Justiça, tudo fará para ajudar nos trabalhos de investigação policial que ora se processa.”

* * * * *

Os policiais retornaram do encontro com os índios e cruzaram com o Dr. Charles à entrada da delegacia. Informaram que Alberto era aguardado às quinze horas, desde que comparecesse absolutamente só e se comprometesse a responder algumas perguntas antes de fazer as suas. Além disso, teria de comprometer-se em silenciar o que visse ou ouvisse na conversa. Alberto meditou um pouco e pediu para chamarem o sargento. Conferiu a hora e ao notar que se aproximavam do meio-dia, ligou para Agnelo e orientou que não fosse para casa sem escolta e que dissesse o mesmo para o prefeito. Omitiu o telefonema que dera de manhã, para não alarmar o pai, mas disse que acreditava estarem chegando ao final das investigações, pois só os desesperados apelam para a força bruta. Se a quadrilha estava usando, era porque ele estava bem mais perto do que parecia.

Selecionou um número no catálogo e discou:

_ Alo?! Dona Sônia?! É o Alberto! Sim senhora, tudo bem! Escuta, dona Sônia, estou fazendo um levantamento com o sargento Argolo e sinto ter de incomodar, mas gostaria de saber se a senhora pode me autorizar a fazer uma vistoria nas coisas do meu amigo Euclides. Se não me conformei antes, quanto mais agora, que estou no lugar dele!...

_ ...

_ Eu sei, dona Sônia, mas alguém precisa fazer alguma coisa. Se estou aqui, então sou eu que devo continuar o que ele começou... – Calou-se ao perceber que ela soluçava. Ensaiou algo, mas concluiu que, apesar da delicadeza, tinha conseguido mexer em feridas muito profundas. Balbuciou alguma coisa, mas ouviu-a falar e calou-se.

_ Desculpe, Alberto, mas ainda não me acostumei com a ausência dele. Era amigo de todo mundo, e brincalhão, você sabe!... Ainda vai levar muito tempo, até que eu aceite esta perda tão brutal!... Por favor, Alberto, se você descobrir quem nos arrancou o meu Euclides, só Deus vai poder lhe recompensar, mas não vá se arriscar, meu filho, pois não quero que lhe aconteça o mesmo que aconteceu com ele!...

_ Não se preocupe, dona Sônia, - respondeu emocionado. – Não estou dando nem um passo sozinho. Estou trabalhando de parceria com o sargento Argolo e todos os outros. Eles são muito bons militares!...

_ Isso me tranquiliza um pouco. O que posso fazer pra ajudar?...

_ Se for possível, eu queria que a senhora mostrasse as coisas dele. Pode ser que no material eleitoral ou da delegacia a gente encontre alguma pista que ajude a descobrir o motivo do atentado. – Concluiu, arrancando outro soluço da pobre senhora. Acertou para ir logo que fosse possível, e desligou. Voltou-se para o sargento, que ouvia, e explicou:

_ É a viúva do Euclides! Pedi a ela pra a gente olhar as coisas que ele deixou. Pode ser que a gente ache alguma coisa de interessante pra as investigações! Quem Sabe?!...

_ Ótima ideia! Não é possível que ele tenha descoberto alguma coisa que lhe custou a vida, e não tenha deixado nada registrado! Se bem que na minha frente está um que sabe quem é o chefe e não diz a ninguém!... – Com o olhar interrogativo de Alberto, sorriu:

_ Não se preocupe! Mantenho o mesmo ponto de vista! Só falei por brincadeira!...

_ Opa!... Pensei que ia ter de refazer a programação! Chamei pra a gente conversar sobre a visita na aldeia. Não sei como lidar nesses casos de entendimentos formais, muito menos com um tradicionalismo milenar como é o dos índios. Se eles veem mantendo esse sigilo todo, é porque, na verdade, há alguma coisa de absolutamente significativa por trás disso. Veja que não são todos que sabem do segredo, mas apenas os descendentes do cacique Jutorib, o que traz a alegria, como costumam tratá-lo. O que o senhor tem a me dizer?... Se ao menos eles aceitassem a sua ida, e não a minha!...

_ Nem pense nisso!... Quando um índio mete uma ideia na cabeça, não há ninguém pra modificar!... Ainda mais que é decisão do conselho, e são muitos!...

_ Então vamos ao que devo perguntar pra não falar besteira e entornar o caldo!...

_ Acho que você não precisa de sugestões, mas se pede, acho que o melhor a fazer é ficar calado e seguir o curso indicado por eles mesmos. Quem sabe, não lhe dão as dicas, sem precisar perguntar? O que acho mesmo, é que em momento algum, você deve faltar com a verdade. Se eles têm um segredo secular que pode ser a causa de tudo, então conhecem a verdade bem mais que nós!...

Preso à justa reflexão e atento aos mínimos detalhes da conversa, Alberto meditou por alguns instantes e comentou:

_ É verdade, o senhor tem razão. Não vou me esquecer do conselho. Quer almoçar conosco? Pode surgir alguma ideia que nos oriente!...

_ Ora, filar uma boia de vez em quando, com essa inflação, não faz mal a ninguém. Além disso, preciso sugar algumas informações, e ninguém melhor do que o próprio dono!...

_ Pode ter certeza de que não vou esconder nada, a não ser o nome daquele safado, porque não quero dar a impressão de estar conduzindo raciocínios. Além disso, só liguei pra ele porque eu queria sentir a reação dele. Foi bem melhor do que eu esperava!...

_ A fungueira?!...

_ Sim! A fungueira! – Respondeu misterioso.

Na saída, decidiram que o melhor seria passar logo na casa da viúva. O telefonema lhes aguçara a curiosidade e queriam passar a limpo as suspeitas.

A gentil senhora os recebeu com visíveis mostras de haver chorado muito. Pediram desculpas pela grosseria, mas ela contestou, dizendo que ajudava por prazer. Havia mais de um ano não comia nem dormia direito, e aquele interesse acendia novas luzes.

Vistoriaram a pasta, excluindo os títulos de propriedade e outras coisas pessoais, como documentos e notas fiscais. Alberto sabia o que procurava e concentraram a atenção nos papéis que se referiam à campanha eleitoral, cujos conteúdos eram do conhecimento de Alberto que participara com o pai de muitos debates, embora na época, seus interesses maiores eram a guitarra, a namorada e os estudos. Quando pegou a agenda do amigo assassinado, sentiu uma espécie de arrepio, como se ele estivesse ali ao lado, querendo dizer alguma coisa, e passou a folhear sofregamente, como se soubesse o que procurava. O sargento e a viuva perceberam o estado de excitação do rapaz e passaram a olhá-lo com certa ansiedade, sem fazerem perguntas.

O rapaz verificava as datas, comparava os fatos, e nada encontrava de significativo para a investigação. Desiludido, já se preparava para fechar a agenda, quando um pedaço de papel dobrado lhe chamou a atenção. Abriu-o e leu a minúscula inscrição com a letra que tão bem conhecia: “caminhão VK-5802, Rio de Janeiro”. Como se fosse o maior dos troféus, exibiu o papel ao casal que o olhava interrogativamente. Desconcertado com o erro de se haver excitado na presença da viúva, disse ao sargento:

_ Acho que o meu amigo morreu porque descobriu o roubo desse caminhão! Vamos investigar, sargento? Dona Sônia, muito obrigado! A senhora ajudou muito!...

O sargento Argolo vacilou e perguntou:

_ Como pode ter certeza de que foi roubado?

_ Não sei, sargento! É apenas um palpite, mas quero investigar. O que ele estaria fazendo com a placa de um caminhão do Rio de Janeiro, na agenda, exatamente na página da última anotação?... Ainda não sei de nada, mas depois do almoço, creio que vamos ter muito serviço!... Dona Sônia, por favor, não comente com ninguém sobre este papel. Ele é a única pista que temos, e se for divulgada, talvez nunca mais encontremos outro ponto de partida. Podemos contar com a discrição da senhora?

_ Oh, meu filho, nem precisava recomendar! Meu marido foi assassinado e a vinda de vocês fez renascer uma nova esperança em mim. Só peço que não escondam nada! Eu quero estar presente quando vocês colocarem as mãos naquele criminoso!...

_ Pobre coitada! – pensou – Se ela imaginasse que se trata de uma bem organizada quadrilha que não hesita em matar para alcançar os seus intentos criminosos! – Alteou a voz e convidou o sargento a saírem, antes que outro deslize os denunciasse. Ele não estava disposto a colocar novo remendo. Despediram-se, e se afastaram, comentando o achado:

_ Você acha mesmo que ele foi morto porque descobriu o roubo desse caminhão?

_ Não, sargento! Acho que ele descobriu este caminhão pegando um carregamento de ouro, ou o que quer que seja, e também foi descoberto!... Ele ligou pra o Sr. Afonso e disse que tinha algo de muito importante a contar. Quando ia pra a Prefeitura, foi dado o alarme da sua morte, depois de ter passado o dia nervoso. Aliás, ele não foi descoberto. Acho que essa ligação telefônica foi o que denunciou!...

_ Então, se ele foi morto na praça e só o seu Afonso sabia que ele tinha um segredo, só pode ter sido ele quem atirou no Euclides?!...

_ Não, sargento!... Ele não é o assassino!... Depois que os outros dois morreram, ele foi pedir ajuda ao governador!... Mas não é por isso, nem por ser meu futuro sogro, que descarto essa possibilidade!...

_ Então, se não é ele, quem pode ser?...

_ Que tal verificarmos a origem do caminhão?...

_ Como?...

_ O senhor vai ao Rio de Janeiro!...

_ Mas, vou levar uma semana, ou mais?!...

_ De avião?...

_ Avião?... A passagem é muito cara!...

_ A gente dá um jeito!... Pronto pra viajar?...

_ Quando?...

_ Hoje, ainda!...

_ Se é assim, tudo bem!...

_ Ótimo!...

CAPÍTULO DEZOITO

Segredo, Mas Nem Tanto, e a Morte de um Ser Humano

_ ... e quando eu estava desistindo, achei este papel na última página escrita, que só pode ser do caminhão que leva o contrabando. É placa do Rio, e pra atravessar a fronteira, a quadrilha deve estar muito bem organizada, com notas fiscais e tudo. O sargento vai à capital pegar um avião pra investigar a propriedade do caminhão e o gênero de atividades a que se dedicam. Pra arrumar verba, devemos contar a ele como foi minha indicação. Por favor, quer contar a ele, papai?

Apanhado de surpresa, Agnelo vacilou, mas Alberto começou a falar do piquenique e deixou a palavra com o pai, que narrou o que ouvira do filho, desde o encontro com o governador, a tocata, o jantar, etc., até aquele momento. Não suportava mais ser apenas o confidente vendo o filho prestes a ser assassinado e não poder fazer nada, e desempenhou a tarefa com o maior prazer. Incrédulo, o sargento olhava o narrador, como se ouvisse as passagens de um filme. Não conseguia entender como tantas coisas puderam acontecer sob as suas vistas e ele não ter percebido. Começou então a entender que se um fato acontecido em público se lhe escapara à observação, muito lógico seria também o tráfico de qualquer coisa, os assassinatos e outras coisas mais, às escondidas. Na verdade, eles não estavam preparados para semelhante situação.

Farto de informações, não quis perder tempo. Fosse delegado ou comandante do destacamento, era sua a obrigação zelar pela tranquilidade pública. Ser passado para trás por um fedelho mal saído dos cueiros lhe doía no amor próprio. O pior era que, direta ou indiretamente, sua aparente ou comprovada omissão tinha chegado ao conhecimento do governador. Alberto rastreou o turbilhão de pensamentos que lhe cruzavam a mente, mas não teceu comentário, deixando-o tirar as próprias conclusões.

_ Vou dar ao senhor o telefone de contato, no qual deverá citar apenas meu nome, do contrário será desligado. É um telefone de assuntos altamente confidenciais, que só poderá ser usado em casos de extrema necessidade. Depois que der o código de contato, o senhor deverá dar a sua identificação e o motivo da ligação, que será pedir verba para representação militar. Ela será depositada num banco e mesmo que o expediente esteja encerrado, o senhor poderá sacar.

Incrédulo, o sargento olhou o rapaz de soslaio, como se não acreditasse em uma só palavra. Depois de tantos anos, era a primeira vez que ouvia falar daquele tipo de serviço, e um garoto do interior estava lhe ensinando como pedir dinheiro ao governador, como se fosse para uma colônia de férias. Alberto percebeu a dúvida, e falou:

_ Sargento, não podemos nos dar ao luxo de duvidar uns dos outros num momento como este. Isto é dar trégua ao inimigo que procura uma pequena falha nossa!...

Envergonhado, o militar baixou as vistas e recuperou-se em seguida.

_ Desculpe!...

Sem dar importância, Alberto perguntou:

_ Preparado pra viajar?...

_ Sim!... Preparado!... Vamos à luta!...

_ Ótimo!... Qual o carro que vai levar?...

_ O gol! É mais rápido!...

_ Vai levar alguém?

_ Não! A distância não é longa e você vai precisar de todos aqui!...

_ Mas vou precisar também do carro!...

_ Então levo o Nivaldo, e telefono!...

_ Tá bom! Liga pra o meu pai, e diz que é um fornecedor de laboratório. A volta pode ser de ônibus, apesar de que sua ausência fará falta nos nossos trabalhos, mas neste caso não podemos mandar mais ninguém. Se há quem possa fazer a investigação, mas não podemos dar o número do telefone, que precisa ser guardado em segredo. Só aqui, em Serra Dourada, já somos três a compartilhar.

* * * * *

Sem maiores explicações, o sargento escalou o soldado para acompanhá-lo numa diligência, e passou o comando do pelotão ao cabo Magalhães, por ser o mais antigo. Entraram no chevette e partiram. Na pensão, pegaram algumas coisas necessárias a uma curta viagem, depois de haverem trocado de carro com a dupla que procurava pelo Zé de Ticha, havia mais de seis horas, como se ele tivesse entrado pelo chão a dentro.

Quando o carro dobrou a esquina, Alberto sentiu uma espécie de vazio, como se naquelas poucas horas houvesse encontrado no sargento um sustentáculo, tanto pelo rumo que as coisas estavam tomando quanto pela responsabilidade assumida, além do segredo que guardava de haver descoberto o chefe da quadrilha e não poder compartilhar com ninguém, sem ter provas. Instintivamente, elevou o pensamento ao alto, em prece ao santo guerreiro, atitude que lhe inspirou a segurança de que, se um se fora, mas ficaram ainda mais de vinte em quem poderia confiar cegamente.

Como se a partida do sargento fosse o sinal convencionado para a grande prova de fogo, aquela tarde foi para o rapaz de uma trabalheira tão atarefada que praticamente não lhe deixava tempo nem para pensar no que deveria fazer no minuto seguinte.

Olhou o relógio e viu que ainda faltava mais de uma hora para o encontro com os índios. Rememorava a conversa com o sargento para traçar um roteiro de trabalho, quando ouviu a freada brusca, seguida do bater das portas. Pelo visto, os ocupantes tinham muita pressa. Desligou-se dos pensamentos e voltou a atenção para o que ocorria, na certeza de que enorme tempestade estava prestes a desabar em poucos segundos. A seguir, viu os soldados escalados para prenderem o sabotador, acompanhados dos que tinham ido dar caça ao Zé de Ticha entrarem no gabinete, e o da frente falou atabalhoadamente:

_ Delegado, o cara que a gente procurava a gente não achou, e quando a gente voltou pra começar de novo, o Zé de Ticha tava lá onde a gente começou procurar o cara que atirou no Jerônimo, e aí a gente encontrou os colegas que passavam com o carro e a gente falou pra eles que tinha achado o Zé de Ticha morto na casa velha, e...

_ Morto?!... O Zé de Ticha tá morto? – Perguntou Alberto, saltando da cadeira.

_ Pois é, delegado, quando a gente começou a procurar, ele não tava lá. Depois que a gente perdeu a pista, a gente voltou lá pra começar a procurar e ele tava lá, estirado no chão, como se tivesse dormindo. Quando a gente quis fazer ele levantar, a gente viu que ele tava todo molenga e não queria sentar, quanto mais ficar em pé. Aí, a gente olhou direito e viu que ele tava morto. Quando a gente ia sair pra pedir a perícia, viu uns garotos brincando do lado de fora e a gente perguntou quem tinha entrado na casa e eles disseram que tinham visto três bêbados entrando na casa e só saíram dois. Como estavam bêbados, não ligaram pra ver quem eram, e foi quando os colegas passaram com o carro, quando a gente já vinha na esquina, e a gente pegou eles pra trazer a gente aqui, pra pedir a perícia.

Alberto entendeu o logro de que fora vítima e o outro meliante, ou tinha sido morto ou, como não tinha sido identificado, devia estar recebendo tratamento do ferimento, que não devia ser muito grave, pela quantidade de sangue quase imperceptível que perdera.

Sem questionar, tomou as chaves do carro, e disse:

_ Vamos lá, ver isso!...

Antes de dobrar a esquina, parou na farmácia e verificou que estava em ordem.

_ Não facilita nem um segundo. Eles estão agindo na cara da gente. Venha ver.

Deixou um dos patrulheiros na farmácia e levou o que estava de guarda, e disse:

_ Ontem à noite, um cara jogou gasolina embaixo da porta da farmácia, o Jerônimo percebeu a tempo e foi alvejado, mas escapou por pouco. Revidou e o feriu, mas o bandido entrou aqui e atirou mais uma vez, desaparecendo na escuridão. Mais tarde, veio o Zé de Ticha com um fósforo, como se fosse acender um cigarro, e por pouco não concluiu o que o outro tinha começado. Hoje, os que estiveram com você no plantão seguiram as marcas de sangue e os que pernoitaram na casa do prefeito foram em busca do Zé de Ticha. As marcas de sangue desapareceram e o Zé de Ticha também. Quando os seus companheiros voltaram aqui, em busca de novas pistas, encontraram o Zé de Ticha que, segundo alguns garotos, entraram três bêbados e saíram dois, mas qualquer idiota pode entender que na verdade, entrou um dopado e dois assassinos que fingiam. Aqui, como podem ver, foi o bastante dar uma pedrada e depois deitar com a cabeça sobre a ponta que o atingira, simulando muito bem a queda. Agora, nosso grande problema é saber quem eram os outros dois supostos bêbados, ou seja, voltamos à estaca zero. Temos ainda um trunfo nas mãos, mas é o mais difícil que se possa imaginar. Vão buscar o escrivão pra fazer o levantamento cadavérico, e tragam também o Dr. Odorico, pra expedir o atestado de óbito. Este infeliz não nos poderá mais ser útil!...

_ E, ainda fala que este assassino é infeliz, delegado?...

_ Era um ser humano, não era? – Perguntou Alberto, colocando um ponto final na discussão. Retornou à farmácia até a chegada dos outros, o que demorou pouco tempo.

O levantamento cadavérico constatou que o meliante havia ingerido tão alta dose de bebida que morrera da pedrada, como poderia ter morrido de coma. Alberto deduziu que ele tinha contado que fracassara e lhe deram falsa guarida, empurrando um litro de cachaça nas mãos até que secasse, e o quanto mais foi preciso para que perdesse a consciência. O resto foi mais fácil do que tirar o pirulito de um bebê.

Findas as tramitações, ordenou que fosse providenciado o sepultamento e deu o caso Zé de Ticha por encerrado, ao menos por enquanto. Se os garotos não os puderam identificar, não seria ele a perder tempo em procurar inutilmente. Havia muita coisa mais importante em jogo, e ele tinha urgência em resolver.

CAPÍTULO DEZENOVE

Inquérito No Conselho dos Anciões

(Fonte de referências: Ubirajara, de José de Alencar)

Pediu aos cabos que preparassem as escalas de serviço noturno, e explicou que o sargento ficaria ausente por um ou dois dias, em missão especial. Faltavam dez minutos e os anciões deviam estar reunidos. Pegou o chevette e partiu célere, chegando no momento em que o carbeto se reunia sob a enorme castanheira, local onde o cacique comandava as reuniões e, por ironia do destino, repousara a cabeça para o sono eterno.

Saltou do carro a certa distância e, a passos lentos, encaminhou-se para o grupo de índios. Fez uma reverência à moda dos lutadores orientais. Permaneceu em silêncio e aguardou as instruções dos moacaras, as quais não se fizeram esperar.

_ Bem-vindo é o homem branco ao campo do repouso eterno do cacique Jutorib, o que traz a alegria, e que com seu instrumento de som maravilhoso alegra as festas que recordam a tragédia que dizimou nosso povo, por culpa de um fanático aventureiro que pretendeu ultrajar uma das mais sagradas tradições, que é o casamento.

Alberto percebeu o tom de censura na mensagem de boas-vindas, mas preferiu desculpar-se, e disse:

_ Muitas foram as tarefas que me envolveram neste dia e por isto não tive tempo de chegar mais cedo para atender ao vosso convite.

_ O homem branco é pontual nos seus compromissos. Apesar de ser ainda jovem guerreiro e dedicar a vida mais aos divertimentos, tem uma longa estrada que o ensinará a separar a diversão do trabalho, colocando, no entanto, a alegria no labor.

O rapaz captou as sutilezas psicológicas a que o submetiam, curvou-se, solene, e retrucou, impostando respeitosa gravidade na voz:

_ Muito tempo se passou desde os lamentáveis episódios que dizimaram o vosso povo, que só queria paz e prosperidade. Muito tempo também antecedeu aqueles dias, e perde-se na noite do tempo a época em que esta frondosa castanheira não passava de um frágil arbusto, testemunha muda de todas as glórias e desgraças que neste local ocorreram.

_ Grande é a sabedoria de Tupã que iluminou o espírito do jovem homem branco. Grande é a sabedoria de Tupã, que nos ilumina a convidar o jovem homem branco a trocar a fumaça da hospitalidade.

_ Grande é a satisfação que me envolve de participar desta generosa acolhida, muito embora jamais tenha experimentado o sabor do fumo, mas estarei à altura da vossa honrosa hospitalidade. – Aproximou-se do morubixaba que lhe oferecia o cachimbo.

Como nunca houvera fumado, além do horror que sentia, preparou-se para o que viesse, pois não sabia o conteúdo da mistura, mas deduziu que as ervas deveriam ser das mais fortes. Da primeira vez, apesar de se sentir observado, inspirou lentamente, para em seguida experimentar o sabor do tabaco, conseguindo valentemente, superar a repulsa, ato que lhe valeu a aprovação dos abarés. Daí, foi bastante repetir a técnica, que não diferiu do ar solene que davam os moacaras.

Terminada a seção, o morubixaba olhou em volta e disse:

_ Homem branco mandou prender Moacir para buscar segredo de Jutorib, o que traz a alegria. O que homem branco deseja?

_ Muitos foram os crimes ocorrido na nossa cidade e muitos foram os delegados que abandonaram o cargo, sem aparente motivo justo!...

_ Homem branco deve saber que povo índio vive em paz e não deseja se envolver com problemas fora da Reserva!...

_ Sou delegado, indicado pelo governador e tenho autoridade para tomar a atitude que for necessária, desde que seja dentro da lei pra resolver este caso, mas prefiro agir de modo que todos continuem gozando de respeito e integridade nas suas dignidades!...

_ O que homem branco pensa fazer para saber segredo?

_ A verdade! Os irmãos devem ter o bom senso de ajudar nas investigações. Muitos já morreram e outros estão sendo ameaçados, inclusive o prefeito, meu pai e eu próprio!...

Um murmúrio percorreu os abarés que se consultavam, e o cacique falou:

_ Que o homem branco faça as suas perguntas para discussão!...

_ Primeira: por que nossa cidade se chama Serra Dourada? Segunda: por que o nome do rio é Córrego do Ouro? Terceira: qual o segredo do cacique Jutorib, o que traz a alegria? Quarta: por que esse segredo vem sendo guardado por tanto tempo? Quinta: que prejuízos poderão vir da revelação? Sexta: a revelação não trará benefícios? Apenas um comentário: se há alguma jazida mineral no nosso subsolo e esta é a causa do segredo, na Reserva existem estudantes que pensam no vestibular e sabem que existem dezenas de satélites rastreando o planeta, e os americanos e russos sabem mais do que nós onde estão as nossas riquezas!...

Novo murmúrio, e o cacique levantou-se, declarando que entrariam em conferência e responderiam em uma hora. Se o delegado desejasse aguardar ou voltar depois, estaria com a liberdade de escolha. Sabendo que de nada adiantaria discutir, Alberto levantou-se, agradeceu a gentileza e comprometeu-se a voltar às dezesseis e trinta, mas regressaria com escolta de dois policiais, os quais ficariam à distância que eles determinassem. A noite se aproximava e ele estava ameaçado de morte. Condescendentes, os indígenas assentiram e Alberto despediu-se com nova mesura.

CAPÍTULO VINTE

BOITATÁ Faz Prisioneiro e ET’s Tapam Buraco Com Totem

Alberto verificou o pessoal disponível, dispensou os de folga e escalou a escolta para voltar à Reserva.

Pediu que tentassem achar o ferido, mantendo as bocas fechadas e olhos e ouvidos abertos. Os feridos nas pernas ou nas costas deveriam ser detidos para averiguação. Ligou para Agnelo, Maristela e sua casa. Pediu à namorada que continuasse tentando arrancar do pai a informação sobre o veneno e estaria metade do mistério desvendado. Se ele não se esforçasse para recordar, teriam de dar muitos passos desnecessários, quando o ideal seria interrogar quem tinha criado o boato. Ligou para o gabinete do prefeito e recomendou que não se expusesse a nenhuma janela. Enquanto ele não se lembrasse do boateiro, tentariam eliminar a testemunha como queima de arquivo, e frisou que procurasse lembrar não da pessoa, mas do local e das circunstâncias em que fora dito.

Conferiu o relógio e apressou-se em retornar. Entregou a direção do veículo ao cabo e entrou com o soldado, depois de recomendar que deveriam permanecer à distância, durante a conversa. Aguardaram o convite do carbeto, que não se fez esperar.

Após ser convidado, dirigiu-se sozinho à árvore, quando mais uma vez foi alertado pelo instinto extrassensorial, ou o que quer que fosse. Atirou-se ao solo e gritou para os policiais, pois tinha deixado a arma no carro, apontando para a tênue nuvem de pólvora cinza-azulada. Quando saíam na perseguição, outra nuvem surgiu e o Clemente rodopiou sobre si mesmo qual grotesco boneco, desabando. Impotente, Alberto praguejou e gritou para o cabo apanhar seu revólver no porta-luvas. Rastejaram um de encontro ao outro e, ao receber a arma, traçaram ligeiro plano, disparando alternadamente e dando cobertura um ao outro. Munição não era problema, pois apesar de Alberto usar coldre subaxilar e ter deixado as balas no porta-luvas, as armas calçavam calibre trinta e oito e a cartucheira do cabo estava carregada. Quando haviam disparado quatro cada um, o cabo substituiu a carga do seu revólver e passou o cinto para Alberto, que preferiu usar as últimas.

O mato se movia e, pela localização em que estivera o atirador, estava indo para o rio. Lembrando-se do desaparecimento misterioso do outro agressor, Alberto retirou duas cargas, devolveu o cinto ao cabo e fez noventa graus, visando cortar a dianteira para ao menos ver por onde ele iria entrar, e gritou para o cabo seguir na perseguição.

Parou em um ponto estratégico na margem do rio, de onde poderia dominar a área. Ouviu um galho ser quebrado às suas costas e virou-se rapidamente, abaixando. Percebeu de relance o cano da arma que soltava a leve coluna de fumaça. Atirou e atingiu o agressor em pleno rosto, fazendo-o rodopiar e desmoronar, enquanto o cabo chegava, no instante da queda. Não perderam tempo e o levaram para o carro, onde se encontrava o soldado assistido pelos anciões que faziam emplastros e davam sumo de folhas. Afastaram-se com a chegada deles. Alberto entrou no carro e disse ao cacique:

_ Logo estarei de volta!...

_ Esperaremos!...

* * * * *

O médico atendeu os feridos e informou que o soldado estava fora de perigo, mas o bandido teria de ser submetido a cirurgia imediata, pois corria risco de vida. Despertando para a brutal realidade, implorou:

_ Por favor, doutor, não o deixe morrer! Não quero ter esta morte na consciência!...

Surpreso, o cabo perguntou:

_ Mas não é pra interrogar, que o delegado o quer vivo?...

_ Cabo, eu não sou um policial!... Se estou aqui, não foi porque eu tenha pedido, mas não é por isto que vou querer uma morte na consciência pra o resto da vida!...

_ Mas ele tentou lhe matar!...

_ Ele – disse, apontando o moribundo – é o assassino, não eu!...

Cumprida a tarefa, trocaram o carro para limpar o sangue, escalaram outro soldado e regressaram à castanheira. Os abarés estavam cabisbaixos, sentados na posição de lótus. Pararam o carro no local de antes, Alberto retirou o coldre e dirigiu-se para o carbeto. Permaneceu de pé, julgando que se encontravam em meditação, quando o morubixaba levantou a cabeça, olhou-o fundo nos olhos e disse:

_ Grande guerreiro branco, bem vindo para sempre ao nosso povo! Seu nome ficará guardado pelas gerações, até que a grande castanheira seja apenas afetuosa recordação, corroída pelo tempo!...

Emocionado, Alberto só conseguiu balbuciar:

_ Obrigado!... São muito generosos!...

_ Grande guerreiro branco muito generoso! Grande guerreiro branco muito humilde em tentar ocultar gesto heroico de capturar inimigo! Grande guerreiro branco enxerga onde vistas comuns nem percebem! Grande guerreiro branco tem olhos da grande serpente de fogo, que voa como o raio de Tupã, e passará a ser chamado de Boitatá, até que as névoas do tempo apaguem seu nome da memória, através das gerações. Boitatá convidado a sentar-se quando quiser, ou permanecer de pé, se assim o desejar!...

Trêmulo de emoção pela inesperada honraria recebida, foi dobrando os joelhos até que se viu sentado no círculo de homens que contavam, no mínimo o triplo da sua idade, sendo ele, no entanto o centro das atenções. Sabia que apresar de estarem cabisbaixos, não perdiam um só detalhe dos seus movimentos. Sentiu, porém que se estavam ali, era porque ele tinha convocado. O tempo se escoava e não podiam entrar pela noite apenas pelo seu estado emocional. Respirou fundo, olhou o cacique que aguardava e disse:

_ Boitatá pronto para ouvir!...

O tuxaua deu início à maranduba na sequência em que as perguntas tinham sido feitas, sem enumerar as respostas:

_ Antepassados chamavam este local de Itajubá, que significa Pedra Amarela. Sonho de riquezas fez homem branco mudar para Serra Dourada. Ouro sai do rio e homem branco chamou Córrego Dourado. Índio sonha, índio ama e gosta de pôr do Sol por entre as árvores, com raios dourados, e chamou montanha de Itajubá. Se homem branco pensou haver ouro no pôr do Sol, índio não tem culpa, nem vai enfiar verdade em cabeça de homem branco. Que fique com sua verdade mentirosa. Boitatá é homem justo e não usa língua da serpente venenosa. Boitatá faz segredo de Jutorib, o que traz a alegria e todos na Reserva amigos de Boitatá. Boitatá usa língua de serpente e Reserva vira inferno. Boitatá decide ser irmão ou ser serpente.

Alberto sentiu mais uma vez o peso da decisão, olhou o corpo dos anciões e disse:

_ Nas investigações que fiz tudo indica que aqui embaixo há uma grande riqueza mineral. Só não sei do que se trata. Julguei tratar-se de ouro, pelos nomes da cidade e do córrego, mas estava equivocado. Isto, no entanto não exclui a possibilidade de haver uma jazida que pode ser a causa dos assassinatos que veem ocorrendo. Segredo por segredo, tenho contato direto com o governador que pediu análise do solo, para ver se temos uma jazida. Se for confirmado, esta região passará a ser área de Segurança Nacional e creio até que a Reserva mude de lugar. São apenas suposições, mas aconselho a não duvidarem, pois nisto pode morar a verdade. Minha sensibilidade manda que para seu povo Boitatá jamais perca a solidariedade de irmão. Mas, se este for o segredo de Jutorib, o que traz a alegria, como fica Boitatá, se tiver de levar os criminosos aos tribunais com a prova de que estão contrabandeando esse minério, perante o seu povo, como irmão ou como a serpente que fere e se esconde entre as rochas?

_ Boitatá tem sabedoria e prudência do jabuti que tudo observa e chega primeiro. O conselho ancião entrega o segredo, mas não impõe condições e roga a Tupã que Boitatá faça melhor uso. Com justiça, Boitatá irmão, sem justiça, Boitatá serpente que merece ter esmagada a cabeça com o desprezo dos que o adoraram como Boitatá.

Com um frio na espinha, o rapaz reagiu, ergueu a cabeça e falou:

_ Boitatá pronto para ouvir!...

Dando sequência à maranduba, o morubixaba reiniciou:

_ Jutorib, o que traz a alegria, conheceu filhos de Tupã, que vieram do céu. Filhos de Tupã desceram na grande oca prateada, que voa. Filhos de Tupã rasgaram o seio da mãe Terra e retiraram alimento para o ventre da oca que vomita fogo quando vai para o céu. Filhos de Tupã abriram profundo buraco, lugar sagrado. Só entrarão filhos de Tupã, quando voltarem para buscar alimento para oca voadora. Lugar sagrado protegido por totem sagrado. Filhos de Tupã colocaram, filhos de Tupã retiram totem sagrado.

Alberto ouvia a maranduba, mas tentava desesperadamente superar o turbilhão de emoções que lhe atravessavam o Espírito e comandar o raciocínio que, obstinadamente, teimava em fugir, dando lugar às mais estranhas sensações de incredulidade, irrealidade, vontade de fugir e pegar sua guitarra. Achou irônico pensar na guitarra, quando acabara de ser vítima de assassinato, mandara o agressor para o hospital, conquistara o respeito eterno de um grupo de cépticos sexagenários silvícolas e ouvia a narração de que um ou muitos discos voadores tinham estado séculos antes naquele mesmo local em que se encontrava, com os tripulantes garimpando combustível para suas naves. “Meu Deus, seria possível?... Então, ao invés de estar sobre um veio aurífero, eles estavam sobre uma mina de urânio ou material radioativo? Meu Deus! O Dr. Charles Burnier falara sobre radioatividade, e ele, ou desprezara a alusão ou aguardara inconscientemente até aquele momento. Seria tudo aquilo verdade, ou não passava de uma bem tramada peça do destino, para confundi-lo e atirá-lo no mais profundo dos desesperos psicológicos e emocionais?...” Procurou afastar da mente os raciocínios próprios e concentrar na narrativa do tuxaua, que interrompera ao perceber que ele divagava. A perspicácia do velho cacique em nada ficava a dever aos conhecimentos catedráticos dos melhores psicólogos. Retomou o domínio das emoções depois de haver arrumado o arquivo mental, fitou novamente o cacique e declarou:

_ Boitatá pronto para ouvir!... Obrigado!

Como se Alberto não tivesse ouvido as últimas palavras, o velho cacique repetiu-as, pausadamente, e continuou a maranduba:

_ Filhos de Tupã colocaram totem sagrado, filhos de Tupã retiram totem sagrado. Boitatá é dono de segredo secular. Conselho ancião revelou e deseja que Boitatá faça uso com justiça e sabedoria, e continuam irmãos.

Arriscando uma pergunta delicada, Alberto inquiriu:

_ Posso entrar lá?...

_ Filhos de Tupã colocaram totem sagrado, filhos de Tupã retiram totem sagrado. Quem entrar lá se põe contra filhos de Tupã e não é mais irmão! – Concluiu, baixando a cabeça, como dando por encerrada a entrevista.

Concluiu que toda pergunta seria inconveniente, e, à guisa de despedida, disse:

_ Boitatá fará o que for possível para honrar a confiança e penhora sua vida!...

Afastou-se, lentamente e, num relance, observou que ainda permaneciam sentados e somente se moveriam quando o ruído do automóvel não mais fosse audível.

Na delegacia, discou um número, disse o seu nome e pôs-se a esperar. Segundos depois outra voz atendeu e ele perguntou:

_ É a voz maior?...

_ Sim!... Pode continuar!...

_ Achei uma fazenda que é, literalmente, do outro mundo. Podemos conversar?

_ O mais depressa possível! Terei de viajar?...

_ Não é o momento ideal. Muitas coisas estão acontecendo. Vai chegar pedido de verba alta pra viagem longa e missão importante. Literalmente, do outro mundo!...

_ Acho que entendi!... Se é que entendi!...

_ Voa alto, e entenderá bem melhor!...

_ Meu Deus, é verdade?...

_ Secular e radioativa!...

_ Até breve e boa sorte!...

_ Até! Idem! Vou tentar ir aí!...

Desligou e deu um suspiro. O segredo fora desvendado e repassado, muito embora de maneira incompleta, e a quadrilha que se cuidasse.

_Está vindo chumbo grosso... _ Concluiu.

Recobrou o ânimo, bateu com as mãos sobre a mesa, levantou-se, no impulso e falou em voz alta, como para si mesmo:

_ Pessoal, acho que tenho direito a um bom banho, não é? Que tal um passeio até em casa, agora?... Quem vai comigo?...

Desacostumados de o ouvirem falar daquela maneira, os policiais entreolharam-se e se levantaram, para o acompanharem. Naqueles poucos dias, ele passara no conceito deles de um simples moleque irresponsável para um homem corajoso e de caráter irrepreensível.

_ Vamos passar no hospital, na prefeitura, nas casas do prefeito e do Dr. Silvano. Uma esticadinha de meia a uma hora, não mais!...

CAPÍTULO VINTE E UM

Dr. Charles Duvida, Mas Colabora, Porém Fica Intrigado

A recepcionista informou que o Clemente estava fora de perigo. O atacante, porém, estava na sala de cirurgia. A notícia projetou uma sombra de tristeza no otimismo quase exagerado de minutos antes na fisionomia de Alberto. Foi para a prefeitura, conversou com Agnelo e com o prefeito e convidou o Dr. Charles para uma conversa formal. Recomendou que tivesse cuidado, pois as coisas na barragem não estavam sendo exatamente como ele informara e que nas instalações devia existir alguma conexão clandestina. Todavia, só poderiam verificar sob forte esquema policial. Assim, naquela noite, a casa do engenheiro teria a cobertura de três soldados. Um ficaria de plantão e os outros dois de repouso. Advertiu que não saísse de casa convidado por telefonemas, que era a técnica usada para tirar as pessoas de casa, na madrugada. Céptico, o Dr. Charles olhou-o de soslaio, mas Alberto percebeu, e disse:

_ A vida é do senhor, Dr. Charles. Ponha-a em risco se quiser, mas pra conservá-la, peço que atenda nossa orientação. Ao que me consta, o delegado de Serra Dourada sou eu e é apenas uma questão de acreditar ou duvidar. Só tenho a dizer que o seu Afonso, o meu pai e o Dr. Silvano estão sob rigorosíssimo controle policial e só falta o senhor. Mesmo assim, peço, por favor, um voto de crédito e somente o senhor sairá lucrando.

Impressionado com a firmeza do rapaz, o engenheiro disse:

_ Foi só um momento de dúvida. Não consigo acreditar que alguém tenha sabotado, com o controle que venho exercendo sobre aquelas instalações. Pode contar comigo!...

_ Durante o dia, concordo, mas à noite, muita coisa pode acontecer enquanto a gente dorme, e não pode controlar o que está a muitas centenas de metros de distância...

_ Mas, quem teria acesso tão direto nas instalações?... Aquilo é material pesado... Não há nada que não dependa de muito esforço e de tempo pra qualquer tarefa. Mesmo sem a mínima noção de que tipo de sabotagem estão fazendo, nada me passa pela cabeça. Foi um ano de trabalho duro que estou realizando com o maior zelo. Agora, o senhor me fala de sabotagem, como se fosse tocar a sua guitarra. Vou colaborar pra não atrapalhar a polícia e se for o caso proteger minha vida, mas não estou acreditando numa só palavra...

_ Não tem importância! Eu espero não o voto de crédito, mas a colaboração franca pra poder investigar sem a surpresa de sair correndo, pra dar socorro. Vou deixar apenas uma pergunta pra o senhor meditar. Por que o Euclides foi assassinado?

O Dr. Charles balbuciou alguma coisa, mas não saiu disso. Alberto fingiu não notar e atacou por outro lado.

_ Por que o Epaminondas morreu, com a laranjada? O senhor tem alguma teoria?

_ Eu não sou médico. Se o senhor quer opinião, deve procurar o Dr. Odorico!... Ele deve ter feito a autópsia e o laudo médico revelará o que o senhor está procurando!...

_ A autópsia revelará a causa da morte, mas não a do assassinato, concorda?

Outra vez foi salvo pelo rapaz, que atacou, visando unicamente decepar o topete do engenheiro que o vendo quase adolescente, obstinava-se em depreciar-lhe a inteligência e a capacidade de raciocínio. Apesar do depoimento seguro e a espontaneidade ao mostrar as instalações, não estava de todo inocente de suspeitas. Aproveitou a oportunidade quase única e lançou a pergunta:

_ E o Fulgêncio, Dr. Charles? O senhor tem ideia de quem poderia ter ligado para ele no meio da noite, pra em seguida crivá-lo de balas?

_ Delegado, se eu fosse me preocupar com coisas que não me dizem respeito, não teria tempo pra cuidar do meu serviço. Portanto, se me permite, gostaria que me desse licença. Tenho de encerrar o expediente.

_ Mais uma coisa, Dr. Charles, por favor, aconselho o senhor não se isentar tanto, ou poderá ter uma surpresa muito desagradável!... Reconheço que sua prevenção contra mim é por causa da guitarra, mas faz algum tempo que contra a vontade estou afastado dela, e isto porque me entreguei de corpo e alma a esta maldita tarefa de investigar as mortes de três bons amigos. Pode ter certeza de que estou mais perto da verdade do que o senhor pensa. Quero deixar bem claro que se o senhor não dedicar uma atenção maior a este caso, vai sofrer a maior das decepções. Tenho certeza de que há sabotagem nas suas instalações!... Além disso, se o senhor tomar qualquer iniciativa por conta própria, vai ter que assumir a responsabilidade!... – Interrompeu o discurso, pediu licença um instante, retornou com Agnelo e perguntou:

_ Papai, seja o que for que eu tenha dito, o senhor confirma, mesmo sem saber?

_ Mas claro, filho! Acredite, Dr. Charles que além de o meu filho não mentir, pelo que me contou, pra mim é o suficiente. Faz algum tempo que não trocamos impressões, mas o que sei é o bastante pra aconselhá-lo a acreditar também. Nisto, penhoro minha palavra e minha integridade de homem. Afirmo sem receio que se ele cometeu algum erro nessa tarefa, estou disposto a assumir qualquer responsabilidade!... – O homem afirmou com tal veemência que o engenheiro nada mais teve que fazer do que concordar.

Embora consciente da veracidade das palavras do pai, Alberto não deixou de sentir-se fortemente emocionado com o apoio paterno. Teletransportou-se à infância não muito longínqua, olhou amorosamente o pai e disse:

_ Obrigado, papai!... Suas palavras me fazem muito bem. Eu estava precisando de uma injeção deste tipo, doutor!... – Gracejou, para quebrar a tensão do momento, pouco se importando com a presença do engenheiro, o que achou até oportuno. Só assim ele perceberia a amizade existente entre pai e filho e pensaria duas vezes antes de querer duvidar da sua palavra. Aproveitou a oportunidade para sair e disse, à guisa de despedida:

_ Por favor, Dr. Charles, gostaria que o senhor pensasse no que perguntei e também de trocar algumas palavras com o senhor a respeito, e quem sabe não chegaremos a um denominador comum e descubramos a causa de tantos assassinatos em Itajubá?!...

_ Onde?...

_ Desculpe!... Estava divagando, e devo ter dito algo...

_ Não foi algo! Eu ouvi muito bem Itajubá que quer dizer PEDRA AMARELA, na língua Tupy-Guarany! Onde aprendeu isto?...

_ Ah!... Deve ter sido algum dos índios que me ensinou!... Não sei...

_ Eis algo que realmente me interessa!... Por que algum índio iria lhe ensinar este termo sem algum significado especial? Posso conhecer esse índio? Falar com ele?

_ Vou tentar lembrar quem foi. Não consigo atinar com o que o senhor quis dizer!...

_ Posso saber ao menos se esta foi a causa da pergunta que foi feita hoje, ao se referir a jazida em Serra Dourada?

_ Minhas investigações estão como uma colcha de retalhos que pretendo costurar muito em breve. Alguns se encontram tão solidamente ligados que não há mais como desuni-los. Outros, no entanto, talvez os mais importantes, apresentam-se como pedaços de pau sobre as ondas de um mar revolto com um náufrago tentando reuni-los pra fazer uma jangada. Ele precisa ser um ótimo nadador. Qualquer descuido será causa de grave acidente, pois um dos troncos poderá lhe acertar a cabeça e, adeus, jangada. Acho que ficou claro que ainda não posso tecer comentários mais amplos. O senhor ouviu meu pai dizer que não conhece todos os detalhes. Mas assim como ele deu sua palavra, faço eco, dizendo que se notar uma colaboração espontânea, geral e irrestrita por parte do senhor, não vou ocultar nada. Antes, porém, vou necessitar da certeza de sua inocência absoluta. – Notou o gesto de espanto, mas prosseguiu: Não se preocupe em querer provar tão cedo!... O que descobri, pra mim é suficiente. Só peço que não esqueça do que pedi, e repito: se tentar investigar por conta própria, a responsabilidade será do senhor. A não ser isso, eu assumo o que houver. Posso ficar tranquilo?

O engenheiro sustentou fixamente o olhar do rapaz, deu um leve sorriso, fez um gesto de assentimento com a cabeça e disse:

_ Fica tranquilo, delegado!... – E, em tom de brincadeira: Se o senhor tem o prefeito, o ex-prefeito e o tesoureiro nas mãos, por que não o Secretário de Obras, não é?...

Riram com o desfecho positivo da pequena reunião e dispuseram-se a encerrar o expediente. Antes de sair, Alberto pediu, ainda:

_ Seria interessante o senhor trocar mais impressões com meu pai. Invariavelmente, ele tem ideias que devem ser seguidas. Eu, por exemplo, se pudesse, só viveria pra a guitarra. Ele me falou pra estudar, eu estudo, fala pra trabalhar na roça, eu trabalho, fala pra ajudar na farmácia, eu ajudo, falou pra deixar a delegacia, eu quis deixar, ele já não deixou, pois queria ver se o filho dele era homem, e aqui estou eu. Quer mais?

Rindo mais uma vez, saíram pai e filho da sala e o rapaz advertiu mais uma vez ao genitor que não se arriscasse apesar da escolta, e que não confiasse em ninguém. O chefe da quadrilha, o grande chefão estava e sempre estivera todo o tempo no meio deles.

_ Mas, não é o Dr. Charles, filho? – Perguntou Agnelo, entre confuso e interessado.

_ Se ele é da quadrilha, não passa de fichinha. Acredito mesmo que estão fazendo com ele o que fazem com o seu Afonso. Estão simplesmente usando-os como testas-de-ferro, e ainda por cima, inocentes. Acredito até que o Poderoso Chefão nem daqui é!...

_ Filho, mas isto é monstruoso!...

_ Claro, papai!... Se não fossem os assassinatos dos bons amigos que perdemos e o ridículo a que estão expostos estes homens que só têm interesses comunitários, seria até cômica esta situação. – Concluiu, afastando-se, com a alma amargurada.

CAPÍTULO VINTE E DOIS

Meu Deus, Não Quero Ser Assassino!...

Com a escolta, foi ver Maristela, mas não passou da porta, e prometeu vê-la após o jantar. Marcou com os policiais em sua casa às dezenove e trinta. Queria ver os feridos e se possível, interrogar o prisioneiro. Encontrou o pai e trocaram algumas palavras.

_ E aí, filho, como estão as coisas? Desde ontem que não conversamos!...

Percebeu que ele não tinha conhecimento da emboscada. Agradeceu mentalmente ao soldado por ter sido discreto e narrou o acontecido ao seu modo, omitindo o seu ato de bravura e colocando a narração na primeira pessoa do plural.

Angustiado, Agnelo tentou dizer alguma coisa, mas não encontrou palavras. Olhou-o demoradamente e colocando todo o sentimento de pai amoroso, disse:

_ Deus te abençoe, meu filho!... Tenha muito cuidado. Não vou conseguir viver sem sua mãe e sem você. É muito... – Não pôde continuar e calou-se.

Emocionado com o sofrimento do pai, Alberto falou:

_ Obrigado, papai! Não se preocupe. Está tudo sob controle! Estamos trabalhando em equipe e as pessoas que me preocupam são as que estão distantes do nosso controle direto, que são alvos e não podemos estar em vários lugares ao mesmo tempo!...

Fugiu do interrogatório, indo para o banho. Correu ao quarto e conseguiu ao menos naquele instante quebrar a tensão, pedindo a Deus que não permitisse fatos semelhantes.

No hospital, conversou com o Clemente e viu que a bala havia atravessado o braço esquerdo. Os índios tinham feito um bom trabalho e ele já sentia considerável melhora. Quanto ao prisioneiro, não teve a mesma sorte, pois apesar da cirurgia, encontrava-se em coma. Alberto baixou a cabeça e elevou em voz alta uma sentida prece:

_ Meu bom Deus, por favor, não me deixes levar este crime na consciência. Se de tudo não me for possível estar isento, que seja feita a Vossa Santa Vontade. Mas se me for permitida a glória de ser atendido, que seja feita assim também a vossa Santa Vontade...

Finda a pequena oração, sentiu um leve toque e não precisou olhar para saber que era Maristela que conseguira convencê-lo a deixá-la participar de uma diligência. Levou-a consigo e iniciaram os planos. Fascinada, ela acompanhou com interesse o roteiro.

Alberto deduziu que não teriam contratempos à noite. Os bandidos haviam perdido o fator surpresa e sabiam que eles estavam organizados e enraivecidos por estar um colega no hospital. Fizeram distribuição para o rodízio noturno e o rapaz buscou na memória um ponto que se mostrava obscuro, mas não conseguia atinar com o que poderia ser.

_ O delegado conseguiu interrogar o pistoleiro? – Perguntou o cabo Magalhães.

_ Infelizmente, não, cabo! Ele está em coma. Deus Queira, tenha condições de falar. Só espero que não tenham a idéia de tirá-lo de circulação, como o Zé de Ticha, pra mais uma queima de arquivo. Pra evitar, temos de sacrificar mais dois soldados. Não precisam ficar acordados, mas atentos ao que ocorrer. Vou levar Maristela e cuidar, combinado?

_ Combinado!... Nossa parte está sob controle!...

_ Então, vou namorar um pouquinho, que ninguém é de ferro!... – De mãos dadas, piscou um olho para os colegas, que riram com gosto, fazendo Maristela ruborizar. Ali, ela deixava de ser a filha do prefeito, para ser apenas a namorada do delegado.

Fora, ela o surpreendeu com a pergunta:

_ Alberto, eu posso parecer bobinha, burrinha, mimada, mas tenho meus momentos de reflexão e queria lhe perguntar uma coisa...

_ Diz!... Se eu puder responder...

_ Se aqueles homens estão no hospital, é porque estão doentes. Se o estado daquele requer muitos cuidados é porque é grave. Alberto, o que foi que aconteceu? Foi tiro?

Sem pensar, o rapaz sentiu que não poderia mentir e disse:

_ Nós fomos atacados e o Clemente foi atingido, mas está fora de perigo!...

_ E quem foi que atirou no outro? – Perguntou, de súbito.

_ Mas o que interessa isso, Maristela? Por que quer saber?

_ Alguma coisa me diz que foi você quem atirou!... Logo você, que eu amei desde garotinho, pela ternura e carinho que tem dado!... – Desabafou, com um soluço e duas grossas lágrimas que escorriam pelo rosto. O rapaz tentou consolar e abraçou-a, beijando ternamente, também com um nó apertando a garganta, e disse:

_ Calma, filhinha! É por pouco tempo e teremos esses assassinos atrás das grades!...

_ Mas você não entende que pouco me importa quem sejam ou o que querem? Você não entende que só me interessa que você fique longe disso tudo?

Ele notou a ponta de egoísmo possessivo e suavemente começou a explicar que não era só ele que estava à mercê da quadrilha. Que os seus pais e todos que se atravessassem no caminho poderiam sofrer o mesmo destino. Num gesto de desespero, a moça falou:

_ Mas você não entende? Eu não quero que nada de mal lhe aconteça!...

_ E com o seu pai?... E com o meu pai?... Você não se importa, Maristela?...

_ Eu me importo, sim, mas não é como perder você! Eu amo demais o meu pai, mas com você é diferente. Você entrou na minha vida de tal maneira que sinto como se fosse um pedaço de mim e eu um pedaço de você. É como se mamãe e papai fossem uma laranjeira e eu uma laranja amadurecendo, e você o dono dessa laranja. Sinto que chegou a hora de ser colhida, para com as minhas sementes perpetuar a espécie da que me gerou, entende?... – Encostou a cabeça no peito do rapaz que beijou-lhe e afagou os cabelos.

Não se preocupe, querida! Prometo que, com fé em Deus, o seu sofrimento não vai durar muito, nem vai me acontecer nada. – E, brincando: Nossas sementes produzirão as mais doces laranjas que o Brasil jamais conheceu.

A moça ergueu a cabeça, olhou-o ternamente e disse:

_ Você não tem jeito, mesmo. Eu me acabando por você, e você, aí, brincando!...

Deixou Maristela em casa, voltou à delegacia, ligou para Agnelo informando que dormiria no serviço e foi para o hospital com os soldados que iriam vigiar o prisioneiro. Ouviram gritos lancinantes e a moça da recepção informou que minutos antes chegara ao Pronto Socorro um funcionário da ENGETEC com horríveis cólicas abdominais. Fora medicado, mas parecia que o estado ainda era grave. Alberto trocou impressões com o Dr. Odorico, apesar de fortes, aos poucos, os gritos diminuíam de intensidade. O preso estava sob o efeito da anestesia e em coma. Alberto voltou para a delegacia, intrigado com algo que ele não atinava com quê.

CAPÍTULO VINTE E TRÊS

Navegando em Brancas Nuvens,

Mas Não o Ecologista

O jovem percebeu que estava dando pouca importância aos postos da farmácia e da casa do Dr. Silvano. Telefonou e constatou que não havia anormalidade. Ligou para o Dr. Charles e convidou a visitarem as instalações da barragem e acertaram para a meia-noite, quando os noctívagos fossem poucos. Inspirou fundo, mas lentamente um vazio intenso começou a ocupar-lhe o cérebro. Para encher a mente, depois de tantas emoções, vasculhou a cidade que tão bem conhecia, rua por rua, praça por praça, casa por casa, pessoa por pessoa e em certo momento interrompeu o raciocínio e gritou:

_ Meu Deus!... Como pude me esquecer?... Nem de leve percebi!...

Olhou a hora e viu que ainda era cedo. Discou um número e ajeitou-se na cadeira.

_ Alo, dona Alzira?!... Aqui é Alberto, filho de Agnelo!...

_ Oh, Beto, há quanto tempo não lhe vejo! O que tem feito, meu filho? Deu formiga em casa ou os russos atacaram os americanos? – Brincou a dama, demonstrando grande jovialidade e carinho pelo rapaz.

_ Não, senhora, dona Alzira, eu só queria falar com o Dr. Lourinaldo, ele está?

_ Não, meu filho, o Louro foi pra fazenda e amanhã vai ao Rio e talvez a Brasília. Você sabe da castanheira, não é? Ele requereu subsolo e estão querendo invadir a área.

_ Eu ouvi qualquer coisa a respeito. – Estimulou.

_ Pois é! Quando era delegado de terras, ecologista e preservador histórico como é, achou que um dia o progresso chegaria e tentariam destruir as nossas raízes. Apaixonado pela Lenda e macaco de auditório do cacique Jutorib, o que traz a alegria, quis preservar a integridade do local e requereu subsolo, mas a Prefeitura contratou aquela empresa pra canalizar o rio, exatamente onde estão as raízes da árvore. Indignado com o descaso, ele fez um ofício e pediu pra bloquearem as obras. Eles entraram na Justiça e a coisa está correndo por lá. O escritório é no Rio de Janeiro, mas a ação está em Brasília. Ele vai conversar com os diretores da ENGETEC. Se não conseguir nada, vai a Brasília, direto ao Ministério da Agricultura e quer ver se o IBAMA funciona ou só sabem comer o dinheiro dos impostos. Saber onde mexer, pode ter certeza de que ele sabe. – Afirmou num veemente desabafo que se percebia vir de longos anos adepta aos objetivos ecológicos do marido.

Alberto fez perguntas mas apesar da fluência no falar da gentil senhora, nada notou que denunciasse o esposo no envolvimento com a quadrilha. Tirou, então, duas conclusões provisórias. Ou ele era inocente, ou tão esperto que não vazava informações à tagarela esposa, para que o segredo não fosse compartilhado na feira ou no cabeleireiro.

Satisfeito com a aparente inocência do gentil macróbio, pelo respeito que lhe tinha, desligou e dispôs-se a continuar a varredura. Recordou o Zé de Ticha e associou-o ao que despejara gasolina na farmácia. Caíra no esquecimento, pelo acúmulo de problemas que os envolvera. As buscas tinham sido infrutíferas. Praguejou mentalmente, considerando que os fatos pareciam conspirar contra as investigações. Ele só queria uma única pista que o conduzisse à quadrilha, para chegar ao chefe e enfiá-lo atrás das grades, mas por mais que estruturasse a segurança, por mais que se aproximasse da verdade, quanto mais apertava o cerco, mais as coisas se pareciam com a banana madura apertada na mão, espirrando por entre os dedos. Ele via tudo e não podia fazer nada para impedir. Começou a retroagir no tempo e a intervalos buscava laivos de objetividade que escapavam tão logo ele se voltava para o foco do raciocínio. Prendeu a cabeça com as mãos e sentiu necessidade de ar, de liberdade, de movimento, de... som... Claro!... Necessitava da guitarra para ajudá-lo a raciocinar. Instintivamente, percebeu que os grandes problemas da humanidade tornam-se insolúveis porque os homens sérios cuidam mais do espírito de sistema do que da forma com que eles se apresentam. Levantou-se e disse:

_ Estou com saudade!...

_ Já?... Mas não acabou de levar a namorada em casa, agora mesmo?...

_ A namorada, sim, mas minha saudade não é da namorada. Minha saudade agora é da querida companheira de todas as horas e vou buscar. Quem vai comigo?

Compreendendo que se tratava da guitarra e sabendo como ele tocava, dois policiais se prontificaram em acompanhá-lo. Ligaram para Agnelo, a fim de não o assustarem.

De volta, rodeado pelos colegas, iniciou os acordes que ecoaram na vizinhança. Os vizinhos se assustaram por não estarem acostumados com som de guitarra vindo da delegacia, mas era muito cedo e não interferia no horário de silêncio, o que era absolutamente legal.

Enquanto se deleitavam, Alberto dava asas à imaginação, acabando por confirmar algo que descobrira, mas ainda não tivera tempo ou coragem de admitir, que era raciocinar ao som da querida guitarra.

CAPÍTULO VINTE E QUATRO

Obrigado, Guitarra Querida!...

Retomou o voo interrompido e percebeu que a mente ainda estava embotada pela problemática que se lhe abatera nos últimos dias. Lembrou da conversa com o governador, quando dissera que observar as fisionomias e atitudes das pessoas era como desvendar os incomensuráveis segredos do Universo nas figurinhas dos álbuns colantes. Como tinha sido infantil!... Que bela peça o destino lhe pregara, para que deixasse de ser prepotente. Naquele momento ele não mais repetiria a mesma coisa. Os acontecimentos daquele dia, principalmente depois que se sentiu sozinho sem a proteção do sargento, serviram-lhe de lição para o resto da vida. Finalmente, depois de vinte e dois anos, ele tinha conseguido descobrir uma face da vida que desconhecia, a do trabalho responsável, sem proteção. Uma responsabilidade intransferível que só por ele teria de ser assumida. Havia muitas vidas em jogo e as próprias autoridades da cidade nem de leve tinham conhecimento. Elas próprias eram alvos em potencial... Mais importante ainda era que dessas pessoas, seu pai, seu futuro sogro e a namorada estavam na linha de fogo, além da sua própria, que perdia o significado no torvelinho das emoções, para dedicar-se à proteção das outras. As descobertas, nem de leve poderia confidenciar a quem quer que fosse, sob a pena de ser tachado de louco. No caso de acreditarem, fariam da cidade um antro de curiosos. Para quem desejava preservar o equilíbrio ecológico, um fluxo turístico sem estrutura seria a coisa menos indicada, além da natural exploração do minério. Passeou o olhar nos militares que o assistiam entre extasiados pela canção e admirados pelo controle que ele mantinha nos nervos e conseguir tocar, depois de todas as emoções daquela tarde, até que seus olhos encontraram os de Falcão, que com ele fora vítima da primeira emboscada, à margem do rio. Encarou o soldado e deixou que os dedos se movessem automaticamente nas cordas do instrumento, enquanto o pensamento voava ao local do acontecimento. Em sua mente bailavam as cenas de emboscada com outra que insistentemente se obstinava em invadir-lhe o cérebro. Lutou pela conciliação quando, inesperadamente, estampou-se-lhe a fisionomia do Zé de Ticha com a cabeça sobre a pedra assassina. Saltou da cadeira num ímpeto e exclamou:

_ Meu Deus, isto é demais! – E, pegando o telefone, ligou para o soldado Clemente, no hospital, e perguntou pelo funcionário da ENGETEC que chegara com as cólicas. Ao tomar conhecimento de que parara de gritar, ordenou ao soldado:

_ Cola no pé desse cara. Não deixa ele perceber que você está de olho nele, e chama o Dr. Odorico. Vai ligeiro, que já vamos pra aí!...

Acostumados com a atitude já conhecida de ímpeto momentâneo, os colegas se prepararam para a ação e aguardaram as explicações, que não tardaram:

_ Pessoal, acho que o primeiro suspeito apareceu! Vejam bem, o Falcão e eu sofremos o ataque na beira do rio e o cara sumiu dentro d’água. O Clemente foi ferido quase no mesmo lugar e o cara estava indo pra lá, lembra cabo, que pedi ao senhor para continuar seguindo, enquanto eu ia esperar no lugar do desaparecimento? Agora, o que temos? Um funcionário da ENGETEC que entra no hospital com dores, e não se ouvem mais os gritos. Pode ser apenas coincidência, mas é coincidência demais para o meu gosto. Acho mesmo é que esse cara está lá é para matar o outro. Quem vai comigo?... Alo?!... Olá, Doutor, por favor, tenho um assunto muito delicado e sigiloso. Acho que o rapaz que entrou com cólica, foi assassinar o que me atacou. Por favor, o senhor pode ficar de olho nele por alguns minutos, até que a gente chegue aí?... Obrigado, doutor, logo estaremos chegando. Por favor, não deixa ele perceber nada. Ele é o único suspeito que temos, e não quero perder o fator surpresa!... Até logo mais, doutor!

O Dr. Odorico confirmou, ao menos aparentemente. Logo que os gritos cessaram, a primeira coisa que ele fez foi perguntar pelo ataque que o delegado tinha sofrido e querer saber o leito que o ferido estava. Desconfiado, o médico havia dado um número diferente e Alberto aproveitou para traçar diretrizes. Se fosse da quadrilha, era quase certo que iria tentar eliminar o ferido. Só haviam dois problemas a ser resolvidos, dar corda para ele se trair, sem risco para ninguém e, o mais importante, capturá-lo com vida, quer dizer, não matá-lo nem deixar escapar. De acordo com o médico, o leito estava desocupado, e por isso fizeram montagem com almofadas, soro fisiológico, lençóis e todas as características de um recém-operado, na esperança de que ele se denunciasse o mais cedo possível.

Ligou para o Dr. Charles, informando que chegaria por volta das duas ou três horas. Estava no hospital assistindo o ferido em coma e pretendia interrogá-lo, se acordasse. Distribuiu o pessoal de forma que todos se comunicassem sem serem vistos. Imperioso seria caracterizar a participação do suspeito na quadrilha e sua captura com a mão na massa. Orientou que os enfermeiros agilizassem os medicamentos, para que os corredores ficassem desertos o mais cedo possível. Detalhou o plano de forma que todos entrassem em ação ao menor gesto suspeito, sem denunciar as posições, até o momento de agir.

Um detalhe, porém, intrigava o delegado, se fossem verdadeiras as suspeitas, qual seria a arma a ser usada? De fogo, não seria possível... Não se justificaria um doente com fortes cólicas entrar no hospital armado. Poderia ser de faca, mesmo sendo um risco a correr... Em regiões agrestes, tudo é permitido. Pena, ele não poder vistoriar as coisas do doente, e o trabalho estaria perdido. O jeito seria prevenir para qualquer eventualidade, a menos que... Mas, claro, só poderia ser isso, ele entrava no hospital como doente e depois era só receber a arma pela janela... Como não pensara nisso antes?... Mas ainda havia tempo de sobra. Os movimentos que fizeram no corredor não ultrapassavam os da rotina e não precisavam temer qualquer alarma, se ele estivesse acordado. Colocou dois soldados do lado de fora e instruiu-os a deixarem qualquer pessoa entregar o que trouxesse, pela janela. Quando saísse, eles seguissem até a primeira esquina e dessem voz de prisão. Assim, seriam três, apesar de o primeiro estar tão mal que não aparentava resistir por muito tempo. Estremeceu ligeiramente, mas recuperou-se e orou:

_ Meu Deus, será que vou ser um assassino?...

Mas, as necessidades do momento eram prementes e não lhe permitiam demorar muito tempo na interrogação e conduziu o pensamento de volta às providências imediatas.

CAPÍTULO VINTE E CINCO

Dois Coelhos de Uma Só Cajadada e

o Médico Arranca Lágrimas Do Delegado

Menos de duas horas da tensa expectativa que pareceram séculos, as respirações mal contidas a todo movimento fora do normal, excitavam as supra-renais e aumentavam a sobrecarga de adrenalina nos sistemas nervosos. Era o vento numa janela, um animal pastando, um cachorro atrás de um gato, um casal em busca de intimidades mais discretas, até que as suspeitas se confirmaram. Nenhuma dúvida... Alguém batera discretamente em uma janela, e era indubitavelmente a do quarto em que se encontrava o suspeito. Alguns segundos, e o ruído da janela sendo aberta e fechada dois ou três segundos depois, passos furtivos... A porta do quarto sendo aberta... Passos no corredor... A porta do quarto que o médico indicara sendo aberta e os três rápidos e silenciosos flashes, diferentes da máquina fotográfica, envermelharam o recinto, seguidos do intenso clarão que iluminou o quarto e denunciou o atirador ainda com o rifle apontado para a cama com as almofadas à guisa de moribundo, e a voz firme que ordenou, às suas costas:

_ Largue a arma e levante as mãos!...

Rápido como um raio, o marginal virou-se para a porta e disparou, mas o projétil foi cravar-se na parede do corredor. Prevendo o gesto, Alberto se abaixara e, da cama vizinha, de revólver em punho, Falcão gritou, às costas do assassino:

_ Solta a arma, senão atiro!...

Tarde demais, o bandido percebeu o logro de que fora vítima. Carregou o cenho, olhou para o rapaz com ódio mortal, vacilou, olhou por sobre o ombro e viu a expressão firme do soldado apontando a arma. Voltou-se para a porta e foi novamente surpreendido pelos dois soldados que entraram atrás de Alberto e outro sentado na cama do outro lado, sorridente e também apontando um revólver. Desmoralizado, baixou lentamente as mãos até cair o rifle e ergueu as mãos. Alberto ordenou que se virasse de costas e pegou a arma pelo cano, um moderníssimo rifle munido de silenciador, e perguntou:

_ Foi com este que você matou Euclides e Fulgêncio?

_ Não fui eu!... – Foi a resposta lacônica e seca.

Dono da situação, Alberto ordenou que o algemassem.

_ Vou ver se os dois lá de fora estão precisando de ajuda!...

O bandido soltou um palavrão que enrubesceria um rebanho de vigários pedófilos.

Sem se importar, o delegado deu a volta ao prédio e encontrou os soldados no posto em que os deixara. Eles apontaram um vulto sob um arbusto próximo de uma janela. Entendeu que o vagabundo esperava a devolução do rifle, e falou em voz alta:

_ O de lá de dentro já está preso!... Agora, esse daí!...

Como impulsionado, o bandido despregou-se em tal carreira que surpreendeu os soldados, mas não Alberto que esperava algo semelhante, e disse em tom de mofa:

_ Vamos ver quem corre mais?... Quero ver pra onde esse moço vai levar a gente!... – E desatou a correr, com os soldados no seu encalço.

Bom atleta, dos melhores no futebol de Serra Dourada, entrava e saía das ruas, sem perder de vista o fugitivo. O objetivo era descobrir o esconderijo, e mantinha distância. Sabia que seria o rio, mas queria ter certeza. A preocupação era a resistência dos soldados que tinham pouco menos que o dobro da sua idade. Comprovou que estavam indo para o rio, acelerou a corrida deixando de ouvir a respiração ofegante dos militares, indicando que ficavam para trás. Alcançou o meliante e gritou:

_ Pare, senão, atiro!...

Como se despregara na carreira, o vagabundo parou, ergueu os braços tão alto que se poderia supor tentava segurar as pontas da lua de quarto-crescente. Ele não esperava ser obedecido tão prontamente e deu-lhe um encontrão nas costas, fazendo-o cair de quatro. Aproveitou a proximidade e a visível covardia do safado, e algemou-o. Encontraram os soldados, que faltavam poucos centímetros para dois palmos de língua, do lado de fora.

_ Descansem um pouco, que nós vamos andando!...

Com visíveis mostras de cansaço, o prisioneiro implorou:

_ Deixa eu descansar um pouquinho, também?!...

_ Vocês não merecem isso, não, mas, vá lá!... Sente-se!...

_ Obrigado, delegado!...

_ Não agradeça, só não sou como vocês. É só o tempo de o pessoal descansar. Vá preparando sua história, que temos muito o que conversar. O outro também está preso!

O bandido olhou o delegado com ar súplice, quase chorando, atitude que o alarmou. Estavam lidando com assassinos da pior espécie que não vacilavam em matar, desde que fosse para salvaguardar seus instintos criminosos. Assim pensando, ordenou, categórico:

_ Sinto muito, mas depois vocês descansam!... Temos de andar depressa!...

Disciplinados, os soldados levantaram-se, prontos para a caminhada.

* * * * *

Estavam saindo do hospital, quando o Dr. Odorico perguntou:

_ Então, rapazes, bem sucedidos?

_ Aí está, Doutor, este moço entrou aqui como doente, gritou, assustou todo mundo, pra depois receber um rifle pela janela, pra assassinar o colega. O que ele ainda não sabe é que atirou num monte de travesseiros!...

O bandido soltou mais um palavrão e o médico disse, em tom de mofa:

_ Filho, o hospital é lugar de salvar vidas, não de tirar!...

(A reação do bandido tornou-se impublicável...)

* * * * *

Alberto ligou para recomendar ao Dr. Odorico vigilância absoluta sobre o ferido. Contagiado pelo clima de agitação, o médico brincou:

_ Só se for pra evitar outro ataque como o de agora, mas não creio que este tenha mais importância, pois o outro agora passou a ser mais importante!... Este daqui, pode ficar tranqüilo, que não vai se mover da cama em menos de uma semana!...

_ Há risco de vida pra ele, doutor?...

_ Fica sossegado que vaso ruim não se quebra fácil, e fizemos um ótimo remendo no seu protegido. Só não entendo por que tanto interesse num cara tão feio?!...

_ Não brinca, Doutor!... Estou apavorado com a idéia de me tornar um assassino!...

_ Não esquenta! Se ele morrer, foi culpa do médico que costurou mal costurado!...

_ Isto não me isenta, Doutor!...

_ Alberto, chegou a hora de falar sério! Você já analisou a quantidade de vezes que nós, médicos, somos acusados e responsabilizados pelas mortes de pacientes? Já pensou que se fôssemos sentar, remoendo a culpa, não faríamos mais nada? Quantas pessoas morrem nas mesas de operações dos grandes hospitais? Pensa que os médicos entram nas salas de cirurgias como computadores, só para cortar e costurar? Não, meu filho! Nós não somos máquinas. Nós somos homens que sentimos, amamos e vibramos quando um paciente dá sinal de vida, depois de o havermos desenganado, e sofremos, quando morre um paciente. Quantas mães já não se foram, deixando os filhinhos que acabaram de nascer, nas nossas mãos, sem ao menos os terem visto? Quantos pais de família doentes ou acidentados têm dado entrada, rodeados das esposas e filhos, desesperados, implorando de joelhos: Doutor, pelo amor de Deus, salve o meu marido ou o meu pai!, mas que, meia hora depois, quando fecham os olhos, estes mesmos que rogavam ajuda se voltam contra nós, nos tachando de assassinos? Pensa você que não sentimos os olhares carregados de ódio, cientes de que nos matariam, se pudessem? Pensa que não tememos até uma bala, quando nos deparamos com um destes nos corredores solitários, ou na rua, ou na porta de casa, ou até mesmo na praia ou na igreja? Pobre amigo!... Só Deus sabe o que sentimos!... Mas não pense que estou me lamentando. Pense apenas que se digo isto é para que você volte os seus olhos para o seu trabalho e esqueça que um dia apertou o gatilho contra um homem. Se você fez isto, não foi para obedecer ao tradicional espírito de sistema da mecânica legítima defesa. Você atirou contra um assassino que tinha atirado contra você e ferido um soldado. Você está na hora de assumir a sua responsabilidade, como homem. Ou você pensa que está no piquenique, tocando a sua guitarra? Não pense que sou contra ela... Saiba que nos dias de festa, sempre que tenho uma folga, vou lá só pra ouvir você tocar, mas não é hora de falarmos de assassinos, é hora de falarmos da luta de vida ou de morte... Você tem a responsabilidade da guarda da sociedade serra-douradense em suas mãos, e tem que dar conta, como um homem, como tem feito até agora, e não se deixar abater por um fato que aconteceu, não por culpa sua, mas dele próprio, que tem a maldade no coração. Você jamais pegaria numa arma, se não fosse a necessidade de agir como homem em defesa dos seus semelhantes. Lave a sua alma, meu filho!... Não se deixe abater por isso e verá mais tarde que é apenas uma molécula de H2O no infinito oceano da existência!... Como dizia o grande Vinícius de Moraes à sua filha: Vá fundo, meu filho!... A estrada é longa e difícil, mas com perseverança, torna-se curta e até divertida!...

Os militares aguardavam as instruções, enquanto Alberto, com os olhos rasos de lágrimas a escorrerem pelas faces, disse:

_ Obrigado, Doutor!... Desculpe, mas é que sou um molenga e preciso aprender a assumir minhas broncas. Muito obrigado, Doutor, nem sei o que dizer depois do que acabo de ouvir. Só sei que tenho de seguir palavra por palavra!... Ah, uma coisa que o senhor não sabe, é que conseguimos capturar o bandido que levou a arma para o atirador!... – Disse, a guisa de informação, para se libertar da situação delicada em que ficara diante dos militares, como um mariquinhas choramingas. Concluiu que o médico não tinha muito tempo disponível, agradeceu mais uma vez e desligou. Para justificar as lágrimas, narrou aos companheiros o que ouvira do Dr. Odorico, sem imaginar que nos seus espíritos plantara-se a certeza de que se ele chorava ao telefone, o assunto devia ser da maior gravidade. Estava mais do que provado que molenga ele não demonstrara ser naqueles poucos dias. Recompôs-se, e notou nas suas fisionomias a solidariedade, e pôs-se mais à vontade. Respirou fundo, foi ao banheiro, fez micção, lavou o rosto e voltou.

_ Bem, pessoal, acabaram-se as férias... É hora de trabalhar. Que tal lavrarmos um flagrantezinho desses anjos que caíram do céu, por descuido? Quem sabe, eles não têm algumas coisinhas a dizer? Vamos buscar o escrivão que deve estar assistindo um filmezinho policial ou no maior dos roncos. Seja como for, acabou a moleza!... Agora, mais do que nunca, devemos ter o máximo de cuidado. Os patifes certamente irão tentar apagar as testemunhas ou eliminar-nos. Mas, como disso o Dr. Odorico, temos a guarda da sociedade serra-douradense e temos de dar conta e não vamos fraquejar no momento decisivo. Bom!... Quem vai buscar o Américo?

_ Eu posso ir!... – Disse o cabo Magalhães.

_ Eu também!... – Disse Falcão, levantando-se.

_ Então, mãos à obra, que o tempo não espera!...

Quando entravam no chevete, o gol parou à retaguarda, conduzido pelo soldado que tinha levado o sargento. Alberto ordenou que fosse descansar.

_ As investigações deviam ser em sigilo. Nós fomos ameaçados de morte pelo Pato e a farmácia de ser incendiada, como vocês testemunharam. Agora, que os bandidos estão desmoralizados, chegou o momento de contar mais. O sargento foi ao Rio investigar uma placa de caminhão que encontramos na agenda do Euclides. Acreditamos que ele deve ter descoberto alguma forma de contrabando, e por isso foi assassinado, mas só vamos saber depois que voltar ou telefonar. Se alguém falar com ele, pode contar, pra ele agilizar. Mas vamos ao que interessa... Tragam o atirador, que quero ver uma coisa!...

Alberto mandou o bandido tirar a roupa e os soldados ficaram surpresos mas nada disseram. Viram quando ele se levantou e examinou o corpo do homem, nu, entre eles. Mandou que se vestisse e o trocassem pelo outro. Repetiu a ordem e quando tirou as calças, viram o curativo na perna. Vacilou quando interrogado, mas no momento em que ele ameaçou arrancar o curativo, falou mais alto a covardia e disse ter sido alvejado por um soldado. Alberto analisou a resposta e perguntou:

_ Então, foi você quem jogou gasolina na farmácia do meu pai?

_ Eu fui obrigado!...

Jerônimo, que descobrira a sabotagem, perguntou:

_ Então foi você, seu safado, que tentou me matar?!... – Deu um passo, mas foi contido pelos colegas.

O meliante aproveitou a pequena confusão e ensaiou dois passos para a porta. Mal se mexeu, porém, uma dúzia de mãos lhe caíram em cima, e um deles disse:

_ Tu é besta, vagabundo?... Tá pensando que a gente vai deixar você sair de fininho e depois cantar de galo lá fora? Tu vai cantar, mas é de pintinho, aqui dentro, tá bom?...

Alberto retomou a palavra e advertiu:

_ Daqui a pouco, o escrivão vai chegar e eu sugiro que você conte uma história bem convincente. Tem uns parentes do Euclides, outros do Epaminondas e outros do Fulgêncio que só estão querendo saber quem foi que matou os três. Se eles descobrirem que foi você, não dou nem uma fichinha furada pela sua vida!...

Apavorado, o bandido olhou para Alberto e implorou:

_ Por favor, delegado, não deixa me pegarem, não. Não fui eu quem atirou neles!...

_ Você se esquece que se não contar a história bem direitinho, não vai também ter tempo de dizer a eles que não foi você?... E mesmo que tenha, com a raiva que estão não vão acreditar em nenhuma palavra que você disser. Em resumo, as únicas pessoas em condições de acreditar em você somos nós. É pegar ou largar.

_ Mas eles vão me matar!...

_ Eles, quem?...

_ Sei lá!... Os da quadrilha!... Os parentes!... Não sei!...

_ Agora é tarde pra lamentações!... O momento é decisivo e eu já sei quem é o chefe da quadrilha, o chefão, se você quer saber!... Já até falei com ele sobre isso!...

O prisioneiro e alguns soldados arregalaram os olhos, incrédulos.

_ O delegado sabe quem é o chefão?... E por que ainda não meteu ele na cadeia?...

_ Por falta das provas que esta criança vai fornecer. Qualquer coisa que disser, pra mim será o suficiente. Ele confessou que jogou gasolina na farmácia e atirou no Jerônimo. Estas confissões são suficientes pra ele ficar atrás das grades, mas é muito pouco pra pegar todos. Por isto, temos de começar com o depoimento desse aí!... – Indicou o prisioneiro com o queixo, fazendo-o estremecer.

CAPÍTULO VINTE E SEIS

Reunião de Cúpula e Uma Cervejinha,

Que Ninguém é de Ferro

Alberto não quis tomar para si só a responsabilidade de fazer justiça e decidiu ligar para o prefeito, o ex-prefeito, seu pai e o Dr. Charles. Lamentou que o Dr. Lourinaldo e o sargento estivessem ausentes, para desbaratarem a quadrilha. Supunha que não devia ser tão grande quanto pudesse parecer. Se assim fosse, qualquer informação teria sido vazada, considerando que o segredo do cacique varara os séculos apenas com quem de direito. Um detalhe porém parecia iminente, o atirador demonstrava ser do tipo durão e não iria querer soltar a língua tão facilmente, não tanto por fidelidade, mas por ódio à polícia e revolta por ter sido preso, na sua brutalidade animalesca, com um truque tão simples.

Pensou que não estava dando atenção para outras autoridades, como o juiz, o padre e o promotor, pessoas de significativa influência. Era a primeira vez que tinha contato direto com membros da quadrilha e apressou-se em convidá-los. Sabia que se sentiriam gratificados e não perdeu tempo em ligar para o magistrado e o promotor. Designou o cabo Vanildo e um soldado para apanhá-los e convidar o vigário. Mobilizou as viaturas e mandou que fossem advertir os militares que a partir daquele momento deviam redobrar a vigilância. A guerra estava declarada e os prisioneiros não passavam de garotos de recado, de fichinhas. O cabeça estava muito bem camuflado e transitava livremente no meio deles. Até que se provasse a culpabilidade, qualquer pessoa deveria estar na primeira lista de suspeitos, sem descartar a menor possibilidade.

Com tal atitude, ele tinha em mente a concretização de algumas providências que sabia de inestimável valor, como fossem, respeitar as tradições do piquenique, isentar-se da responsabilidade pessoal de fazer justiça, divulgar os atos da quadrilha para barrar-lhe os passos, e, caso comprovadas as suspeitas, não ficar em maus lençóis com o conselho ancião. Ele considerava a possibilidade de ser verdadeiro o boato de terem embriagado um índio para arrancar o segredo. Lamentou o fato de poder ser verdade, pois o descendente que se tivesse deixado levar por tão indigno expediente iria passar por dura inquirição, e ele não poderia fazer nada para amenizar a pena. O vil suborno poderia ter sido a causa daqueles hediondos crimes que durante um ano assombraram a sua querida cidade.

Tão absorto estava que não notou a chegada do carro oficial com o pai e o prefeito. Entraram precipitadamente, trazendo-o à realidade e perguntaram, atabalhoadamente:

_ Filho, o que aconteceu? Você quase me mata do coração!... Será que vou aguentar o fim de toda essa confusão?...

_ Alberto, como foi que você descobriu esses bandidos, a esta hora da madrugada? Andou se metendo no meio deles ou alguém veio denunciar?...

O rapaz olhou-os entre surpreso e divertido e fez um gesto com ambas as mãos:

_ Calma, senhores, vamos nos sentar e tomar um cafezinho, enquanto conversamos, pra eu responder as perguntas! Pra começar, não temos cafezinho, porque a verba anda meio curta, mas podemos fazer de conta. Isto acertado, vamos aos fatos. Hoje, sofremos um ataque na margem do rio e conseguimos prender o atacante. Mais tarde, supusemos que poderiam querer tirá-lo de circulação e montamos um esquema de segurança dentro do hospital e não deu outra. Entrou um cara atacado de cólicas que não nos enganou e ficamos alerta até que chegou o comparsa com um moderníssimo rifle. Entrou no quarto, deu três tiros na cama cheia de almofadas e o prendemos. O outro que aguardava a arma do lado de fora, veio de contrapeso. E isto é tudo!... Telefonamos pra as autoridades e vamos interrogá-los. O que estava fora está ferido na perna e confessou que foi baleado por um soldado. Ora, nenhum soldado de Serra Dourada anda atirando à toa. O único que sabemos ter atirado foi o Jerônimo, que estava guardando a farmácia naquela noite. Daí, o carinha que está aí é o mesmo que jogou gasolina na farmácia!...

Os homens simplesmente não acreditavam no que ouviam. Olhavam o rapaz como se vissem um fantasma. Em um ano, sete bons homens, considerados durões houveram deixado o cargo sem nada descobrirem e ele, em uns poucos dias ameaçava desbaratar a quadrilha que mostrava ser muito bem organizada. Prosseguiu o relato e informou:

_ Quanto ao outro, nada podemos dizer!... Ele faz questão de dificultar-nos a tarefa, mas como o molenga é língua solta e covarde, acho que não teremos dificuldade em arrancar a verdade. Resta mantê-lo em vigilância, para evitar que ele seja riscado do mapa. – Pediu licença e saiu para a rua. Pouco depois retornou e chamou o cabo Magalhães.

_ Por favor, cabo, dá uma olhada atrás da delegacia! Alguém pode trazer outra arma pra o durão tirar o outro deste mundo!...

Agnelo e Afonso trocaram um olhar, que não passou despercebido ao delegado, que por sua vez deu um leve sorriso, mais interior do que externo. Percebeu que estava sendo tomado por um certo espírito de superioridade, o que de algum modo fez-lhe bem ao ego. Não sabia se seria benéfico ou maléfico, mas a ele se entregou sem reservas, confiando no seu tradicional espírito de justiça. Humilde como sempre, inconscientemente, entregou-se a uma doce oração, implorando a Deus que aquele transe de momento criasse nele um mundo interior melhor do que ele tinha sido até ali. Refletiu que na sua frente estavam os dois homens a quem mais respeitara na infância e na adolescência. Recordou o namoro com Maristela, quando era uma garotinha, às tardes com o pai invariavelmente passavam na farmácia. Ele, de banho tomado, com o pai, e os quatro se sentavam na sorveteria em frente. Os homens tomavam uma ou duas cervejas e ele com ela tomavam refrigerantes ou sorvetes. Via de regra, falavam de negócios, fazendas, gado, o preço do feijão e da carne, os juros, coisas que absorveu desde a mais tenra idade, mas sobretudo, de política. Quando não se candidatavam a vereadores, apoiavam sempre os mesmos candidatos e nunca discordavam um do outro. Somavam-se, como ele, ao governador, à guitarra e ao violão. Meu Deus!... Seria possível que existissem almas gêmeas?... Se não, por que os homens à sua frente sempre tinham sido irmãos, apesar de nem parentes terem sido, mas apenas conhecidos, antes de convergirem para os mesmos objetivos políticos e empresariais? Por que ele simpatizara com o governador, antes de se defrontarem com os instrumentos? Porque o destino fizera com que Maristela e ele nascessem naqueles lares convergentes e os levou a tomarem refrigerantes ou sorvetes, juntos, enquanto os pais falavam de negócios? Por que não trocara muitas palavras com o governador, mas apenas acertara detalhes e aparara arestas? Por que, enfim, seus pais, via de regra, naquelas tardes de quinze, dezoito anos atrás, perdera a conta, obstinavam-se em dizer que iriam fazer o casamento deles dois para trazerem muitos netos para criarem?...Ele se acostumara à idéia e afagava ternamente a mão da garota, também correspondido por ela. Meu Deus, seria possível que na verdade existissem as almas gêmeas? Oh, Deus! Quantas perguntas! Quanta incerteza, quando alguns segundos antes se sentira tão superior. Ele sabia quanto tinham lutado para manterem a digna integridade dos homens probos do lar e da comunidade. Como podia ele, um fedelho mal saído dos cueiros, ter a pretensão de superá-los? Seria muita arrogância de sua parte!... Se ali estava, não tinha sido por sua escolha, mas do governador... Não, ele não entrara pela janela, fora escolhido a ponta de dedo, para salvar uma situação, quando todos estavam entregues ao desespero. Trabalhara duramente com o cérebro e suara muito a camisa, até aquele desfecho intermediário. Mas, exatamente ali, estava o problema: ele tinha consigo três homens que eram as chaves das portas largas do futuro e nada sabia das fechaduras. Sabia o conteúdo dos salões do outro lado, mas não sabia como abrir as portas... Sentiu uma enorme impotência e a falta do sargento Argolo, tão distante, em missão que ele designara... Meu Deus!... Faziam apenas algumas horas e pareciam séculos... Como gostaria de ter o sargento, para tirá-lo daquele inferno psicológico, como tirara na fuga do Zé de Ticha... Não fosse ele, e talvez as coisas não estivessem naquele pé. Talvez até ele próprio estivesse morto. Eles não queriam os militares, pois sabiam como uma força policial lhes cairia sobre as cabeças. Queriam sim, os delegados nomeados que eram testas-de-ferro, colocados à guisa de bodes expiatórios. Assim, a imunidade física dos militares permanecia incólume. O atirador da castanheira tinha instruções de matá-lo, e não ao soldado. Na sua estupidez, tomara decisão por conta própria e estava à beira da morte. Estranho... Ao pensar nele, não sentiu remorso, depois das palavras do médico. Seria esse o tratamento psicanalítico?... Ora... Se era, então a humanidade estava com mil anos de atraso... Quer dizer que a psicanálise seria apenas a lavagem da alma quanto ao certo e o errado, quanto aos direitos e os deveres?...

Viu o pai e o sogro como figuras distantes, e pensou que se pudessem ler o que lhe atravessava o espírito, achariam que ele estava enlouquecendo ou pirariam por sua vez. Mas ele sabia que nunca estivera tão lúcido e começava a amadurecer numa rapidez tão vertiginosa que teve medo de não acompanhar o curso das emoções que despontavam como a água do seio da terra, aos borbotões.

Após o entendimento, os dois quedaram-se silenciosos. Sabiam da responsabilidade de que ele estava imbuído e não quiseram interromper. Depois daquela demonstração de zelo e reflexão, só não se retiraram porque eram convidados. Eram seu pai e seu sogro, mas mesmo assim quiseram sair para a sala ao lado, ou coisa semelhante. Remexeram-se inquietos e Alberto, perguntou se queriam tomar alguma coisa até que os outros viessem. Sabia que não dispensariam a cervejinha dos velhos tempos e pediu aos soldados que comprassem meia dúzia no bar mais próximo. Argumentou que era para comemorar a vitória. A tensão a que vinham sendo submetidos, bem que exigia uma recompensa.

Enquanto bebiam, chegaram o padre, o juiz e o promotor no gol, seguidos do Dr. Silvano, no chevete e aceitaram de bom grado um copo da geladinha. Se o prefeito e o tesoureiro se deleitavam junto ao delegado, por que não aderirem à comemoração?

Minutos depois foi a vez do Dr. Charles chegar no fusca e ainda sorver um copinho.

Findo o clima de festa e desejando encerrar o mais depressa possível a reunião, Alberto pediu que fossem recolhidas as garrafas e os copos e limpas as mesas.

Iniciou a reunião solicitando as presenças dos marginais, que se apresentaram com suas fisionomias conforme as personalidades, brutal ou covarde.

Movido pelo discurso do Dr. Odorico que ainda ressoava nos ouvidos, a reflexão de minutos antes, os copos de cerveja que lhe estimularam o cérebro e o natural entusiasmo por haver furado o invulnerável bloqueio da quadrilha, acentuado pela natural curiosidade dos chegantes, deu início ao relato:

_ Senhores, não creio que deva lamentar a interrupção do vosso sono no meio da noite!... Nossa reunião trata da segurança de nossa cidade!... Sabemos que fatos estranhos têm ocorrido nos últimos doze meses com os delegados, a partir do Euclides, assassinado misteriosamente. O Epaminondas substituiu, iniciou o inquérito, mas poucos dias depois relaxou as investigações, conforme as datas que estão à disposição dos senhores, nos depoimentos. Dois meses depois, alegando cansaço, pediu afastamento, mas ficou provado meses depois que era falso, quando ele disse ao Fulgêncio que alguém lhe telefonara com voz de pato. O Fulgêncio bradou aos quatro ventos e ofereceu-se, depois de quatro outros, que abandonaram em circunstâncias semelhantes. No mesmo dia, o Fulgêncio recebeu um telefonema e disse à esposa que um amigo estava em perigo. Recebeu três tiros na saída de casa com uma arma munida de silenciador, que deve ser a que matou o Euclides e foi apreendida agora à noite, com os atacantes do hospital, os que vimos há pouco!...

Alguns se agitaram, mas ele dominava a reunião, e acalmou-os com um gesto.

_ Horas depois, o Epaminondas foi tomar a sua costumeira laranjada e morreu no mesmo instante, dando a impressão de que fora envenenado, não se sabe como... Num dia só, saíram dois féretros para o cemitério!... O Sr. Afonso, preocupado, foi conversar com o governador e disse que haviam aplicado veneno na laranja... Curioso é que ninguém até hoje teceu comentário semelhante... Se não fosse a preocupação que tem de resolver os crimes, estaria na lista como suspeito número um, apesar de que, até hoje, não consegue se recordar quem passou essa informação. De certo modo, foi o que me deu uma pista segura para rastrear o culpado. Sem perda de tempo, nosso querido governador deslocou-se das suas atividades e veio a Serra Dourada, incógnito, no dia do piquenique, fazer pesquisas e alguém citou o meu nome, enquanto eu tocava. Circulou entre as pessoas, tomou o violão do Louro do Bode e tocamos até o final da festa. Jantamos e no outro dia, ficou acertado que ele ficaria responsável pelo boato da minha indicação. Tomei posse e não se passaram dez minutos, recebi um telefonema, com voz inconfundível de pato, chamando de otário e dando sessenta dias pra também abandonar o cargo, sob pena de ver meu pai assassinado, além da farmácia arder em uma labareda só. Tentei argumentar, mas ele não deu ouvidos e percebi que era uma gravação. Desliguei e recebi outra ligação, desta vez do governador, querendo saber como estavam os meus primeiros momentos de serviço. Temendo estar grampeado, conversamos sobre outras coisas e acertamos a minha ida à capital pra fazer uma reforma na guitarra. Recebi um treino relâmpago de técnicas policiais e perícia criminal e pra obedecer o pato, retornei com a intenção de sair com os amigos, peguei a guitarra e fui tocar. O Marquinhos me perguntou sobre as investigações e respondi com evasivas, inclusive que gostaria de saber quem indicou o meu nome pra perguntar se não queria botar a mãe no lugar. Meu pai estava ameaçado e eu não podia deixá-lo inocente. Depois de dar o castigo de uma noite de insônia pra ter certeza de que faria sigilo, contei o que sabia. Muito tarde, porém, descobrimos um minúsculo microfone em forma de aranha atrás do quadro de São Jorge que temos na sala. De certo modo, uma das duas conversas chegou ao conhecimento do pato, pois recebi outra ligação dizendo que eu só poderia deixar o cargo quando ele bem entendesse, porque eu era o otário que sou. Tentei pensar, mas não consegui, e fui pra casa com a camisa molhada de suor. Fui tocar no abacateiro do quintal e quando desci pra falar com meu pai, ouvi um barulho atrás das costas e vi um pedaço da casca arrancado no lugar onde eu estava. Agachei e vi outro pedaço sair como num passe de mágica. Deduzi que me atacavam com uma arma de silenciador e me escondi atrás do tronco. Minha impressão era de que os tiros vinham de cima da nossa casa, mas não vi ninguém. Uma suspeita bailava na minha mente, pois só um guindaste poderia içar uma pessoa e baixá-la em tão pouco tempo... Mas se não temos guindastes em Serra Dourada... Agora à noite, creio ter resolvido o enigma... Ontem à tarde, fui atacado com o Falcão, à beira do rio e os rastros do atacante desapareceram dentro d’água, e não saíram em lugar algum... Concluímos que só poderia ter-se enfiado nas instalações da caixa, dentro do rio. Isto coloca o Dr. Charles Burnier como terceiro suspeito. O Marquinhos é filho do Dr. Silvano e deve ter-lhe comunicado o meu desejo de me afastar do cargo, mas é prova muito fraca pra um assunto tão sério. Ele seria, no caso, o suspeito número dois e ao menos por este motivo foi descartado... Se desconfiei do meu pai e do meu sogro, é porque desejo resolver este caso e não vou descartar ninguém. Por que, então, descartar fatos isolados?... Eles são os elos da corrente!... Mas, voltando ao Dr. Charles Burnier, após o ataque, me encontrei com ele no gabinete do prefeito e solicitei uma vistoria completa na caixa, no que fui prontamente atendido. Na conversa com o governador, falamos de infidelidade conjugal, de espionagem industrial e de espionagem internacional. Surgiu a suspeita de que sob os nossos pés há um filão de ouro que deve estar sendo garimpado e contrabandeado de alguma forma. Se for verdade, é quase certo que o pessoal da ENGETEC esteja envolvido. Só que não tínhamos motivo para interrogatório, até esta tarde, quando fui mais uma vez atacado junto ao cabo Vanildo e o soldado Clemente que foi baleado e se encontra no hospital. Lembrei do ataque que sofri com Falcão e pedi ao cabo Vanildo que o seguisse enquanto eu ia direto para o rio. Cheguei à margem do rio antes dele e só não morri porque ouvi um galho ser quebrado às minhas costas. Voltei-me e só vi a fumaça que saía do cano da arma. Atirei e acertei-o no rosto, enquanto o cabo chegava e o levamos pra o hospital. Há poucas horas, desconfiamos que poderiam tentar eliminá-lo pra queima de arquivo e armamos um esquema com o Dr. Odorico, usando almofadas, lençóis, soro fisiológico, etc. Um funcionário da ENGETEC deu entrada com fortes cólicas, dando gritos que assustavam, mas não acreditamos na doença e espalhamo-nos pelos quartos e dois soldados nas camas vizinhas do leito. Alguém bateu na janela, ouvimos passos e três clarões envermelharam o quarto escuro. Dei voz de prisão, ele girou e atirou, mas Falcão gritou e ele se entregou. Eu sabia que o outro esperava a devolução da arma, do lado de fora, onde haviam dois soldados esperando que ele saísse e dobrasse a esquina, pra o prenderem. Quando ouviu minha voz, saiu correndo e o pegamos indo pra o rio, confirmando as suspeitas de que a resposta deve estar lá. O Dr. Charles é recém-chegado à cidade e já foi intimado a depor. Não creio que tenha dito nada que o implique como membro da quadrilha, e pelo contrário, fez questão de dizer que assume inteira responsabilidade por qualquer irregularidade que haja nas instalações. Se ele é inocente, os membros da quadrilha só podem ser da ENGETEC... Estávamos combinados a vistoriar as instalações em busca de uma passagem falsa, mas vamos ter de alterar os planos... Voltando ao guindaste, com a prisão do funcionário da empresa, deduzi que, se não temos um em Serra Dourada, a única coisa que pode substituir é uma pá carregadeira que, além de içá-lo, pôde também ocultar. Quanto ao chefe, se o Euclides estava indo conversar com o Sr. Afonso na prefeitura depois de ter telefonado, quer dizer que ele entra mais uma vez na lista como suspeito número um. Só que não pretendo fazer uma acusação formal antes de verificar os fatos e comprovar a culpabilidade, apesar de já o ter visto atirar, nas caçadas que estamos acostumados a fazer.

Fez uma pausa e o juiz que acompanhara atentamente a narração, perguntou:

_ Se com tantas evidências, não é o Afonso, quem pode ser, então?... O Dr. Charles está mais ligado ao pessoal da ENGETEC que qualquer outra pessoa. O delegado que vem acompanhando com a dignidade de um veterano apesar da pouca idade, no seu equilíbrio para não ser injusto, tem algum indício que possa nos levar ao culpado?

_ Gostaria de pedir à Vossa Meritíssima que nos concedesse o tempo de interrogarmos os prisioneiros, esta noite, sob a vossa orientação, caso queira, dada a nossa inexperiência, para que tenhamos uma opinião mais concreta. Pediria aos senhores, no entanto, que fizessem bastante sigilo, como temos feito até agora. Temos poucos soldados, mas os que desejarem segurança policial, se derem condição de alimentação e alojamento, faremos um esforço pra atender... Dizem eles que filar uma bóia de vez em quando, até que faz bem à saúde!... – Gracejou, para quebrar a tensão do momento, e continuou: Quanto ao chefão, é apenas uma questão de tempo... Repito que os senhores, além dos policiais são os únicos que conhecem o que narrei... Há outras providências de cunho técnico que desejo revelar apenas ao Dr. Gil e ao Dr. Sinval, pra não interferir nas investigações, às vezes com opiniões que venham de encontro com as medidas já tomadas. O motivo desta reunião é levar ao vosso conhecimento como maiores autoridades, considerando que meu pai é o tesoureiro, mas tem sido meu confidente e conselheiro... O Dr. Gil e o Dr. Sinval podem nos dar a honra da sua companhia, no interrogatório dos prisioneiros?

_ Claro!... Além da curiosidade normal de saber quem é esse membro da nossa comunidade, quero também, como juiz, dar a sentença justa!...

O promotor, que se mantivera em silêncio, acrescentou:

_ Eu também quero dar a minha parcela de colaboração nesse caso!...

_ Muito obrigado aos senhores. Sem a presença do sargento Argolo, não me sinto preparado para conduzir este inquérito!...

Enquanto Alberto relatava e dialogava com os forenses, as fisionomias se alteravam de acordo com o que era dito, permanecendo a da surpresa e da admiração de como aquele jovem rotulado de filhinho do papai, irresponsável e cabeça-de-vento conseguira dirigir as investigações e liderar a reunião com tamanha maestria. O padre que se mantivera calado, dirigiu-se a Alberto e Agnelo, com entusiasmo:

_ Quero parabenizar aos dois pela integração familiar que têm vivido e lamentar a perda irreparável que sofreram. Vocês têm sido mais irmãos do que pai e filho. Não sei o que fazer num caso como este, pois como todos sabem, sou totalmente avesso à violência e por isso só posso oferecer as minhas preces que são a melhor coisa a dar de mim, rogando a Deus que esses fatos desagradáveis tenham um desfecho pacífico e que essa pessoa desvirtuada, essa ovelha desgarrada se conscientize dos deveres cívicos e cristãos e se integre na nossa maneira de viver, para continuarmos a tradição dos nossos avós, num clima pacífico de amor e fraternidade... Quero lembrar aqui que o lugar deste rapaz não é numa delegacia... Ele é um artista nato e seu lugar é num palco, alegrando não só a juventude, mas a quantos o ouvirem... Lembro-me que na gestão do Dr. Silvano, tivemos um período de paz e tranqüilidade... O Sr. Afonso não foi tão feliz pois na sua campanha ocorreu o primeiro fato desagradável com a morte do Euclides... Sua atenção era voltada para o pomar, a horta, o lago para os peixes e o criatório de cabras, que não iam deixar uma só criança ser chamada de MENOR ABANDONADO e passar fome... Suas mães teriam uma fruta-pão para o café da manhã e uma caneca de leite para acompanhar, uma abóbora, um chuchu, uma mandioca, um peixe e o que mais fosse... O problema de alimentação estaria definitivamente resolvido... Problema este que lamentavelmente ainda não foi resolvido porque ainda estamos no final do primeiro ano da gestão do Sr. Afonso... Mas, voltando ao Euclides, quero advogar em favor do Sr. Afonso... Seria monstruoso demais um candidato a prefeito eliminar o seu mais valioso colaborador, apesar de, na verdade, todas as circunstâncias convergirem para a sua pessoa... Sr. Afonso, de coração, aceite a minha solidariedade como guia espiritual desta cidade, com a promessa de que tudo farei nas minhas orações para caracterizar a sua inocência!...

Emocionado, o prefeito curvou a fronte humildemente e disse:

_ Obrigado, padre!...

O reverendo ergueu novamente a voz e prosseguiu:

_ Mas, por outro lado, se o Sr. Afonso é inocente, alguém obrigatoriamente terá de ser culpado... E é para este alguém que devemos convergir as nossas atenções e as nossas forças... Fazendo eco às palavras do nosso jovem delegado, acredito também que seja dos nossos círculos sociais... Mas, quem?... Qual será o motivo que poderá levar alguém a cometer tão hediondos crimes?... A sêde do ouro?... Temos ouro no nosso subsolo?... Se fosse verdade, acredito que ao menos uma insignificante pepita já teria surgido... Mas não surgiu... Se não surgiu, é porque não temos ouro no nosso subsolo... E se não temos ouro, o que teremos?... Qual a teoria do nosso jovem delegado? Qual a teoria do nosso Secretário de Obras, Dr. Charles Burnier, que ainda não se pronunciou? Podemos ouvir-lhes os pronunciamentos?... Delegado, por favor, deseja fazer uso da palavra?...

_ Obrigado, padre, mas como falei, não desejo adiantar nada enquanto não tomar os depoimentos, pra não ficarmos no campo das conjecturas, que poderão descambar para as acusações infundadas... Quem for culpado, assim como esses dois que estão aí dentro, irá para a cadeia, mas quem for inocente, não permitirei que seja acusado injustamente. Só posso adiantar que tomei algumas providências, as quais, como disse antes, apenas com ele trocarei opiniões e colherei instruções... No impasse a que chegamos, e dado o adiantado da hora, sugiro que encerremos a reunião, mas advirto seriamente que três bons amigos se foram, eu sofri três atentados a bala, um soldado está no hospital, um membro da quadrilha foi covardemente assassinado depois de embriagado, com uma pedrada na cabeça por ter falhado na missão de jogar um fósforo aceso na gasolina que outro jogou debaixo da porta da farmácia do meu pai... Por coincidência ou não, o que jogou é o mesmo que está aí dentro preso, por ter levado o rifle para o outro atirar nas almofadas... – Disse, não resistindo à tentação de fazer piada em meio a tanta seriedade, e continuou: cabo, por favor, mande trazer o rapaz para que eles vejam o ferimento... O que me atacou na segunda vez, no rio, está no hospital, em coma... Eles são realmente perigosos... Concluindo o raciocínio, quero que observem aqui nesta pequena reunião que temos como suspeitos o atual prefeito, o anterior, o Secretário de Obras e mais outra pessoa que me reservo ao direito de não citar o nome por estar de viagem para o Rio de Janeiro e Brasília, cuidando de assuntos correlatos ao nosso debate...

_ O Dr. Lourinaldo... – Disseram em uníssono seu pai, o prefeito e o Dr. Charles, que tinham conhecimento da ação movida a respeita da árvore.

_ Ele!... – Confirmou, sem tentar ocultar o que pensava. – Mas como eu dizia, temos estas pessoas como suspeitas, quando até o início da reunião eram pessoas da mais fina lisura e agora surgem como suspeitos dos mais cruéis assassinatos... Será que algum deles ou todos são inocentes e estamos enlameando os seus nomes injustamente?... Só uma coisa posso dizer com convicção: temos de manter o mais absoluto sigilo e vigilância absolutos quanto a tentarmos descobrir quem é o culpado... Ele, está provado, que existe... Conclamo os senhores a se tornarem cada um, um delegado, pra limparmos a nossa cidade desse cancro e lavarmos a honra dos que estão sendo emporcalhados por nós mesmos. Peço encarecidamente não se enveredarem pelas acusações mútuas, mas também não confiarem em ninguém, absolutamente, até que peguemos esse assassino covarde, mas que tem provado ser muito inteligente... Os que desejarem garantia policial, faremos o possível pra atender... Apesar de termos quatro fora de circulação, não sabemos do seu potencial, e qualquer passo em falso será da inteira responsabilidade de quem o der. Estamos nos passos iniciais, mas não pretendemos demorar muito para o desfecho final... Ah! Aqui está o que jogou a gasolina por baixo da porta, atirou num soldado e levou o rifle para o outro. Nessa aparente timidez, tem-se revelado elemento de alta periculosidade e conhecimento profundo dos assuntos da quadrilha. – E ordenou ao marginal: Tira as calças!...

Alberto mostrou o curativo e disse:

_ Aí está, senhores!... Necessitamos de prova maior para autuarmos este rapaz?...

Nas fisionomias, só viu gestos de negação, como a dizerem que não necessitavam de maiores provas. Aproveitou e mandou o escrivão preparar para tomar o depoimento.

_ Algum dos senhores deseja acompanhar o interrogatório, ou desejam se retirar?... Não sabemos até que hora poderemos ir!...

Numa rápida consulta, com exceção do juiz e do promotor, os homens decidiram se retirar. Quaisquer que fossem os detalhes, não seriam eles a decidir. Concluíram que o jovem de apenas vinte e dois anos era, ao menos durante aquela transição, a pessoa mais importante de Serra Dourada. Ao pensar nisso, Agnelo sentiu uma terrível euforia que logo arrefeceu ao pensar também que a qualquer momento, em algum lugar, seu filho amado poderia tropeçar com um projétil que lhe ceifaria a vida. O pensamento causou agudíssima dor no peito e somente a custa de muito esforço conseguiu dominar. Alberto que a tudo estava atento, percebeu o transe e perguntou:

_ Papai, está sentindo alguma coisa?...

_ Não, filho!... Só um pequeno mal estar, mas já passou. Acho que é o acúmulo de serviço e coisas da idade!... – Olhou o prefeito e perguntou:

_ Quer ir agora?...

_ Claro!... Amanhã será um dia bastante cheio, pelo que temos aqui!...

_ Seu Afonso, - pediu Alberto – por favor, o senhor pode dar uma passada no hospital e pedir ao Dr. Odorico pra ver o que meu pai tem?

_ Claro, Alberto, fique tranqüilo, que farei!...

_ Mas não vai ser preciso!... – Protestou Agnelo.

_ Acho que nessa campanha, você não vai ganhar nem um voto, quer ver? – Perguntou aos amigos: Levo ao hospital ou não levo?

_ Leva, sim!... – Responderam os outros.

Sorridentes com a brincadeira, levantaram-se e o vigário pediu carona, bem como o Dr. Charles. O Dr. Silvano levantou, deu boa noite e saiu. Obedecendo ao esquema, os policiais se movimentaram na escolta dos visitantes e ocuparam as três viaturas.

A sós com o prisioneiro, o juiz, o promotor e alguns policiais, Alberto disse:

_ Agora chegou a nossa vez!... vamos trabalhar?...

O vagabundo olhou para todos os lados, como se estivesse coagido, aparentando querer chorar. Alberto percebeu e disse:

_Acho que é um pouco tarde pra seus lamentos. Muita gente morreu por sua causa e você próprio quase matou um dos nossos, além de quase tocar fogo na farmácia do meu pai. Aliás, acho até que foi você quem me atacou na beira do rio!...

_ Não!... Não fui eu, não!... Foi o que está no hospital!... É ele quem faz esse tipo de serviço, porque não erra o tiro e tem mais facilidade pra se esconder!...

_ Assim está bem melhor!... Quanto mais você colaborar, mais cedo ficará livre de nós. Aliás, parece que de nada valeu a esperteza dele... Não parece estar muito bem de saúde!... – Concluiu, esquecendo-se da angústia que sentira momentos antes, sentindo inclusive uma pontinha de orgulho e mórbido sabor de vingança, dos quais se libertou tão logo percebeu o caminho por onde enveredava. Recuperou-se e voltou ao ataque:

_ Mas foi você que atirou em mim lá no quintal lá de casa, não foi?!...

_ Não!... Dessa vez foi o que está lá dentro!...

_ E como foi que ele fez para atirar por cima da casa?...

_Ele estava dentro da concha da pá carregadeira!... Podia se esconder enquanto andava pela rua e ficar mais alto do que o telhado!...

O rapaz sentiu um calafrio e agradeceu a Deus por estar vivo. Se não fossem os seus reflexos ou outro dom acima do seu entendimento, estaria naquele momento, debaixo da terra, sendo roído pelos vermes. O pensamento lhe fez subir terrível emoção e ele pediu licença para respirar e, por que não, chorar um pouco e desafogar a opressão do peito.

Retornou e apressou-se em explicar a causa da sua angústia. O magistrado que se mantivera silencioso, olhou o prisioneiro e perguntou ao delegado:

_ Não quer escrever estas informações?...

_ Sem perda de tempo, convidou o escrivão a qualificar o preso e pediu:

_ Dr. Gil, o senhor não quer conduzir o interrogatório?...

_ Vou assistir de parte. Se houver necessidade, interferirei. Eu não sei o que está ocorrendo e só quem descobriu é que pode elaborar, com os dados que dispõe!...

Oculto na aparente covardia, o meliante demonstrou ter bastante conhecimento das atividades da quadrilha. Alguns funcionários da ENGETEC estavam envolvidos e as escavações eram feitas através do poço deixado pelos ET’s. O urânio era contrabandeado nos caminhões que apanhavam madeira em serrarias da cidade, descarregavam uma parte dentro de um túnel escavado no morro, cuja abertura ficava por cima da carroceira. Outro caminhão trazia dois conteiners que eram distribuídos para os dois e a madeira colocada ao redor. O segundo pegava outro carregamento de madeira, para justificar as cargas nos postos fiscais. A que sobrava era utilizada como escoras nas escavações.

Perguntado pelos nomes dos funcionários, respondeu que recebia as ordens do que estava preso e nem todos garimpavam. A característica básica da quadrilha era o sigilo e o membro que fosse pilhado tecendo algum comentário, seria inapelavelmente eliminado. Ele tinha se envolvido, quando foi apanhado pelo outro tentando vender um alternador de caminhão, do almoxarifado, e fazia chantagem.

O juiz e o promotor providenciaram um Mandado de Busca nas instalações da ENGETEC e arredores, incluindo a caixa do rio e adjacências e foram dormir.

Alberto perguntou como tinham tomado conhecimento do poço, mas ele respondeu que era um segredo dos chefes e não sabia informar. O rapaz ficou apreensivo com algo que não soubera definir e prometeu a si mesmo voltar a pensar no assunto, quando estivesse com a guitarra. Riu ao pensar nisso...

CAPÍTULO VINTE E OITO

No Ventre da Terra,

Um Mundo À Parte,

Mas Tem o Caminhão...

O prisioneiro estava algemado e saíram para a casa do Dr. Gil, a fim de revistarem as instalações e o convidaram a participar da diligência. O juiz, preocupado com o que ouvira na madrugada não se fez esperar. Convidaram o promotor e o marginal os levou à casinha da bomba d’água. Apontou uma tampa de ferro aparentemente sem utilidade, meio oculta pela porta. Tiraram a tampa e o chão se abriu num buraco de proporções inimagináveis à primeira vista. Dentro, havia ganchos e correntes que demonstraram ter utilidade bastante significativa. Despertando para um lapso de memória, Alberto pediu que buscassem o Dr. Charles, enquanto ele guardava o material, e confidenciou:

_ Vamos aproveitar a surpresa pra ver se ele está envolvido ou é só máscara?...

_ Ótimo! Se tiver alguma coisa a ver, sem dúvida, vai se denunciar. Se for inocente, vai se surpreender e depois se indignar. Vamos preparar o cenário!...

Dez minutos, e o veículo voltou com o engenheiro, que desceu esbaforido. Refreou um pouco a excitação quando viu o juiz e o promotor, e perguntou:

_ Delegado, o que houve?... O que foi que descobriu?...

_ Por enquanto, nada, mas parece que aí tem alguma coisa que nos interessa!...

_ Aí?... Delegado, não me faça perder tempo. Posso garantir que aí só tem a bomba d’água e nada mais... O senhor deve saber que esta não é a primeira vez que entro aí, e conheço cada centímetro quadrado!...

_ Então, creio que o senhor não se oporá em nos acompanhar, não é? Além do Dr. Gil e do Dr. Sinval, temos ainda um mandado. – E exibe o papel.

_ Se é assim, vamos, que tenho muito serviço e isto não vai a lugar nenhum!...

Dentro da casa, Alberto disfarçou, puxou a porta, apontou a tampa e perguntou:

_ O que é isso, Dr. Charles?...

_ Era um pequeno registro que íamos colocar, mas desativamos. Não sei nem se tiraram!... – Levantou a tampa e levantou-se, estupefato. Na sua fisionomia se estampava a surpresa de quem não queria acreditar no que seus olhos insistiam em provar que era real.

_ Que brincadeira é essa?... Quando abri essa tampa, não tinha mais do que dois palmos de profundidade. Agora passa de um metro e meio. O que é isso?...

_ Por favor, fique calmo, que o senhor vai saber de muita coisa que desconhecia. Desconhecia, não é bem o termo. Desconhece, ainda. Mas vamos aos fatos!...

O prisioneiro mostrou a utilidade dos ganchos e correntes, apontando uma viga de concreto no teto e disse para atrelarem uma catraca numa corrente. Mandou engatarem outra corrente com um gancho que recebia uma amarração, vinda da bomba. Orientou o desligamento das conexões e fosse içada. Os homens se mesclavam numa simultaneidade de movimentos que só os militares se distinguiam pelos uniformes, tal o afã da descoberta. Elevaram a bomba à altura de um metro e viram embaixo um buraco com diâmetro aproximado de sessenta centímetros, que dava muito bem para alguém de físico médio descer pela escada de ferro que ficava logo abaixo.

Ao ver o material, o Dr. Charles não deixou de soltar uma dolorida exclamação:

_ Meu Deus, esse material não pode ter sido desviado. Eu controlei o consumo em todos esse meses e não permiti que uma única vareta de solda fosse desviada. Deve haver outra explicação, pois eu não entendo mais nada!... – Lembrou do que Alberto dissera, e desabafou, como se falasse consigo próprio:

_ O delegado tem razão!... Eu não poderia controlar as instalações durante o sono, e eram doze horas ou mais que eu passava fora. Eles tinham todo o tempo livre para agir à vontade!... Mas se este serviço é uma obra de caldeiraria tão prefeita, a ENGETEC deve estar envolvida!... Por que não chamam o Sr. Bonifácio, para interrogatório?

_ Fique calmo, Dr. Charles! Depois que o senhor saiu com meu pai e seu Afonso, ouvimos este prisioneiro e o Sr. Bonifácio. Tentamos ouvir o outro, mas, obstinadamente, insistiu em ficar calado. O que nos interessava era saber o que o senhor pensava, mas vou deixar os comentários pra o Dr. Gil, se desejar!...

_ É cedo para formar qualquer opinião!... Primeiro, vamos cuidar das outras coisas. – E, tomando a dianteira, perguntou ao prisioneiro:

_ Onde se acende a luz?

_ Atrás da escada, aí, no teto do buraco!...

_ Quem paga essa conta de luz?...

_ A rede está ligada nas instalações da bomba...

_ ... e a Prefeitura paga... Quer dizer que vocês roubam de todo jeito, não é?...

O juiz e o promotor não esperaram resposta e iniciaram a descida, como se soubessem o que encontrariam, seguidos do Dr. Charles. Alberto coordenou a segurança e ordenou que o prisioneiro descesse, seguindo-o, após.

Na base da escada, viram a maravilha de engenharia instalada. Um salão com vinte e sete metros cúbicos, todo na chapa de ferro, com quarenta centímetros de largura, que fizeram o Dr. Charles dar um grito de euforia:

_ Só um soldador faria esta obra! Se Serra Dourada não tem um disponível, vou denunciar... Delegado, quero que prenda imediatamente todos os soldadores da ENGETEC!...

Alberto perguntou ao juiz:

_ Posso?!...

_ Considerando que as oficinas têm soldadores, eles têm de ser investigados. Vou expedir a ordem. Mande pegar os formulários, no carro. Eu trouxe por precaução!

Enquanto aguardavam, entraram no túnel, com altura aproximada de um metro e meio por oitenta centímetros de largura, no concreto. Percorreram uns duzentos metros até chegar ao poço feito pelos exploradores interplanetários. Alberto lembrou-se dos anciões e comunicou ao Dr. Gil o acordo e pediu dez minutos antes que começassem a descida. Voltou à casinha e pediu a um dos soldados que fosse convidá-los para a descida. Os macróbios não se fizeram de rogados e atenderam de imediato. Encontraram o delegado à porta da casinha a esperá-los ansiosamente, com um pequeno discurso:

_ Senhores, conforme o previsto, a via de acesso não é pelo totem sagrado, e sim por aqui. Como não desejo quebrar os nossos laços, mandei convidá-los para descermos juntos ao poço. O juiz e o promotor estão aguardando a nossa chegada. Quando estiverem prontos, poderemos descer. Está certo?...

_ Muito certo!... – Disse o cacique, solenemente. – Acompanharemos!...

Quinze minutos depois, os soldados chegavam com Bonifácio e três soldadores que se mostraram extasiados com a obra monumental realizada bem debaixo dos seus pés, sem que eles ao menos suspeitassem da sua existência.

Iniciaram a descida, e foram diretos ao túnel onde os outros aguardavam. Na escada do túnel dos ET’s, os índios olharam para cima e viram a base do totem. Revoltados, discutiam na sua língua. Desceram uns oitenta metros e deram com um enorme salão parcialmente lotado com pás, picaretas, correntes, cabos-de-aço, chapas de ferro das mais diversas espessuras, catracas, caixas de eletrodos, máquinas de solda, garrafas de oxigênio e acetileno, tábuas, pacotes de pregos, barrotes de madeira, material hidráulico e elétrico, um sofisticado sistema de ventilação, dois moderníssimos grupos geradores que poderiam entrar em funcionamento alguns segundos após o black-out e um eficientíssimo sistema de exaustores. O material mais abundante era o hidráulico, composto de bombas, tubulações e mangueiras que jamais permitiriam uma inundação, por mais violenta que fosse.

Estáticos e extasiados, contemplaram as instalações e decidiram seguir para o local das escavações. Estava equipado por moderníssimas medidas de segurança, tanto pessoal, como botas, capacetes, cintos, máscaras contra gases e proteção contra a radioatividade, quanto contra desabamentos, que seriam fatais naquela profundidade. Irritados, fixaram os olhares no pessoal da ENGETEC, como a pedir explicações. Aquela obra não poderia ter sido realizadas sem os seus conhecimentos. Gesticularam, mas nenhuma palavra de nexo lhes saía dos lábios e decidiram retornar, para tomar depoimentos. Alberto distribuiu o trabalho de forma que um cabo e alguns soldados conduzissem o pessoal da ENGETEC, depois de organizar a vigilância do local, enquanto ele com o outro cabo e um soldado levariam o prisioneiro à serraria. Tinha forte suspeita de encontrar qualquer pista que os conduzisse aos contrabandistas e não quis duvidar da intuição. Ela já lhe salvara por mais de uma vez, e não seria daquela que a desprezaria. Na chegada, foram advertidos de que um daqueles caminhões era usado no contrabando. Alberto lembrou-se de não ter visto nenhum carregamento pronto e interrogou o prisioneiro.

_ Eles já tinham colocado lá em cima, pra despejar no caminhão!...

_ Lá em cima, onde, se não vimos nada?...

_ No barranco de onde foi tirada a terra da barragem tem um túnel que vai dar na mina. O caminhão fica debaixo e o minério cai dentro da caixa, que nem o motorista vê o carregamento... Só ouve o barulho da terra caindo dentro do baú!...

_ Ah, essa eu quero ver de perto!... Meu filho, você está atolado até o pescoço. Mas se você nunca matou ninguém, tomar vergonha na cara e colaborar com a gente, eu prometo que vou tentar livrar a sua barra com a justiça, mas não vai com muita sede ao pote, não, porque antes tenho de confiar em você, certo?... Afinal, você andou perto de matar um soldado, levou a arma para matar um moribundo e não sei o que tem mais. Reze para Deus te ajudar que os seus crimes sejam só desse tipo. Agora, vamos ao que interessa... Quero esse motorista preso e você vai ajudar... Posso contar com você?...

O marginal esbugalhou os olhos, engoliu em seco e perguntou:

_ O que é que eu tenho de fazer?...

_ Muita coisa!... Pra começar, você tem de convencer esse cara a ir pro barranco, dizendo que está tudo bem. Topa?...

_ E se eles descobrirem que eu já estou preso e me matarem?...

_ Ora!... Você andou perto de morrer contra a lei, agora tem o consolo de morrer a favor da lei. Não é uma grande vantagem?... – Perguntou Alberto, cinicamente. – E deixa de fazer essa cara de bebê chorão. Quem faz o que você fez, não convence muito, tá?... Pense bem, é pegar ou largar... Se avisar o motorista, ele não vai conseguir escapar, pois estamos no calcanhar dele. Além do mais, temos a placa de um caminhão anotada pelo Euclides e que foi a causa da morte dele. Você sabe disso, não é?... Se não for este, não tem importância. O sargento Argolo deve estar a esta hora com o serviço levantado, no Rio de Janeiro. Por estes motivos é que vou confiar em você. Quero lhe dar a oportunidade de se sair bem dessa. Você já colaborou bastante e achei você simpático... Como é?... Vai topar, ou vai trair a minha confiança?...

_ Não vou trair, pode confiar! Se tiver de morrer, já valeu a experiência e vou me agarrar a esta oportunidade, pra sair do crime. Quem sabe, posso mudar de vida com esta chance que o delegado está me oferecendo?!... Só tenho mais é que agradecer!...

_ Então, combinado, e não se fala mais nisso. Vamos à luta!...

Enquanto o caminhão era carregado, Alberto levou o prisioneiro à casa do juiz e narrou o ocorrido. Quando falou do túnel de carregamento dos caminhões, o magistrado interessou-se em acompanhá-lo e traçaram um roteiro cronometrado para voltarem à mina e não deixar o caminhão escapar. Ligaram para a delegacia e pediram dois soldados na mina, que os ajudariam a escoltar o preso. Os que estavam com ele voltariam à serraria e se postariam de modo que não fossem vistos pelo motorista, e desceram o poço. Entraram na casinha e desceram pela bomba, que ficara suspensa. Nas escavações, depararam com outra subida dotada de um sistema de cabos de aço e roldanas motorizadas, que levava o material da fonte à moega de carregamento dos caminhões. O engenho era tão eficiente que permitia encher vários no espaço de alguns minutos. Por estarem debaixo do chão, não atinaram bem com a localização exata da saída do material, mas não quiseram pôr em risco o sucesso da missão e voltaram para a serraria, enquanto o Dr. Gil ia para o fórum.

Quando o motorista se preparava para entrar no caminhão, Alberto tirou as algemas e confiando que o caminhão era de fora, e ele aprisionado à noite, o marginal aproximou-se, sorridente. O motorista não vacilou e abriu a porta. Eram conhecidos de algum tempo e não havia motivo para desconfiança.

Próximos do local, disse que iria avisar o pessoal, para não atrasar o serviço, e saltou. Correu com todas as forças, subiu para a moega e olhou para baixo. O caminhão acabava de fazer a manobra e o conteiner ficou debaixo de onde ele se encontrava. Puxou uma alavanca e uma enorme lâmina de ferro deslocou-se e jogou a carga para baixo.

Os policiais se aproximaram e quando o motorista engrenou a marcha, Alberto, que se ocultara numa dobra do barranco, saiu ao lado da porta, apontou-lhe a arma e gritou:

_ É melhor você se entregar!... Os outros estão presos e de nada adianta fugir!...

O homem desengrenou a marcha, abriu a porta, ergueu os braços e perguntou:

_ O que vão fazer comigo?... Tenho mulher e filhos para criar!...

_ Nada que não esteja dentro da lei!... Vocês deviam pensar nas famílias, antes de se meterem nessas enrascadas, não era depois de estarem em cana, não!... Se é isso que lhe preocupa, fica descansado, que vai encontrar com eles mais cedo do que espera. Só quero saber uma coisinha de você, de quem é esse caminhão?...

_ Da ENGETEC, Engenharia e Serviço, do Rio de Janeiro!...

_ E, por quê não está com o logotipo na porta?...

_ Não sei. A firma tem muitos veículos... Uns têm logotipos e outros não. Só sou motorista, e não me meto com essas coisas... É lá com os chefes!...

_ É, dá pra se notar que você se mete com outras coisas bem mais importantes, contrabando de urânio, por exemplo, é uma delas!...

_ Urânio?!... Mas, me disseram que era malacacheta... sei lá... qualquer coisa!...

_Pois é!... Agora tá em cana, e nem sabe por quê!... Ou sabe?!...

CAPÍTULO VINTE E NOVE

Parabéns, Sargento!...Obrigado, Pra Você, Também!...

O enorme troféu parou na porta da delegacia e iam tomar os depoimentos, quando o telefone tocou. Era o sargento Argolo com as primeiras notícias.

_ Alberto, é Argolo! Olha, o caminhão VK–5802 é da ENGETEC, Engenharia e Serviço, aqui do Rio de Janeiro. Vou continuar investigando, pra ver o que descubro mais. E, por aí, como andam as coisas? Já falou com os índios? O que disseram?...

O jovem entendeu a natural curiosidade do sargento e sabia que quando desse as notícias, seriam como uma bomba de cinquenta megatons. Calmamente, rebuscou as palavras e respondeu:

_ Sim, sargento, falei com os índios e eles me deram algumas respostas que estão resolvendo a questão. Por exemplo, nós nos enganamos ao pensar que havia ouro aqui, mas é urânio... Sim... Urânio!... Outra coisa, acabamos de prender um caminhão, também da ENGETEC, com a boca na botija, quer dizer, recebendo o carregamento. Está aqui na porta!... Acho que foi por ter visto um semelhante, que o Euclides morreu. Ontem à noite, ouvimos o Sr. Bonifácio chefe das instalações da ENGETEC, mas ele parecia não saber de nada, inclusive quando descemos para a mina debaixo da Reserva Indígena!

Enquanto falava, ele percebia que o militar se tornava tão eufórico que por pouco não atravessava o fio telefônico, para verificar o que estava ocorrendo, e continuou:

_ Antes que me esqueça, por favor, anote a placa do caminhão. Ele foi apanhado em flagrante e o senhor pode acionar por aí o que for de direito. Não tenha receio de tomar as providências que forem necessárias. Temos a cobertura do governador, do juiz, do promotor, do prefeito e abençoados pelo padre, que estão acompanhando de perto as investigações. Ontem, quando fui falar com os índios, sofremos outro ataque e conseguimos pegar o cara, mas ele está em coma no hospital. Mais tarde outros dois foram tentar acabar com ele, queima de arquivo, não sabe? e nós os pegamos... Um deles me entregou o caminhão!... Ah, a placa é XV-0763, e o senhor pode virar o Rio de Janeiro de pernas pro ar. Dinheiro, já sabe que não é problema, é só telefonar. Mas não esqueça de dizer que está no Rio. Vamos enfiar todos eles na cadeia, começando pelos chefões!...

_ Por falar em chefões, como anda seu personagem misterioso?...

_ Fuzilando-me com o olhar, cada vez que nos encontramos. Acho que não demora muito, vai dar um gromogô da zorra. Se aguentar vai ser melhor, pois quero ter o prazer, eu mesmo, de trancar a cela que ele entrar. Se pra ele eu sou um moleque irresponsável, pra mim ele não passa de um patife assassino. A guerra de nervos a que ele me submeteu, agora, vai ter de suportar em doses muito mais elevadas. Nós vamos pegá-lo, o senhor vai ver!... – Concluiu com tamanha veemência, que chegou a surpreender a si próprio.

_ Rapaz, parece que você estava esperando eu sair daí pra bater a poeira e limpar a sujeira da cidade?!... E o pior, é que parece que você quer que eu faça o mesmo aqui no Rio, não é? Mas, quem sou eu pra dar essa virada? Vou fazer o que for possível, tá?...

Rindo, se despediram como bons amigos. Sabiam que com aquele telefonema, os destinos futuros da quadrilha estavam selados. Eles que se cuidassem!...

Alberto desligou e deu uma rebuscada na problemática. Havia tanto serviço que se não dedicasse o tempo integral, ficaria tudo pela metade. Ele não tinha intenção de ficar muito tempo no cargo de delegado, nem tampouco, por uma questão de amor próprio, deixar que outro solucionasse no seu lugar. Chamou o escrivão e traçaram um roteiro para os depoimentos. Por mais que acelerassem, sabia que não terminariam naquele dia e nem nos próximos. Arregaçaram as mangas e puseram mãos à obra.

* * * * *

O sargento desligou e pegou o carro alugado, não por mordomia, mas para evitar corridas de taxis que certamente ultrapassariam o valor do aluguel e roubaria tempo na espera. Rumou para o escritório da ENGETEC e procurou o Dr. Carlos Morales. Aborreceu-se com a informação de que somente chegaria por volta das nove horas, mas, surpreso, olhou o relógio e percebeu que na sua euforia, acordara muito cedo, chegara ao DETRAN antes do início do expediente e parecia querer encontrar todo mundo nos seus postos, apenas para atendê-lo. Lembrou da conversa de minutos antes e sorriu interiormente, armando-se, pacientemente de calma, para aguardar. Sentou-se, mas observou que antes dele haviam chegado alguns senhores engravatados e percebeu que teria certa dificuldade em falar com o homem. Concluiu que teria de usar dos recursos disponíveis e lamentou não ter levado o uniforme militar. Na agitação carioca, seus documentos pessoais não teriam muita influência e ele não queria chamar a atenção. Mesmo armado de paciência, não deixava de a todo instante consultar o relógio. O ponteiro dos segundos passeava lentamente pelo mostrador, deixando-o sobremodo nervoso e agitado, principalmente depois que os minutos começaram a exceder das nove horas, enquanto a sala se enchia cada vez mais. Quando a paciência já chegava ao ápice da tolerância, por mera casualidade, ouviu uma rápida troca de palavras entre a secretária e um dos funcionários, mais à guisa de troça:

_ Esse Dr. Carlos, enquanto não vistoria tudo lá embaixo, não pega o elevador!...

Com o comentário, o sargento saiu discretamente e, no térreo, procurou o engenheiro no meio do maquinário, até que minutos depois alguém informou que o doutor já havia subido. Frustrado, porém aliviado com o exercício que diminuíra a tensão, fez discretos respiratórios e partiu para o elevador. Na recepção encontrou um grupo ainda maior de pessoas que ocupavam a sua vaga na fila. Pôs-se a esperar, mas percebeu que o primeiro a ser atendido estava demorando muito. Se os outros fizessem a mesma coisa ele não seria atendido naquele dia e resolveu usar de um estratagema. Desceu o elevador e foi a uma banca de revistas comprar fichas telefônicas. Selecionou no catálogo o número da ENGETEC e ligou do orelhão mais próximo.

_ ENGETEC, Engenharia e Serviço, bom dia?!...

_ Bom dia! O Dr. Carlos Morales, por favor?!...

_ Quem deseja falar, por favor?...

_ Polícia de Serra Dourada, com urgência!...

A moça assustou-se um pouco, mas logo recuperou-se e perguntou:

_ Qual o assunto, por favor?...

_ Moça, se você não completar a ligação agora, eu não garanto que vá permanecer no emprego por muito tempo. Preciso falar com o Dr. Carlos Morales, com urgência, e o assunto é sigiloso. É o bastante?...

_ Sim, senhor! Um momento, por favor!...

A secretária teclou o interfone e disse:

_ Dr. Carlos, uma ligação urgente da polícia de Serra Dourada. Completo a ligação?

_ Claro! Claro que completa!... O que aconteceu?...

_ Não sei Dr. Carlos! O homem está apressado!...

_ Tudo bem, completa!...

_ Alo, quem fala?...

_ Dr. Carlos Morales?!...

_ Sim, é ele. Quem deseja falar?...

_ Aqui é o sargento Argolo, da polícia de Serra Dourada. Sinto informar que as coisas não estão nada bem pra a sua empresa, na minha cidade. Dizendo melhor, seus funcionários estão envolvidos com os assassinatos de três delegados e tráfico de minério...

_ O quêêêêê?!... Meu pessoal?... Que conversa é essa, que o senhor está dizendo?...

_ Saí de Serra Dourada ontem pra investigar um caminhão da sua empresa. Como tem muita gente na recepção, preferi ligar do orelhão. Devo subir ou o senhor desce?...

_ Meu Deus, o que será que Boni andou fazendo? Será que resolveu me trair?...

_ Não sei, meu amigo... Como fazemos, eu subo ou o senhor desce?...

_ Estou aguardando, sargento. Só vou atender os outros depois que conversarmos!...

Atravessou o curto espaço e chegou ao escritório em poucos minutos. Identificou o engenheiro, pela ansiedade e apertaram-se as mãos, surpreendendo a secretária e os outros que aguardavam. Enquanto entravam no escritório, o engenheiro avisou para a secretária que o assunto era do mais alto sigilo e que ninguém deveria interromper.

Logo que entraram, o telefone tocou e o Dr. Carlos atendeu, deixando escapar um berro que assustaria o mais valente dos samurais:

_ Boni, seu desgraçado, o que você andou aprontando aí? Não foram claras minhas recomendações pra vocês ficarem longe de complicações? E agora, estão envolvidos nos assassinatos que você, cinicamente, me deu a notícia, como se fosse a maior novidade?! Pode se arrumar pra receber o substituto. Não fico nem um minuto com um salafrário na minha empresa, entendeu bem? Você está despedido e não me apareça pela frente nunca mais, pois mando acabar com a sua raça. E não quero saber de papo! – Desligou o telefone e olhou para o sargento, fuzilando-o com o olhar, como se também fosse culpado:

_ Vagabundo!... Safado!... Filho da puta!... Falei com ele e o descarado me deu a notícia como se fosse a maior novidade, enterrado até o pescoço na merda que fizeram... Vou botar todo mundo na rua!... – Lembrou-se que o sargento era um policial da cidade onde ocorriam os crimes, procurou o re-equilíbrio emocional e pediu:

_ Desculpe, sargento, mas é muita coisa para uma cabeça só. Se fossem problemas de serviço, de doença ou financeiro, eu aceitaria com tranquilidade, mas, assassinato?... Não! É demais!... Mas, sargento, o que o senhor tem pra me contar? O que foi que aqueles salafrários andaram fazendo por lá?...

_ O que tenho a dizer, por enquanto é muito pouco. As coisas se desencadearam ontem à tarde, depois que saí pra investigar a propriedade desse caminhão. O número da placa estava dentro da agenda do primeiro delegado assassinado. Há uma hora, descobri no DETRAN que é da sua empresa. Liguei pro delegado, que é um garoto de vinte e dois anos, mas pelo serviço prestado em menos de quinze dias, já provou que é digno do maior respeito, e eu não quis que ele ficasse tolhido por falta de informações. Depois que relatei, fui surpreendido por ele com esta outra placa, dizendo que o prendeu carregado de minério pra contrabando, e que também é da sua empresa!... Agora, pra não ficarmos desinformados, acho que devíamos ligar pra ele e colher detalhes. O senhor tem condições de falarmos usando uma extensão?

_ Claro, claro!... Acho que é o melhor caminho, pois minha vontade agora é de pegar um avião e ir lá, botar todo mundo pra fora. O senhor me dá o número dele? – Pelo interfone, ordenou à secretária providenciar a extensão.

O sargento explicou para Alberto que estava usando uma extensão no escritório do engenheiro. Falou do telefonema do Boni e pediu para esclarecer o envolvimento da ENGETEC. Alberto não fez rodeios, cumprimentou o engenheiro e disse:

_ Dr. Carlos Morales, até o momento, só conseguimos apurar que gente miúda da empresa está envolvida. Tive o cuidado de ouvir o Sr. Bonifácio na presença do juiz, a uma e trinta da madrugada e ele disse que desconhece qualquer envolvimento neste caso. Disse que tem cuidado do serviço com muito zelo, não tanto pelo profissionalismo, mas pelo respeito que tem pelo senhor. Hoje, fomos vistoriar as instalações subterrâneas e ele veio novamente à delegacia. Acabou de sair! Eu aconselharia o senhor, como engenheiro, se for possível, vir até aqui, para, juntamente com o Dr. Charles Burnier...

_ Conheço o Dr. Charles!...

_ Muito bem! Os senhores poderiam nos dar muitos detalhes que seriam de grande utilidade pra colocarmos um salafrário atrás das grades, por pelo menos cem anos!... Na ida ao poço, intimamos o Sr. Bonifácio e os soldadores a irem também. Quando viram a obra monumental que esteve um ano debaixo dos pés deles, ficaram tão apalermados que só fizeram gesticular. Afirmo que o senhor ficará encantado com a obra e com a história. Se o Sr. Bonifácio é culpado, tem sido tão bom ator que nos enganou a todos. Por este motivo, tomo a ousadia de arriscar um palpite, dizendo que não acredito na culpa dele. Inobservância ou negligência, talvez, mas culpa, eu acho muito difícil. Fui claro?...

_ Muito bem claro, delegado!... Não acredita na culpa do Boni, mas não mete a mão no fogo por ele, e uns bons puxões de orelha pra ser mais cuidadoso... Estou certo?...

_ Apenas uma coisinha, aqui é uma cidadezinha pequena e pacata do interior e é difícil alguém acreditar que fatos dessa natureza possam acontecer...

_ Mesmo com três delegados assassinados?...

_ Segundo o Sr. Bonifácio, o senhor, Dr. Carlos, foi bem claro que eles deveriam ficar bem longe desses assuntos, e parece que ele obedeceu. Além disso, se ele estava cuidando do serviço dele, isto é, dos interesses da sua empresa, não poderia ter tempo de meter o nariz no que não fosse da conta dele!...

_ Delegado, se todos os advogados fossem como o senhor, ou o mundo estaria cheio de criminosos pelas ruas, ou apenas os verdadeiros culpados estariam na cadeia. Pode ficar descansado, que vou virar detetive e meter a cara com o sargento Argolo, pra ver no que vai dar esse angu de caroço. Vou ligar pra o seu protegido e ouvir a versão dele e marcar a viagem. Ele ligará, informando!...

_ Muito bem, Dr. Carlos, foi um prazer enorme, conversar com o senhor. Agora, se dá licença, tenho enes problemas e o tempo é curto. O sargento Argolo tem algo a dizer?

_ Por enquanto, não, Alberto. De coração, desejo boa sorte. Não descuida, tá?...

_ Obrigado, sargento. Meu anjo da guarda foi pro Rio de Janeiro e está curtindo de turista com as cariocas, enquanto me viro aqui com um monte de barbados!...

_ Turista, né?... Eu é que sei o que tive de fazer para estar aqui, agora, falando com vocês dois. Lembranças aí para o pessoal, e se cuida, tá?... Te cuida!... Tchau!...

_ Até breve, sargento, até breve, Dr. Carlos, vou à luta!...

Os dois homens se olharam e o Dr. Carlos disse:

_ Rapaz, esse seu delegado só tem vinte e dois anos, mas ao primeiro contato, se nota logo que o cara é osso duro de roer, não é? Ele é assim, todo o tempo?

_ Pode apostar que sim, doutor. Se estou aqui, foi porque ele decidiu e porque encontrou, não por casualidade, mas por puro faro policial, o papel na agenda. Ele ficou transtornado. Parecia que já sabia o que estava lá dentro, enquanto eu e a viúva olhávamos pra ele sem entender nada. Apenas, sabia que estava no caminho certo, e aqui estou!...

_ Agora, sargento, que aqueles vagabundos pisaram no meu calo – contrabando nos meus caminhões... – vão ver com quantos paus se faz uma jangada. Só um tempo pra ligar pro Boni. Se for culpado ou inocente, eu vou descobrir, e pelo telefone, quer ver?...

E pediu a ligação à secretária.

CAPÍTULO TRINTA

O mundo Virou de Ponta Cabeça...

Os moacaras interrogavam cada descendente do cacique Jutorib, o que traz a alegria, detentor do segredo, mas viam a determinação de o manterem guardado até que a morte lhes fechasse os olhos. Entraram em conferência e chegaram à conclusão de que nenhum teria revelado, tal a obstinação de serem fiéis aos filhos de Tupã, deixando no ar as interrogações, Teria havido um traidor? Não seria uma triste coincidência? Estaria alguém mentindo? Onde estaria a verdade? Levariam a Boitatá a conclusão com as dúvidas? Se levassem, ele se contentaria ou continuaria insistindo na descoberta de um traidor?... Sim, esta deveria ser a atitude de Boitatá. Se eles bem o conheciam, ele não aceitaria uma solução parcial. Se havia uma suspeita, ele somente se conformaria depois da verdade esclarecida. Alguém poderia estar em viagem ou morto. Por que não?... Era muito provável que houvesse um traidor e que não estivesse na Reserva. Muitos haviam se deslocado para outros centros ou zonas rurais, em busca de trabalho... Recentemente, um tinha morrido e, coincidência ou não, era dado ao vício da embriaguez. Se fora ele, como provar? Alguém teria visto? Quem era mais chegado a ele? Quem costumava acompanhá-lo nas bebedeiras? Ele era mestiço, apesar de descendente do cacique Jutorib, o que traz a alegria... estaria na Reserva? Era preciso apurar...

Incansavelmente, reiniciaram com a interminável fila, bem maior que a anterior. Enquanto da outra vez eram interrogados apenas os descendentes do cacique, esta era só para testemunhar os laços mais chegados do meio-índio Abunã, para saber se ele traíra o segredo, enquanto bebia uma das famosas carraspanas. Ele jamais poderia informar, pois jazia debaixo de sete palmos de terra, desde três dias antes.

* * * * *

Alberto lembrou-se do acerto com Agnelo e concluiu que não havia mais motivo para ocultar nada. A causa do sigilo eram as ameaças de morte e incêndio da farmácia. Cessada a causa, automaticamente, o efeito desaparecia. Pegou o telefone e ligou:

_ Papai, o que descobriu na contabilidade?...

_ Nada, ainda, filho. São muitas notas fiscais, muitas notinhas, muitas passagens, e estou retroagindo no tempo, mesmo depois que eu assumi. Apesar do cuidado que sempre tive, nunca se deve confiar na continuação daquilo que começou errado, ainda mais num caso como este. Sabe, filho, você me ensinou uma grande lição. Eu pensava que as coisas se resumissem nos acordos e nos acertos de detalhes, mas você provocou uma reviravolta tão grande na nossa História que jamais alguém nesta cidade terá coragem de ao menos pensar que qualquer atitude do ser humano seja impossível!...

_ Ora, papai, não exagera! Olha, eu liguei pra dizer que não temos mais motivos pra ocultar o levantamento, e queria saber se a Câmara de Vereadores pode instaurar uma CPI e enfiar o nariz nessa merda que está aí?!...

_ Ih! Filho, você acha mesmo necessário?...

_ No ponto em que chegamos? Pode ter certeza!... Falei com o sargento, no Rio, e o dono da ENGETEC está com ele. De algum modo, colocaram os caminhões dele no contrabando e pelo menos uma parte dos funcionários está envolvida. O que não entendo é por que os maiores suspeitos são os que mais parecem inocentes. Parece até que o bando é formado de fantasmas. Os que aparecem são fichinhas. É um atirador no hospital com uma bala na cara, outro que entra para matar um defunto, outro mariquinhas mais frouxo do que uma galinha, é um Zé de Ticha que morre embriagado com uma pedrada na cabeça... Meu Deus, será que não vamos furar esse bloqueio?... Será que esses caras são tão invulneráveis assim?... E, o pior, papai, é que eu sei quem é o chefão, o grande filho da puta causador disso tudo, mas parece que ele tem uma capa de aço ao seu redor... Tudo que eu tento pra conseguir uma prova contra ele, logo surge uma parede e barra tudo!...

_ Filho, você sabe quem é o chefe da quadrilha e não diz nada a ninguém? Por que é que você faz segredo disso, sabendo que nossas vidas estão em perigo?

_ Não, papai, nossas vidas não estão mais em perigo. Temos tudo sob controle e ele está tão apertado que não sei nem como é que ainda consegue comer, dormir e conversar. Mas eu boto a mão nele, e quando acontecer, quero que todo mundo esteja bem ciente, pra não ter nenhuma sombra de dúvida. Aquele filho de uma puta!... Mas vamos ao caso da CPI. Como é que fazemos para contatar a Câmara?

_ Vou verificar e depois ligo, OK?...

_ Tá bom, pai, o senhor sabe que isso vai provocar uma fitricagem dos diabos, não é? Vão revirar pedra de sobre pedra e a lama todinha vai aparecer, não é?...

_ Bem, filho, acho que é um risco que temos de correr, pra lavar a honra dos que são inocentes e botar os culpados na cadeia. Vamos à luta?

_ Vamos à luta!...

* * * * *

Cabelos esguedelhados e olhos vermelhos, depois que o patrão desligara com tão duras palavras, Boni pensava no modo mais rápido de pôr um fim naquele pesadelo que o arrastava ao fundo do poço, quando o telefone tilintou, chamado-o a uma realidade que considerava distante. Por que atender àquela chamada, se não mais lhe dizia respeito? Por que se interessar pelos problemas da ENGETEC, se dedicara os últimos quinze anos da sua vida, colocando o que tinha de melhor, o amor pela família, os amigos, o lazer, os esportes de que tanto gostava? Tudo?... Meu Deus!... O que foi que aconteceu? Será que o destino havia lhe tramado alguma peça de terrível sabor? Será que aquilo não era uma brincadeira de primeiro de abril?... Não!... Era uma realidade muito brutal, para ser brincadeira!... Tão brutal que havia meia hora não fazia outra coisa, senão chorar desesperadamente. Somente uma coisa lhe acudia a mente, morrer... Só queria desaparecer daquele cenário macabro que lhe destruíra a vida... Mas como?... O que fazer para dar cabo daquele sofrimento e deixar de ser? Ele ainda se sentia muito real, muito palpável, para isolar-se, como num passe de mágica, e tinha de ser forte. Tinha de superar aquele transe infernal... Milhares de legiões de demônios o assediavam a encerrar aquele ato, no teatro existencial, mas algo mais forte lhe dizia que não era o momento... Aquele tilintar insistente o chamava à realidade, sua mulher, seus filhos, suas responsabilidades... Mas doía-lhe a brutalidade com que fora recebido pelo Dr. Carlos. Ele passara um tempo enorme tentando falar para dizer que estivera na delegacia e ele ainda não tinha chegado... Quando teve certeza de que estava no escritório, as ligações davam sinais de ocupado, até que logrou conseguir ser atendido pelo Dr. Carlos, para ouvi-lo chamar de salafrário e chutar mesmo à distância, como não se faz nem com o mais sarnento dos cães de rua. O que mais doía, não era nada disso. Compreendia que à distância, qualquer boato pode parecer a mais dura realidade, mas sim o direito a defesa que lhe fora arrancado, tão brutalmente, como se arranca a erva mais daninha da plantação. Não!... Por mais revoltado que estivesse, não poderia ter dado aquele tratamento. Ele era inocente, e poderia provar com a mais convincente das testemunhas, a sua consciência... Mas era tarde... Aquela empresa que fosse para o inferno... Aquele telefone desgraçado que se lixasse... Mas ele parecia não querer parar de importuná-lo... Será que quem quer que estivesse do outro lado não percebia que ele estava sofrendo muito e não queria falar com ninguém?... Pois bem, ele diria, então, e ficaria livre do tilintar ensurdecedor, que não o deixava em paz. Pegou o fone e colocou no ouvido, para dizer toda a verdade... Dizer que ele, o famoso Boni, da ENGETEC, não passava de um bolo de estrume... Estrume, não... Estrume é usado para adubo!... Ele não passava de um monte de bosta da mais fedorenta... Ele estava acabado e tinha de falar para todo o mundo e acabar com a ilusão boba de acharem que ainda era o grande da ENGETEC, em Serra Dourada, o encarregado das obras que matariam a fome do MENOR ABANDONADO. Quanta ilusão!... Quanto sonho idiota!... Ele não era zorra nenhuma, e tinha de começar falando com aquele besta que insistia tanto em falar com ele. Não havia mais assunto nenhum que ele pudesse decidir... O substituto estava vindo, e era só uma questão de horas. Naquela mesma noite ou no outro dia, podia até imaginar quem seria o pau-para-toda-obra, como ele fora por muitos anos, entrar pela porta e dizer: Pô, Boni, cumé que cê foi se meter nessa, cara? Você não sabe que o Dr. Carlos não admite trambiqueiros na empresa?... Mas ele também diria a mesma coisa, pois assim era o Dr. Carlos e eles não eram só amigos. O pessoal da ENGETEC era uma família, e o que mais lhe doía era exatamente ser arrancado da irmandade, sem direito ao menos de se defender. Meu Deus, por que foi acontecer logo comigo?... Será que eu sou o mais desgraçado dos homens?...

_ Ligue amanhã. Eu já não sou mais nada nesta empresa!...

_ Boni?!...

_ Dr. Carlos?!... Mas... mas... mas... Dr. Carlos?!... Não pode ser o senhor!... Não posso acreditar!... O que o senhor disse!... Eu ouvi o senhor dizer!...

_ Boni, o sargento Argolo está comigo e estava dando a notícia, quando você ligou. Depois, ele ligou pra o delegado Alberto que me contou o que aconteceu desde ontem e se mostrou o melhor dos advogados que você jamais poderia ter. Olha, Boni, eu estou indo praí, mas quero que você me diga o que sabe dessa história?! Você tem alguma culpa no caso, ou apenas não viu o que se passava ao seu redor? Preciso ouvir de você a verdade!...

Ainda embasbacado, pôde apenas balbuciar, mal conseguindo articular as palavras:

_ Dr. Carlos, o senhor me conhece... Eu só queria morrer!...

_ Boni, por Deus, levanta essa cabeça!... Eu não vou demorar a chegar aí. Liga pra o delegado e faz o que ele precisar pra descobrir quem são os culpados nessa patifaria, que eu vou rodar com o sargento, pra ver quem está usando os caminhões pra contrabandear urânio. Você tem alguma coisa a dizer?...

_ Sim, Dr. Carlos, Deus lhe pague. Eu ia acabar com a minha vida. Só a lembrança da minha mulher e dos meus filhos estava impedindo, mas a dor de ser despedido sem direito a defesa estava sendo mais forte do que tudo no mundo. Eu não estava aguentando mais... Deus lhe pague, Dr. Carlos. Vou ligar pra o delegado, e dizer o mesmo!...

_ Tá bom, Boni, liga. – Disse, emocionado. – Temos muito serviço pela frente!...

_ Até breve, Dr. Carlos, e muito obrigado, mesmo!...

Boni desligou o telefone, fechou os olhos, juntou as mãos e disse:

_ Meu Deus, muito obrigado por tudo. Eu não mereço tanto!...

Sem perda de tempo, discou o número da delegacia.

* * * * *

O Dr. Carlos olhou para o sargento, deu um suspiro, meditou um pouco e disse:

_ Pobre Boni! Tão trabalhador, tão responsável, tão diligente. Achei que fosse um pouco mais forte. Imagina que desde a hora que telefonou, só porque desliguei o telefone sem lhe dar o direito de defesa, o único pensamento foi o de suicídio, como se resolvesse alguma coisa. Se não o fez, na verdade, foi porque sabia que ao enfrentar as regiões umbralinas, do outro lado da sepultura, não teria contemplação, pois o juízo é reto!...

_ O que quer dizer, Dr. Carlos? Não entendo. O que são regiões umbralinas?...

_ Realidade existencial, sargento. Quem achar que depois da longa viagem, está livre da problemática que se encontra, está enganado, e vai chorar lágrimas dolorosas. Nós temos lido e conversado a esse respeito, mas nunca passou para nós de mera filosofia. Hoje, porém, como o senhor viu, tivemos o amparo necessário para as nossas fraquezas materialistas. A alma humana, meu amigo, é comparada ao fogo que depende de uma fonte para existir. Por exemplo, se você ateia fogo a um monte de palha, enquanto tem palha, tem fogo. Quando ela acaba, o fogo apaga. Com a alma, acontece o contrário, pois ela depende da FONTE ETERNA DE ENERGIA que emana diretamente do Criador do Universo, em forma de Luz, que proporciona desde o mais simples farfalhar do vento às mais complexas estruturas cósmicas, permitindo que uma formiguinha seja um Universo dentro da incessante movimentação das Galáxias. O inferno nada mais é do que a própria consciência que, como a criança diante dos pais, quando comete um deslize, curva-se envergonhada, sem coragem de encará-los, mas quando sente o seu interior vibrar com algum ato virtuoso, corre alegre pra contar o feito, esperando os elogios e a recompensa. Assim também, ocorre com a alma humana, diante da Luz Divina. Se a consciência é limpa, não se envergonha de estar na presença de Deus, mas se há alguma mácula, a vergonha queima como o fogo do inferno, temendo que jamais a esponja do tempo a apague. Mas a bondade divina é infinita e basta que um pensamento de amor seja emitido pela alma pecadora, e um raio de luz com igual ou maior intensidade lhe penetre o âmago, dando paz e a certeza do triunfo na espera!... Assim é a vida, e assim caminha a humanidade. Amemo-nos uns aos outros e Deus estará conosco, odiemo-nos e o inferno estará plantado nos nossos espíritos, até que a nossa própria conscientização interior permita vislumbrar através dos milênios a grandeza e a infinita misericórdia de Deus. Mas para que isto ocorra, é necessário que a alma retorne centenas, milhares de vezes em carnais diferentes. A centelha ou fôlego sai do Criador simples e inocente, para a Ele retornar simples e consciente, depois de todo o processo de aprendizagem que leva a atingir o ápice da pureza espiritual, conhecimento científico e capacidade de análise filosófica. Este é, decididamente, o simbolismo da Escada de Jacó, relatado na Bíblia Sagrada. O assunto é vasto e depende de longas dissertações, mas se o senhor se interessar, pode começar acreditando que as explicações para tão transcendentais questões mora na firmeza que damos ao crédito em tais misteres, o que tem recebido através dos tempos o nome de FÉ. No momento, não creio ser oportuno enveredarmos por este caminho... Mas como vamos estar hoje e quem sabe por quanto tempo mais, juntos, convido o senhor a se hospede comigo, e teremos chance de conversar. E por falar em hospedagem, vou colocar um carro à sua disposição para que se desloque com facilidade. Quer com ou sem motorista?

_ Com motorista, por favor!... Já dirigi aqui no Rio, mas foi há muito tempo e o caso exige rapidez. Vou devolver o da locadora. Não sabia o quanto ia ter de rodar!...

_ Como estão sendo financiadas essas despesas?...

_ Vou deixar as explicações pra o delegado, que designou a missão!...

_ OK!... Foi só curiosidade. Qual o primeiro passo a ser dado?...

_ Pra começar, por que alguns dos seus caminhões estão sem o logotipo?...

_ É aquela coisa, uma empresa como a minha tem uma rotatividade tão grande na compra e venda de veículos que nem sempre dispõe de tempo pra mandar pintar. Nada de surpreendente. O senhor pode ver que algumas empresas de ônibus, quando compram de segunda mão, via de regra, trazem características da anterior. É muito relativo!...

OK! De que maneira esses caminhões fogem do controle do seu chefe de transporte e vão para tão longe, carregar contrabando?...

_ Eles viajam pra diversos lugares, e só o chefe dos transportes pode explicar!...

_ Vamos verificar isso?...

_ Claro!... – E, ao interfone – Dona Marilda, por favor, chame o Jorge, com a pasta dos caminhões. Transfira as pessoas pra o Bonnelli. Não vou poder atender!...

* * * * *

_ Jorge, veja onde estava o caminhão VK-5802, no dia, qual foi a data, sargento?...

_ 25 de julho do ano passado!...

_ Pois é!... 25 de julho do ano passado!...

O homem folheou algumas páginas e disse:

_ Consta que naquele dia, ele estava alugado à PAVICONST, Pavimentação e Construção, dirigido pelo Valfredo. Regressou com 65.236 quilômetros rodados!...

_ Muito bem, agora, veja onde se encontra o de placa XV-0763?!...

Folheando a pasta, Jorge deixou transparecer uma certa surpresa, e disse:

_ Coincidência!... Também está alugado à PAVICONST... Ela é do Roberto, que trabalhou conosco!... Algum problema com a empresa ou com os caminhões?

_ Mais ou menos!... Dá um tempo!... O que fazemos, sargento?...

_Acho que devemos ligar pra lá e dizer que tem de fazer um serviço de caixa de marcha, emplacamento, qualquer coisa, pra trazerem o mais rápido possível!...

_ Ouviu, Jorge?... É rápido!...

_Posso ligar daqui?...

_ Claro!... É mais rápido!...

Jorge pediu notícia e informaram que se encontrava em Serra Dourada, apanhando um carregamento de madeira. Passou a informação e o Dr. Carlos exclamou:

_ Salafrários!... Alugam caminhão de outra empresa e jogam como isca. Na hora que é apanhado, o ladrão é aquele que está com o furto na mão... Caminhão da ENGETEC, contrabandista ENGETEC!... Graças a Deus, sargento, o senhor está vendo. Que seria de mim, pobre coitado, sem o seu testemunho?... – Concluiu, num lamento.

_ Dr. Carlos, posso saber o que está acontecendo com os caminhões? Afinal, eles estão sob a minha responsabilidade!... – Disse Jorge, quase aborrecido.

_ Claro, Jorge, claro!... A coisa é simples, o sargento Argolo, aqui, é da polícia de Serra Dourada. Há um ano, um delegado de lá foi assassinado e esta primeira placa estava anotada num papel, dentro da agenda dele. Agora de manhã, o outro foi preso, depois que pegou o carregamento de madeira e também um extra de urânio, que está sendo extraído clandestinamente e contrabandeado pra cá. Entendeu?...

_ Muito claro, Dr. Carlos. Mas, quem está usando os caminhões da ENGETEC?...

_ É isto que temos de descobrir. O mais difícil já foi feito... Agora, vamos à polícia, registrar uma queixa, depois à Polícia Federal e meter aqueles pilantras na cadeia. Gasto quanto for preciso, mas não vão passar de liso, abusando da nossa boa fé. Nem uma palavra sobre isso com ninguém, OK, Jorge?...

* * * * *

Aquela manhã foi dedicada ao trabalho policial no registro das queixas. Omitiram, que o contrabando era de urânio e disseram que se tratava apenas de minério. Com um laudo de cada queixa, solicitaram averiguação imediata e prometeram um mandado judicial urgente, de Serra Dourada.

Com as queixas e valendo-se da condição do sargento, foram para a PAVICONST. Exibiram ao proprietário e exigiram satisfações do uso dos caminhões, mesmo sabendo que se entregavam como cordeiros no covil dos lobos, mas, confiando na boa estrela de cada um. Depois de ler os documentos, o proprietário desatou num rosário de lamentações e impropérios contra o Dr. Carlos, que ouviu as ponderações do sargento e declarou:

_ Roberto, nós não viemos criar caso. Só queremos saber o que vocês estão fazendo com meus caminhões, porque o XV-0763 está preso em Serra Dourada, e só Deus sabe até quando. Pelas aparências, a culpa é toda nossa, que somos os proprietários. Hoje, cometi um grande erro em acusar Boni de pertencer a essa quadrilha. O delegado o isentou, e não quero cometer a mesma falta. Quero que saibam de onde partiram as denúncias, antes que cheguem as investigações. Só espero que, assim como Boni, você consiga provar a sua inocência. Vamos ver o que podemos fazer para retirar o caminhão, pois está provado que tem gente da ENGETEC envolvida na quadrilha.

_ Dr. Carlos, o senhor não está pensando que eu tenho alguma coisa com esse caras, não é?... O senhor sabe que eu sempre trabalhei certo, e nunca fiz trambique, não é?...

_ Roberto, quem vai decidir isso é a polícia!... O que eu achei que era minha obrigação, eu já fiz, que foi vir aqui buscar o caminhão e avisar do contrabando. O resto é com vocês e a polícia!... – Mais uma vez, atendendo às ponderações do sargento, retirou-se a fim de cuidar dos outros afazeres. Naquele local, não tinham mais nada a fazer...

CAPÍTULO TRINTA E UM

...e Mexeu Com Todo Mundo

De um orelhão, o Dr. Carlos ordenou à secretária que comprasse duas passagens de avião, para Serra Dourada, nas primeiras horas daquela tarde. Desligou, e comentou:

_ Há um ano, só recebo informações desse serviço, através de relatórios. Veja só que maneira estranha fui encontrar para ir ver de perto o que está sendo feito!...

Riram e entraram no carro, com destino à casa do empresário.

No amplo e confortável apartamento, apresentou o sargento à família, constituída de duas belíssimas mulheres, morenas, cabelos longos encaracolados, corpos esculturais, olhos negros e lábios sensualíssimos, que deixaram o militar embasbacado.

_ Esta é Sandra, minha esposa e esta é Sandrinha, a minha filhinha querida!...

_ É um prazer, senhora!... É um prazer, senhorita!... Eu não sabia que o Dr. Carlos tinha uma esposa e uma filha tão maravilhosamente belas!

Satisfeito com o cumprimento, o empresário disse:

_ Filhas, temos problemas. O Roberto está alugando caminhões para contrabandear urânio de Serra Dourada pra cá. Falei com ele, que se fez de vítima e me acusou de caluniador, porque registrei queixas na Polícia Civil e na Federal!... O caminhão está preso e nós estamos indo pra ver o que há. Querem dar um passeio de avião?...

_ Está falando sério?... – Perguntou a esposa.

_ Viajar com você, papai, é maravilhoso, ainda mais com essa acusação contra a empresa do Roberto. Será que ele está envolvido?...

_ Não sei, filha!... Mas como você estuda Direito, é uma ótima chance de pôr em prática o que aprendeu!... Vamos arrumar as malas?...

_ É pra já!...

_ Então, vou ligar, pedindo as passagens!...

O sargento Argolo consultou o relógio e verificou que ainda faltava algum tempo para o meio-dia. Pediu licença para falar com Alberto e foi atendido pelo cabo Magalhães.

_ Aqui, tudo bem, cabo. O Alberto está ocupado?

_ Vou verificar!...

_ Pronto, sargento, Alberto. Alguma novidade?...

_ Mais ou menos. Estou na casa do Dr. Carlos e viajamos à tarde. Descobrimos que a empresa PAVICONST, Pavimentação e Construção alugou os caminhões. Registramos queixa na Civil e na Federal, e estamos com os B.O.s. Você pode conseguir um Mandado pra o Rio de Janeiro?... Estão esperando pra revirar o caso!... Vai dar o maior rebu!...

_ Vamos fazer melhor. Eu dou o número do Dr. Gil e o senhor fala com ele!...

_ Ótimo. Quer falar com o Dr. Carlos?...

_ Por favor, sargento, dê-me este prazer!...

_ Delegado Alberto, é Carlos Morales!...

_ Oh, Dr. Carlos, é um prazer voltar a falar com o senhor, nesta manhã!... Recebi o telefonema do senhor Bonifácio, dizendo que está tudo bem!...

_ Com o advogado que ele arrumou, não tem bandido que fique na cadeia!...

_ Então o senhor continua achando que ele é culpado?...

_ Não, delegado, prefiro aguardar a decisão judicial. Só não resisti ao impulso de fazer piada. Logo, estaremos pegando o avião. Vou pedir ao Boni pra arranjar um carro!...

_ Quantas pessoas?...

_ Quatro. Minha esposa, minha filha, o sargento e eu!...

_ Vou pedir a melhor suite do hotel, pro dono da ENGETEC. Vão ficar radiantes!...

_ Ora, delegado, não exagera, né? Não sou o Presidente da República!...

_ Pra nós, é mais. Aguardamos ansiosamente pra termos o nosso Sítio Comunitário e o Parque Ecológico, e é a ENGETEC que está proporcionando esta facilidade!...

_ Se depender de mim, será tudo a jato. Por falar em jato, vamos arrumar as malas, que a estrada é longa. Até amanhã, delegado!...

_ Até amanhã, Dr. Carlos. O sargento Argolo, por favor, vou passar o número!...

* * * * *

No almoço, a espontaneidade das mulheres ofereceu ao sargento a oportunidade de se pôr à vontade. Conversaram animadamente e, no campo das confidências mais íntimas, Sandrinha declarou que mantivera um relacionamento afetivo com o Roberto, quando ele trabalhava na ENGETEC, período em que, junto com Boni e Bonnelli, fora o braço direito do engenheiro. Não se casaram porque ela escolhera a faculdade e, mais tarde, ele criara sua própria empresa. Nas raras vezes em que se encontravam dentro da agitação carioca, tratavam-se como bons amigos, não passando disso.

A caminho do aeroporto, o Dr. Carlos transferiu a direção para o Bonnelli, que Boni julgara ser o substituto, horas antes. A incrível capacidade dedutiva de Alberto o isentara das suspeitas e, ao invés do Bonnelli, viajava o dono da empresa.

Com a confirmação da ida do patrão, Boni recobrou o alento na distribuição das tarefas, designou um carro para apanhá-los no aeroporto da capital e ligou para o hotel, reservando acomodações. A notícia agradou sobremodo a peonada, que teria oportunidade de rever a beleza das duas mulheres.

CAPÍTULO TRINTA E DOIS

(Enquanto Chega o Dr. Carlos...)

Alberto estava afogado num oceano de problemas. Ouvia um depoimento após outro, comparava as respostas de um para elaborar as perguntas que faria aos outros, sem perceber que a tarde se escoava com a rapidez do relâmpago, quando Américo perguntou:

_ Vamos ouvir todos, hoje, ou vai ficar algum depoimento para amanhã?...

Alberto consultou o relógio e percebeu que avançara no tempo de tal forma que a noite chegara e ele não notara. Apesar da pressa que tinha de encerrar o processo, concluiu que de nada adiantaria forçar a marcha dos acontecimentos. O que lhe interessava era pegar o chefão da quadrilha. Estava mais do que ciente de saber quem era, mas não tinha a menor prova. Se apenas suspeitas fossem suficientes, já o teria atrás das grades e a passos largos para o tribunal. Certo, que poderia solicitar instruções do juiz e do promotor, mas lhes conhecia a lisura no desempenho das funções e tinha certeza de que exigiriam as provas que ele tanto procurava. Era o boato do veneno na laranja, o segredo do cacique Jutorib, o personagem misterioso da prefeitura, na madrugada da noite anterior... Meu Deus, menos de quarenta e oito horas, e sua vida tomara um rumo tão diferente que ele quase não se reconhecia como o Alberto livre e despreocupado que sempre fora!... Onde estaria Maristela naquele momento?... Era claro que só poderia estar na casa dos pais!... Tudo bem, que estava lá, mas o que estaria fazendo?... Claro que estaria se preparando para o jantar, logo que o pai chegasse, como fazia rotineiramente, para esperar por ele com a guitarra e irem para a praça, encontrar a turma, até a hora de dormir. Tudo bem, que ele rastreava o mais infantil dos pensamentos dela, mas o que ele queria saber não era nada daquilo. Ele queria saber era o que ela pensava naquele momento, saber o que lhe passava no mais recôndito da alma, afinal, só a ouvira desabafar uma vez, mas fora um desabafo mais ditado pelo medo egoísta de perdê-lo do que pelo espírito de solidariedade que ele próprio não houvera descoberto. Se não fosse pela imposição transitiva do governador, talvez ainda demorasse um bom tempo para despertar... Na linha do raciocínio, percebeu que buscava na garota uma mulher diferente da que sempre tivera ao lado, não imposta, mas acomodada pela rotina familiar. Sentia por ela uma infinita ternura, mas não sabia até que ponto a consideraria sua futura esposa. Tinham de conversar muito francamente a respeito... No seu devaneio, surpreendeu-se a si mesmo, tentando descarregar sobre uma criança, ao menos no conhecimento da vida, quando não na idade, as duras experiências por ele vividas nas últimas semanas. Disciplinou o raciocínio a caminhar por diretrizes menos exigentes e mais tolerantes para com ela e voltou o pensamento para o sogro. Não entendia por que se obstinava em manter guardado, ainda que involuntariamente, um segredo sob uma forma de amnésia psicológica de protecionismo. Chamou os cabos para acertarem o rodízio noturno. No dia seguinte teria a proteção salvadora do sargento e não estaria tão sufocado. Encerrou os trabalhos e foi conversar com Afonso a respeito da CPI.

O prefeito após ouvir as explanações ponderou que estava atuando na sua gestão com a maior lisura, mas não escurecia que fora o candidato apoiado pelo antecessor e muitas arrumações tinham sido feitas no desvio de verbas para financiar a candidatura. Uma CPI naquela altura, só traria complicações para o Dr. Silvano, que fora o anterior. Irredutível, Alberto sabia que o vultoso financiamento da mineração só poderia ter saído dos cofres municipais e insistiu, criando um impasse com o executivo, e deixou Agnelo em situação delicada. Sem querer ferir a antiga amizade, o rapaz tentou uma alternativa:

_ Então, Sr. Afonso, ao invés de uma CPI, não seria possível ser instaurada uma auditoria que levantasse os gastos desde o início das obras da represa?

_ Mas, Alberto, por favor, seja razoável!... Você não está vendo que se fizermos o que você está pedindo, os vereadores da oposição vão cair em cima da gente?... Ou será que agora, só porque você é delegado, está querendo ficar contra nós?...

_ Não, seu Afonso, eu não estou contra o senhor. Se fosse assim, eu teria falado com eles, sem consultar. Se o senhor, o Dr. Charles e papai designarem uma comissão auditora, vão saber a verdade, tomam as devidas providências e se resguardam. Quando vier a bronca, estarão safos, pois tenho certeza de que vai estourar muito cedo nas mãos do governador. Hoje prendemos um caminhão da ENGETEC carregado de urânio. O Dr. Carlos Morales denunciou pra a polícia do Rio e o contrabando pra a Federal. Como podem ver, além de estar agindo de parceria com o sargento Argolo...

_ Sargento Argolo?!...

_ Ontem à tarde, eu o designei para ir ao Rio investigar a placa de um caminhão que encontramos na agenda do Euclides. Ele fez o maior rebu por lá e está vindo com o Dr. Carlos. Estarão chegando por volta da meia-noite!...

As inesperadas declarações fizeram o mandatário sentir o peso da responsabilidade sobre os ombros e grossas gotas de suor brotaram-lhe da testa. Ao perceber que qualquer argumento seria inútil, pensou um pouco e disse:

_ Faça o que for preciso. Tem o meu apoio!...

Alberto agradeceu e perguntou ao pai e ao Dr. Charles que com eles estava:

_ Posso deixar com os senhores?...

_ Pode, sim!... – Disse o Dr. Charles. – Mas podemos convidar os Secretários de Administração e de Fazenda, para ajudar?...

_ Se quiserem, por mim, tudo bem. Mas eles estão bem ligados ao Claudino!...

_ E o que tem o Claudino a ver com isto?...

_ Ele é o contador da Prefeitura, não é?... Deve conhecer alguns segredinhos inconfessáveis!...

_ Tá bom. Vamos conversar, pra ver!... Pode ir tranqüilo!...

_ Obrigado!... É um pouco tarde, mas sugiro que iniciem imediatamente. Papai vem trabalhando nisso e podem seguir de onde ele está. Não vou interferir no serviço dos senhores. Só uma advertência, se forem trabalhar à noite, não deixem de pedir segurança. O salafrário tem uma chave e acho que ele gosta de entrar aqui pelos fundos!...

_ Mas nos fundos só tem quintais?!...

_ E tem proteção melhor?...

_ E os cachorros?...

_ São os melhores guardiães. Tem proteção melhor?...

_ Mas, então?!...

_ Pensem o que quiserem, não posso proibir!...

A capacidade dedutiva do rapaz era incontestável e não quiseram discutir. Acharam por bem começar o levantamento e para se orientar, o prefeito perguntou:

_ Qual deve ser o objetivo das buscas?...

_ O mais claro de todos. Precisamos saber como desviaram tanto dinheiro e o Tribunal de Contas não tomou conhecimento, apesar da fiscalização dos vereadores?!...

_ Então, o mais certo é falar com o Claudino. Foi ele quem fez a contabilidade!...

_ É o passo menos indicado. Se houve fraude, o Claudino é a pessoa certa pra ter cometido. Vamos procurar o erro e depois cobrar as responsabilidades. Mas não é mais um problema meu. Se eu for me envolver com ele, o oceano de papéis de depoimentos ficará tão revolto que não haverá bom capitão pra me salvar!... – Levantou-se e perguntou:

_ Papai, o senhor vai pra casa ou vai começar o serviço?...

_ Filho, com o canto de parede que você deu, não tenho outra alternativa. Já tenho um bom roteiro e logo que a comissão ficar definida, passarei os dados que tenho!...

_ Tá!... Vou tomar um banho, jantar e dar uma descansada. Por volta das onze, vou esperar o Dr. Carlos Morales com a família e o sargento. Os senhores também irão?...

_ Vou ajudar no levantamento. – disse o prefeito – Se tiver uma folga, vou dar um jeito. Se eu não for, por favor, dê os meus cumprimentos e diga que amanhã terei prazer em recebê-los para o almoço em minha casa. Os senhores e o sargento estão convidados. Quero aproveitar essa reunião para tomarmos algumas posições. Como o Sr. Bonifácio deverá estar de manhã com o Dr. Carlos, chame-o também!...

Na deixa, o farmacêutico e o engenheiro disseram:

_ Obrigado pelo convite, e dê-lhes meus cumprimentos!...

_ Amanhã, teremos muito prazer em falar-lhes!...

Após o jantar, Alberto lembrou-se de que ainda era um jovem enamorado, e sorriu. Apanhou a guitarra e foi encontrar uma namorada meio desiludida, na certeza de que seria mais uma noite de espera em que ele não ia aparecer. Ao vê-lo, seu rosto triste abriu-se num sorriso e, de um salto, cobriu a curta distância que os separava, e o abraçou.

_ Oh, Beto! Pensei que hoje seria mais uma das noites horríveis que tenho passado, sem esperança de ver você. Mas vendo a guitarra, acho que vamos ter uma maravilhosa noite. Vamos ver o pessoal, na praça?...

_ Vamos, sim!... Só que a partir das onze horas, vou esperar o dono da ENGETEC, que está vindo aí, com a família e o sargento Argolo!...

_ Mas, o que é que você tem a ver com eles?...

_ Hoje, prendemos um caminhão deles, carregado de contrabando, e ele está vindo apurar. Amanhã, você vai conhecê-los. O seu pai convidou pra almoçar, aqui. O meu pai, o Dr. Charles, o Dr. Carlos, a esposa, a filha, o Sr. Bonifácio e o sargento!...

_ E você, não vem?...

_ Não sei... O que você acha?... Vai me convidar?...

_ Acho que meu pai não ia deixar você de fora, não é?...

_ Sei lá?!... O que você acha?... Vai me convidar?...

Encerraram a brincadeira com um beijo e saíram de mãos dadas, para a praça, onde se encontrava a turma de todas as noites, como se os grandes problemas de Serra Dourada e do mundo houvessem desaparecido.

CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

... Mas, Depois, o Mundo Pega Fogo

Doze dias se passaram desde o encontro de Alberto com o governador. A seguir, tinham sido a viagem para a capital e as outras providências, que duraram sete dias até a conversa com Marquinhos. Nos cinco dias seguintes, não mais tinha voltado ao convívio da turma, na praça. Quando ele surgiu de mãos dadas com Maristela, foi aquela algazarra. Com a música fluindo, iniciou com uma balada, depois, cantou ou acompanhou, até um carro parar a pouca distância e o sargento chamar. Passavam das onze e o envolvimento fizera com que esquecesse totalmente o compromisso.

Entregou a guitarra a um colega e foi para o carro. Ao ver a beleza estonteante das beldades, não pôde deixar de soltar uma exclamação e após as apresentações, desculpou-se pela inobservância. Compreensivo, o engenheiro disse:

_ Ora, delegado, nenhum policial pode estar de serviço vinte e quatro horas por dia, ainda mais se tem vinte e dois anos e uma turma alegre como esta. A guitarra é sua?

_ Sim!... Está às ordens. Não sei se tem alguma serventia para o senhor!...

_ Posso ver?...

_ Claro!... Venham comigo, que vou apresentar o pessoal!...

Feitas as apresentações, entregou o instrumento ao engenheiro que o repassou para a filha e pegou o violão. Tocaram, então, um dueto em acompanhamento à bela voz da esposa do empresário. Terminada a surpresa preliminar, o Dr. Carlos perguntou:

_ Que tal um banho? A estrada não é longa, mas hoje o sargento nos alugou o dia e não tive tempo pra mais nada. Se não fosse o advogado que o Boni arranjou, nós não estaríamos aqui e acho que minha empresa estaria desarticulada. Quero dizer de coração que devo muito a vocês e tudo farei pra conservar a amizade de tão grandes homens!...

O pessoal que os cercava, desconcertado com o sentido da conversa, começou a se dispersar com a desculpa de que era tarde e os viajantes precisavam repousar. Alberto ficou a sós com Maristela e pediu ao sargento que os conduzisse ao hotel, enquanto ele apanhava uma viatura, do outro lado da praça. Durante a travessia, procurou levar a moça por locais menos iluminados. Recordou que naquele exato local o Euclides tombara. Olhou fixamente para uma das janelas da prefeitura e apesar de estarem todas escuras, teve a certeza de que havia um vulto imóvel e soube, instintivamente, que se tratava de mais uma emboscada. Jogou-se ao chão, por trás de um canteiro e arrastou a moça na queda. Sacou do revólver e fez fogo naquela direção. Mudou para outro canteiro e gritou para Maristela não se levantar. Correu de modo suicida para a delegacia, pegou o telefone, discou um número e aguardou. Não se passaram muitos segundos e ouviu uma voz feminina, que reconheceu, e perguntou:

_ Alo, Denise?!... Aqui é Alberto. O chefe está?...

_ Alberto, ele foi cuidar dos cachorros. Algum problema que eu possa resolver?...

_ Não, só quero a opinião dele. Eu espero ele voltar. Pode chamá-lo, por favor?...

_ Claro, Alberto, ele está chegando. Querido, o Alberto, quer falar com você!...

_ Alo!...

_ Olá, patife!... Você está devendo mais os vidros da janela, tá? Eu quebro e você paga, se não morrer antes. Onde escondeu o rifle pra Denise não ver? Cachorro, né?... Cachorro é você, se não estou maltratando os bichinhos... Por que não se entrega logo? Sabe quem chegou naquele carro? Dr. Carlos Morales. Você conhece, né?... Pois é, veio, digamos, a meu convite, pra ver as suas falcatruas. Ele está no hotel. Aproveita e manda um dos seus capangas acabar com ele. Vai!... Faz isso, e eu boto a mão em você, de uma vez por todas. Ah, eu estive meio enrolado, de ontem pra cá, porque o sargento Argolo estava no Rio de Janeiro, levantando a placa do caminhão que Euclides descobriu, mas veio também. Agora, compadre é carga dupla. Se segura, que o patinho vai sair todo depenado. Já comeu pato assado? É muito gostoso! Eu já comi e vou repetir. É servido? Não? Que pena! Quando quiser, me diga, que eu mando preparar! A Denise está aí perto? Arranja uma boa desculpa pra justificar esse silêncio irritante. Acho que ela está ficando nervosa, com você só ouvindo, sem falar nada. Olha, aguarda um pouco que vai receber um convite pra uma festinha no nosso ambiente, que estou considerando muito agradável. Você vai gostar! Você reparou que nossas comunicações estavam um tanto mecanizadas? Agora, estamos bem mais íntimos... Você não imagina como eu gosto do relacionamento humano... É tão aconchegante! Você tem momento pra vir, ou pode ser a qualquer hora?... Não gosto de aborrecer os amigos, sabe? Principalmente, uma pessoa tão simpática como você!... Já imaginou o que vão pensar das peraltices que você tem praticado? Não fique tão malcriado, que Papai do Céu briga, viu?... Vai ficar de castiguinho!...

_ Vai pro inferno!...

Alberto ouviu o clique do telefone e deu um sorriso. Discou outro número, e pediu:

_ Por favor, o Dr. Odorico?!... Alo, doutor?!... Alberto! Escuta, doutor, se receber um chamado urgente pra atender um princípio de enfarte, não se preocupa, não, pois foi uma brincadeirazinha que fiz com um certo patife. Ele deve estar a esta hora, mais vermelho do que um camarão, saindo fumaça por todos os buraco!...

_ O que foi que você já andou aprontando de novo, Alberto? Quem é esse cara?...

_ Bem, o senhor é o médico. Se for chamado, vai saber logo. Se não, vai demorar um pouco. De qualquer forma, vou adiantar que é pra o senhor ficar sabendo quem é o poderoso chefão em carne, osso e falta de vergonha. É uma questão de tempo. Desculpe, se não adianto nada, mas é que não tenho provas e posso me complicar, tá OK?...

_ Tá bom, Alberto, não vou insistir. De qualquer forma, obrigado pelo aviso. Assim, vou saber como falar com ele. Mais alguma coisa?...

_ Não, doutor, por enquanto é só. Agora, vou lá na praça buscar Maristela, que ficou escondida atrás de um canteiro. Coitada, deve estar morrendo de medo!...

_ Na praça, atrás de um canteiro? O que significa isso, rapaz?...

_ É uma história, que vem dos tempos do Euclides. Até, doutor!...

_ Até, Alberto!... Faço votos que você desvende logo esse mistério, pois em apenas algumas horas, vi mais coisas do que em toda a minha vida de médico. Onde já se viu vestir uma cama de almofadas tomando soro, pra prender um assassino?!... Parece coisa de cinema!... Só que eu vi no meu hospital. Tá, meu filho, vai cuidar da sua namorada, que se ela não tiver um enfarte, pelo menos resfriada vai ficar. A noite está esfriando!

_ O mundo é um teatro, doutor, e nós somos os atores!... – Concluiu, filosófico.

Desligou e ouviu uma voz familiar:

_ Denise, hein?...

Pálido, olhou a um canto, e viu Falcão, sentado, olhando-o, com um sorriso maroto.

_ O que quer dizer, Falcão?...

_ Você entra como um furacão, não me pede pra sair, diz o que quer no telefone e não quer que eu ouça?... Quem sou eu pra interromper?... Fui obrigado a ouvir!...

_ Falcão, você vê como tenho cuidado deste caso. Lá em casa, me acusou de negligência, e agora, sabe mais que todos. Se não falei nem pro médico, foi porque não tenho provas contra aquele safado. Você é testemunha das falcatruas que ele vem aprontando, e inclusive foi vítima de uma emboscada. Posso confiar no seu sigilo?...

O soldado manteve o sorriso maroto, e disse:

_ Acho que você vai ficar com essa dúvida, mesmo que eu lhe prometa guardar segredo. Portanto, vou por outro caminho. Pense que eu sou um militar e gosto de zelar pela minha profissão. Melhor assim?...

_ Acho que é melhor assim! Veja que apesar do cuidado que venho tendo, com uma palavra entornei o caldo. Ainda bem que foi pra você. Já imaginou se é algum língua destravada? O caldo estava todo derramado. Mas vamos aos fatos. Nós estávamos na praça, tocando, quando o sargento Argolo chegou com os donos da ENGETEC... Cada mulherão, compadre, que você precisa ver... Ainda tocaram e a esposa dele cantou com uma voz que só ouvindo para acreditar... Profissional... Pedi ao sargento pra levá-los ao hotel e vinha pegar um carro pra levar Maristela, quando vi, no escuro, um vulto em uma das janelas da Prefeitura. Me joguei no chão com Maristela e atirei, mas o safado percebeu e se escondeu. Eu sabia quem era e corri pra ligar. Coitadinha da Maristela, deve estar morrendo de medo e de frio, atrás daquele canteiro. Vou lá, antes que dê um troço!...

_ É, o cara tá frito... Isso explica a luz acesa. Mas, como provar? Quem diria, né?

_ Vê?... Agora, vá alguém dizer alguma coisa, e vai direto pro xadrez!... Viu?...

_ Que tal uma passada, lá, pra ver?... Deve estar jogando a casa no chão!...

_ Se você quiser, chame um colega pra uma ronda. Qualquer argumento serve, mas, pelo amor de Deus, não vá fazer como eu. Tem gente demais sabendo desse segredo!...

_ Com medo da minha língua, é?...

_ Não é isso, é que eu quero mexer com os nervos dele, até não agüentar mais e estourar, entendeu? É uma briga de gato e rato que vai vencer quem for mais esperto. Eu estou usando a mesma técnica que ele usou comigo, quando eu ainda não sabia quem era o Pato. Agora, ele é quem está sendo um patinho, e muito feio, por sinal!...

_ Rapaz, você não vai ver a menina? Imagina como é que ela não está, acocorada atrás de um canteiro de jardim!... Se alguém passar, vai ser bem difícil de explicar!...

_ É mesmo!... Vou lá!...

Encontrou Maristela no mesmo lugar, de cócoras, numa crise de choro, rodeada por um grupo de pessoas curiosas ou desejosas de ajudar. Pegou-a pela mão e disse:

_ OK, foi só um sustozinho. A gente vai tomar um sorvete e ela fica bem!...

_ Não foi só um sustozinho. Eu nunca vi você daquele jeito. Eu nunca imaginei que você fosse se transformar assim... Me jogar no chão e sair atirando feito um louco, sem ver em quem. Por que foi que você fez aquilo, hein?... O que deu em você?...

_ Calma, querida?!... Vamos pra casa, que eu explico. Vamos pegar o carro!...

_ Você não tem explicação, Alberto. Eu vi você atirando feito um maluco, pelo meio da praça, e não tinha ninguém pra você atirar. Estava querendo me assustar, não foi? Se foi isso, você conseguiu muito mais!... Você me deixou apavorada... Eu não quero nem pensar no que vi... Eu nunca pensei que o Alberto que tanto amei fosse um maluco... Um maníaco que só porque tem um empreguinho de delegado, pode me largar à toa, e sair pelo meio da rua, dando tiros como um louco varrido!... Eu vou contar pra o meu pai e pra o seu o que foi que você fez... Alberto, eu estou apavorada, não está vendo? Faça alguma coisa. Não fique aí, parado. Veja, meu joelho está ferido da queda que você me deu!...

Ele notou que a situação começava a ficar delicada, deu até logo e saiu quase arrastando a moça pela mão, sem parar de ouvir os lamentos. Entraram no carro e levou-a para casa, onde o prefeito estava terminando de jantar. Tinham ficado na Prefeitura até as dez horas, trabalhando no levantamento das contas. Alberto chamou-o à parte, e disse:

_ Seu Afonso, por favor, tenha cuidado com Maristela. Acabo de ver outra vez um vulto na prefeitura, só que de luzes apagadas. Não esperei o resultado. Me joguei no chão e atirei, quebrando algumas vidraças, mas o salafrário escapou!...

_ Como é que você sabe que ele escapou?...

_ Eu liguei pra a casa dele e disse alguns desaforos. Ele entrou num beco tão apertado que não vai demorar, fica totalmente sem saída, e aí, a gente bota as mãos nele!...

_ Mas, quem é ele, Alberto?... Você fala com tanta segurança!...

_ E, estou seguro, Sr. Afonso!... Eu tenho certeza de quem é o chefão. Só faltam as provas que os senhores estão procurando. Depois, é só trancar a cela, com ele dentro!...

_ Mas, não pode me falar quem é?...

_ Basta o senhor eliminar os que não são culpados, que ele vai sobrar como um elefante na panela de um formigueiro. Não vai ser muito difícil!...

_ Acho que não vou conseguir. Não tenho tino policial!...

_ Se não consegue nem lembrar quem falou sobre o veneno na laranja, não é?...

_ Alberto, você está me ofendendo!...

_ Não, seu Afonso, estou só lhe abrindo os olhos. Tenha muito cuidado, pra não ficar emaranhado nessa rede que o senhor está inteiro dentro dela. Meu pai, eu tiro, mas o senhor, se não tiver cuidado, vai ficar enredado pra não sair mais!...

_ Como é que você vai tirar o seu pai e a mim, não?...

_ Cada coisa, no seu devido tempo! Basta que o senhor se cuide, o resto faço eu!...

_ E o que tenho de fazer, para me cuidar?...

_ Apenas o que pedi pra o senhor fazer!...

_ Mas há implicações, você não entende?...

_ Entendo tão bem, que sei até qual o desfecho final!...

_ Que quer dizer com desfecho final?...

_ Os culpados na cadeia e os inocentes como testemunhas... Mudando de assunto, o Dr. Carlos acabou de chegar com a esposa, a filha e o sargento. O almoço está de pé?

_ Claro!... Obrigado por lembrar. Estava me esquecendo. Vou mandar preparar!...

_ Posso pedir um favor, seu Afonso?...

_ Claro que pode, Alberto, qual é?...

_ Convidar as pessoas daquela reunião. Temos muito o que conversar. Conforme o rumo das coisas, quem sabe, poderei até dar uma pista do chefão?!...

_ Se é assim que você quer, assim será feito!... Almoçamos na cobertura do quintal. Assim, ficaremos mais à vontade. Fica bem assim?...

_ Muito bem, obrigado. Por favor, convide Maristela e dona Suzana, também!...

_ Certo. Mais alguma coisa?...

_ Não, senhor. Só isto. Agora, vou ao hotel, ver o Dr. Carlos. Quer ir também?...

_ Não, Alberto. Nossos assuntos são contrários, e juntos, só vamos atrapalhar!...

_ Então, até amanhã. Por favor, Maristela está em choque e precisa de um calmante.

_ Pode deixar, que cuido disso!...

_ Então, até amanhã!...

_Até amanhã, filho. Boa noite, e se cuide!...

_ Obrigado, seu Afonso!...

CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

Conversas Que Fazem Sonhar

O Dr. Carlos e Boni estavam em calorosa discussão, assistidos pelas mulheres que, interessadíssimas, acompanhavam a conversa. Fizeram uma pausa com a chegada do delegado, para dar as boas vindas. Cauteloso, o rapaz procurou manter-se à margem da conversa, vez por outra dando uma lacônica opinião. Sua intenção era a de não passar informações e ouvir, para comparar com os dados de que dispunha. O gerente relatou os dispositivos administrativos e técnicos, que iam recebendo ligeiras sugestões. Quando se referia, ao caso da jazida, o estado emocional do engenheiro se alterava e passava a acusá-lo de inobservante e negligente. Boni, que naquela manhã tinha sido acusado de traidor, mostrava-se bastante aliviado. Alberto se manteve neutro, consciente de que fizera a sua parte, mas quando percebeu que a esterilidade das admoestações estavam roubando um precioso tempo, lembrou, delicadamente:

_ Eu peço ao Dr. Carlos refletir que, mais do que o Sr. Bonifácio, foram negligentes o Dr. Charles, que é o Secretário de Obras e o tesoureiro, que é o meu pai. Se o dinheiro aplicado em tão vultoso aparato saiu dos cofres municipais, deve ter sido descarregado em alguma conta. Em qual, eu não sei. Agora à noite, nos reunimos com o prefeito e solicitei o levantamento dos gastos das obras. No início, eu queria uma CPI, mas eles ponderaram que o ano passado foi eleitoral e muitas arrumações tiveram de ser feitas. Pedi uma auditoria e o máximo que consegui foi os três, das sete às dez, trabalhando. Por falar nisso, como futuro genro, quero adiantar, que amanhã será preparado um almoço na residência do seu Afonso, no qual ele pretende reunir os envolvidos no caso, que deverá constar de mais ou menos umas dez pessoas, incluindo o Sr. Bonifácio e as senhoras!...

_ O delegado disse futuro genro?...

_ É!... Desde a minha infância, ele e meu pai têm sido muito amigos. Todas as tardes, ele saía com Maristela e, da farmácia, nós saíamos para a sorveteria. Enquanto eles tomavam umas cervejas, nós tomávamos sorvetes e no sério ou na brincadeira, acertaram um namoro que dura mais de quinze anos!...

_ Curioso... Na época atual, quem diria que ainda podem acontecer arrumações de casamentos, ainda na infância!...

_ Devo lembrar que foi uma arrumação espontânea, baseada na ternura que nós sentíamos um pelo outro e permanece. Vez por outra, me surpreendo, perguntando a mim mesmo se é amor ou uma ternura fraternal, e sempre obtenho a mesma resposta: Somente o tempo dirá! E se ainda somos imaturos pra o casamento, por quê preocupar com os sentimentos que nos unem? Melhor, então, curtir a vida dentro dos padrões da moral e dos bons costumes, até que a gente se decida a dar um passo mais sério, que é o natural!...

Interessada no assunto, Sandrinha interveio:

_ Delegado, se esse namoro vem de tão longas datas, quer dizer que o senhor nunca se envolveu com nenhuma outra mulher?!...

_ Devo responder francamente ou usar um subterfúgio? Eu estudo na capital, vou à praia, ao cinema, ao futebol, rotina normal. Se disser que não, estarei mentindo e se disser que sim, posso ser considerando um fanfarrão, depravado e cínico. Então, o que dizer?

_ Desculpe, se fui indiscreta. Eu não devia ter perguntado. Fui mesmo uma boba!...

_ Não tem importância, no seu sentido real. Nunca pretendi ser modelo de virtudes e além do mais, como disse, o namoro vem de longos anos e sei que Maristela não tem a mínima idéia do que significa o relacionamento sexual. Na escola, aprendeu alguma coisa na teoria. Os pais, como é natural, movidos por um incompreensível instinto de proteção, obstinam-se em ocultar os ensinamentos, e ela, de conformidade com o ambiente em que vive, se mantém razoavelmente pura. Posso dizer com segurança que ela é inocente. No colégio, as amizades são bastante selecionadas, no lar, os pais mantêm um padrão discreto de vida que não admite certas intimidades como palavrão e anedotas. Quando sai, via de regra, comigo, a própria música não dá oportunidade de travar relacionamento mais íntimo que o de cantar e bater palmas. Os momentos de intimidade não passam de leves carícias, conseqüentes dos primeiros dias, na sorveteria, o que agradeço aos nossos pais nos terem conduzido por este caminho. Eles nos mostraram desde cedo o que é a ternura, quando, se houvessem proibido, teríamos, provavelmente, descambado para o terreno da rebeldia. Há casos de moças que se sentem tão atormentadas ao ponto de saltarem janelas e, por um natural instinto de vingança, entregam-se aos prazeres do sexo donde advém seguramente uma gravidez inesperada ou talvez até uma doença incurável que poderá levar à sepultura, sem que disso tenham consciência. Este, seguramente, não é o caso de Maristela.

_ Impressionante, como as coisas parecem tão simples, quando as vemos por este ângulo. As crianças crescem num ambiente sadio, sem se preocuparem com o caminho das drogas, da gravidez precoce das doenças venéreas e do terrível monstro invisível que atualmente vem assombrando a humanidade, que é a AIDS. – Disse a Sra. Sandra, que se mantivera em silêncio, durante a conversa. – Nestes anos todos na capital carioca, jamais tive chance de ao menos imaginar que pudesse existir, quanto mais de vir conhecer de maneira singular uma cidade que guardasse pessoas de conduta tão discreta e respeitável. Nos encontros educacionais, temos ditado regras e normas, estereotipado os nossos alunos como se fossem computadores, e esquecido completamente da afetividade do ser humano e, principalmente, de dar às crianças a oportunidade de descobrirem por conta própria a beleza desse sentimento de se sentirem gente, e empurramos goela abaixo um sentimento que queremos dizer sexual. Vejo que o verdadeiro objetivo, a face oculta dessa atitude é nos vingarmos dos nossos pais, dos nossos avós, por nos haverem negado esse caminho, como se eles fossem obrigados a conhecer os fundamentos desses ensinamentos. Pobres coitados, que também foram criados sob a lei do chicote e do caroço de milho sob os joelhos, quando não sabiam a lição...

Alberto interrompeu a reflexão da gentil senhora e falou a respeito de um assunto que de há muito lhe atormentava o espírito:

_ Creio que por ser jovem, sou suspeito pra falar desse assunto, mas tirando por mim e por meus colegas, cheguei à conclusão de que a mente da criança é como uma página em branco. Basta que lhe dêem o título e ela escreverá a história. Por exemplo, as provas bimestrais, ou como forem chamadas, o que provam? Que o aluno não aprendeu? Ora, isso é natural. Os professores deveriam saber antes de entrar nas salas. Eles próprios estão inseguros do que devem levar aos alunos. Os conteúdos estão nos livros!... Por que então não levam a oportunidade de se descobrirem sozinhos?... Como? Muito simples... O ano letivo não é dividido em quatro Bimestres? Muito bem... De parceria com os alunos, o professor divide cada um em quatro ou cinco unidades, por exemplo, às quais dá o nome de força-tarefa, dentro dos assuntos a serem expostos. Assim, num processo de fixação entre si, eles vão buscando o que não foi aprendido e automaticamente estará derrotado o monstro apavorante chamado prova. Daí, uns ajudarão os outros na intercomplementação das respectivas FT’s, na sala ou fora dela. E, por quê, necessariamente, força-tarefa? Se desejamos combater a violência, usemos, então um termo próprio das operações militares, que ele se transformará em didático!...

O Dr. Carlos Morales, de espírito prático, viu que a conversa tomava outro rumo e chamou para a realidade do momento. Começou por agradecer o convite para o almoço, consultou o relógio e viu que passava muito da meia-noite. Propôs encerrarem a reunião, para o merecido descanso. O dia seguinte seria longo e cheio. Combinaram para as seis, quando visitariam as instalações da ENGETEC, a caixa d’água com o Dr. Charles e se possível com o Dr. Gil e o Dr. Sinval a jazida de urânio. Ao pensar nela, Alberto assumiu a expressão grave de quem pretendia falar algo muito sério, pigarreou e disse:

_ Dr. Carlos, o Sr. Bonifácio sabe que temos nas imediações das obras uma Reserva Indígena. Eles vivem aqui há alguns ou muitos séculos. Próximo, existe uma enorme castanheira que foi e continua sendo uma testemunha muda do que tem ocorrido no local. O primeiro que temos registro é o de uma enorme luta entre índios e bandeirantes que acamparam há mais de trezentos anos, pra renovação de gêneros. Um deles tomou-se de amores pela filha do cacique e tentou pegá-la à força. O guerreiro a quem ela estava prometida, seguiu-o mas foi morto, enquanto ela corria e contava ao pai, que entrou em luta com o marginal, levando as duas facções a travarem uma violenta batalha, que terminou apenas com vencidos. O cacique que tanto amava a castanheira deu o último suspiro com a cabeça pousada em uma das suas raízes, e deixou no ar uma maldição contra todos aqueles que ali pisarem com o coração impuro. Os sobreviventes que sabiam ler alguma coisa procuraram registrar os fatos ocorridos naquele fratricídio, ao que, atualmente, chamamos de A Lenda, não por duvidarmos da veracidade, mas por um fato singular que vem atravessando os séculos. Sim, o cacique Jutorib, o que traz a alegria, deixou com a filha sobrevivente um enorme segredo, inviolável até os nossos dias. O Sr. Bonifácio tem conhecimento de alguma coisa, mas pediria ao senhor que aguardasse até amanhã, para continuarmos esta conversa.

_ E quanto ao...

_ É, – interrompeu, impedindo-o de falar do urânio – o motorista do caminhão que prendemos está detido. Tomamos o depoimento e acho que podemos liberar o caminhão. Vou pedir autorização ao juiz pra liberar, a menos que o senhor tenha outro ponto de vista.

_ Eu não entendo bem dessas coisas, mas a Sandrinha está terminando o curso de Direito e pode dizer qual a melhor solução. O que diz, filha?

_ Acho que devemos conversar com o motorista e depois com o juiz, pra ver o que aconteceu. Afinal, nem sabemos qual foi o motorista que foi preso.

Alberto percebeu que a conversa retornava perigosamente para o contrabando e apressou-se em sair. Apertou a mão de Sandrinha e perguntou:

_ Posso usar os seus conhecimentos na tomada de alguns depoimentos? Confesso que estou meio perdido. Minha vida era a que viram, e agora, o disco virou, totalmente.

_ Eu me envolvi com alguns casos, mas coisas de marginais comuns, de corrupção ou causas trabalhistas, tráfico de entorpecentes ou contrabando, mas coisas de lendas indígenas, confesso que não acreditava passassem de histórias infantis ou de folclore.

_ Então, acho que é meu dever advertir... Preparem-se para algumas surpresas e emoções, quando amanhecer. Até logo mais!

Na madrugada, os viajantes mal conseguiram conciliar o sono, que foi povoado de estranhos fantasmas, conforme o sentimento despertado em cada um. O Dr. Carlos viu-se dentro de um labirinto de ferro, cheio de válvulas e totalmente inundado. Ao seu lado, Boni se afogando, quando Alberto chegou com mão salvadora e o retirou. A fisionomia do gerente transformou-se na de outra pessoa muito conhecida, que ele não conseguia identificar. Por trás ocultava-se outra que ele sabia quem era, mas a identidade era uma incógnita. A Srª Sandra encontrou-se no colégio que dirigia, conduzindo um seminário de Educação Sexual, onde tentava levar os conhecimentos adquiridos na curta palestra, mas cada vez que tentava dizer alguma coisa, ouvia vozes que não conseguia identificar, dizendo que os conceitos estavam superados, que em plena era da Informática os critérios não deviam mais ser ditados pela emoção sentimentalista, mas pelo equilíbrio racional. Ouvia, como a fazer chacota dos seus objetivos, risos, gargalhadas ensurdecedoras, que a faziam revolver-se na cama, só recobrando o domínio de si quando acordava e se dava conta de que era apenas fruto da imaginação. Sandrinha, logo que se deitou, viu-se numa pacata aldeia indígena, usando trajes característicos, quando, inesperadamente, foi atacada por Roberto, encarapitado no alto de uma pá carregadeira. Tentou fugir, mas as pernas não obedeciam e a máquina ameaçadora avançava qual terrível dinossauro mecânico, para esmagá-la, quando surgiu Alberto tocando na guitarra uma guarânia tão suave que o monstro foi perdendo lentamente a brutalidade e se acomodando, até que o possante motor passou a ronronar suavemente, como um afável gatinho.

CAPÍTULO TRINTA E CINCO

BOITATÁ Só Diz o Que Pode, Mas o Carbeto Decide

Agnelo estava com os óculos encangalhados sobre o nariz, mergulhado num oceano de pastas de arquivo, tão absorto, que mal ergueu os olhos à chegada do filho. Fez leve saudação e voltou a mergulhar no trabalho. Sabendo o quanto eram preciosos os minutos, Alberto aliviou os passos beijou a fronte do genitor e entrou no quarto. Acertou o despertador e enfiou o nariz pela porta do quarto, informando, num cochicho:

_ Vou acordar às cinco!...

Agnelo levantou o polegar, dando a entender que ouvira. Olhou o relógio e decidiu que o melhor a fazer seria também ir descansar, e disse:

_ Quando o relógio despertar, me chame!...

_ Vai ser preciso?

_ Quem sabe? Nunca se deve confiar!

_ Bom descanso, pai!

_ Obrigado, filho. Pra você, também!...

_ Velho, a carioquinha é linda. Gatérrima!...

_ Amanhã vou ver se você tem bom gosto!...

_ Tchau, papai!...

_ Tchau, filhão!...

O relógio despertou e os dois saltaram das camas, correram ao banheiro e após rápida toalete, Alberto tomou ligeiro café e saiu para os compromissos do dia, enquanto Agnelo voltava a mergulhar no oceano de papéis.

A família do engenheiro estava de pé, lépida, como se fossem a um piquenique. Após as saudações, traçaram planos para a manhã e rumaram para o acampamento da ENGETEC, onde Boni os aguardava com a equipe a postos.

Ciente de que o engenheiro iria querer tomar conhecimento do que ocorria no canteiro, acompanhou discretamente, anotando na memória o que pudesse ser útil, que não era muito, a não ser por um detalhe que lhe chamou a atenção. Recriminou-se por não haver providenciado antes e tentou manter a calma mas, no seu temperamento explosivo, não se conteve, interrompeu a conversa e perguntou:

_ Sr. Bonifácio, quem é o operador daquela máquina?

_ É o Ferreira, por quê? O que há com ela? Algum problema?

_ Sim! E problema dos mais sérios. Se ele não tiver uma ótima explicação, vou ser obrigado a acusá-lo de cumplicidade na tentativa do meu próprio assassinato.

_ O quêêê?!... _ Indagou o engenheiro, irritado. – O que está dizendo, delegado?...

_ É isto mesmo, Dr. Carlos. No abacateiro do quintal lá de casa há duas marcas de balas atiradas contra mim, que vieram da rua, por cima da casa. Se em Serra Dourada não há nenhum guindaste, o assassino só pode ter sido alçado por uma máquina destas. O que é pior, é que tenho a confissão assinada pelo Marcelo, que nos mostrou o poço, na casa da bomba. Na estupidez da minha inexperiência, não perguntei o nome do operador, senão, teríamos o nome dele. Daí, se foi esse Ferreira, ele que se cuide!...

_ Boni, mande buscar esse cara, agora mesmo. Onde é que ele está? Como foi que ele saiu daqui para a cidade com essa máquina? Você não sentiu falta dela?...

_ Dr. Carlos, em um ano, esta e outras máquinas saíram várias vezes pra a oficina, pra abastecer e pra dar apoio na Prefeitura. Essa daí foi muitas vezes tirar o lixo das ruas e fazer outros serviços. Pode ter acontecido em um desses ou em muitos outros momentos.

O Engenheiro acalmou-se da revolta momentânea, e pediu:

_Desculpe, Boni, estou fazendo um esforço muito grande pra me conter com toda essa patifaria na minha empresa. Não vejo a hora de ver esses salafrários na cadeia!...

_ Eu sei, Dr. Carlos, acho que ninguém mais do que eu quer ver tudo isso terminado o mais rápido possível. Se ajuda em alguma coisa, o Ferreira está no hospital, com uma bala na cara. Foi atacar o delegado e se deu mal!...

_ Ufa! Até que enfim, me aparece uma notícia que agrada!... Procurou, e achou!...

_ Não a mim, Dr. Carlos, não a mim!... – Declarou Alberto, com ar sombrio.

_ É! Dos males, o menor. Mas, ao trabalho!... – Sentenciou.

Antes de visitarem as escavações, o rapaz fez questão de apresentá-los aos índios, tanto pelo segredo, como pelo respeito devido ao tratamento que vinha recebendo. Ao vê-los, a moça sentiu tamanha emoção que grossas lágrimas se lhe afloraram dos olhos e rolaram pelas faces. Alberto, retirou o lenço e enxugou-lhe o rosto. Ela encostou a cabeça no seu ombro, e arrancou do cacique o profético comentário:

_ Moça estrangeira muito sentimento na alma trará felicidade a homem com mesmo sentimento. Boitatá homem muito feliz!...

Sem entenderem direito o que dizia o chefe indígena, os visitantes entreolharam-se, o que impediu vissem o forte rubor na face do delegado, que logo se recuperou e, dirigindo-se ao cacique, apresentou:

_ Boitatá tem honra de apresentar Dr. Carlos Morales, sua esposa Sra. Sandra e sua filha, Srta. Sandra, proprietários da ENGETEC, que está construindo a barragem. Se o segredo foi violado, não se sabe por quem, os nobres irmãos poderiam narrar a maranduba do cacique Jutorib, o que traz a alegria, ou desejam calar? Boitatá ainda não falou.

_ Reunir conselho e falar depois. – Disse o cacique, e calou-se.

_ Vamos descer pela casa da bomba. Irmãos poderiam vir? Seria uma honra.

Com um gesto de cabeça, o velho guerreiro ordenou que os membros do conselho atendessem ao pedido.

Na casa da bomba, os visitantes estranharam o que poderia haver de tão importante naquele cubículo que mal poderia abrigar uma dezena de pessoas, até iniciarem a descida. A surpresa no entanto, arrancou exclamações de incredulidade dos visitantes. O Dr. Carlos recuperou-se parcialmente do impacto, olhou para Boni, inquisidor, e, conforme o seu temperamento forte de sangue espanhol, perguntou, rudemente:

_ Boni, eu quero uma explicação convincente. Eu não acredito que você tenha passado um ano em cima de um monumento destes e não tenha nem de leve desconfiado. Eu exijo um relatório completo, e agora. Do contrário, vou terminar o que comecei ontem. Agora, você não tem o argumento de não poder se defender. Eu estou aqui e quero ouvir tudo. Ainda bem que o delegado também está, pra ouvir o que você tem a dizer. Pra ele lhe defender como fez ontem, era preciso ter muita certeza do que estava fazendo. Muito bem, vamos lá, que não temos o dia inteiro!...

Calmo, como se esperasse por aquela explosão, Boni falou:

_ Dr. Carlos, minha maior felicidade, hoje, é a presença do senhor, em Serra Dourada. Eu não tenho mais nada pra acrescentar ao que falei na delegacia, e acho que o melhor seria o senhor ler o meu depoimento. Assim, ganhamos tempo. O que não falei lá foi que se alguém deveria ter descoberto isto, esse alguém seria o próprio Dr. Charles ou mesmo os índios. Mas como o senhor vê, eles que são os moradores seculares, também foram ludibriados. Assim, se durante o dia eu estava cuidando do meu serviço e à noite estava em casa, não poderia nunca saber o que acontecia debaixo do chão.

_ Mas, e essa terra que foi tirada, pra onde foi levada?

_ Acho que só podem ter jogado no rio, durante a noite, quando a água poderia ficar barrenta à vontade, até o dia clarear. Acho que é a única explicação lógica. Mas como o delegado tem dois presos na cadeia e um no hospital, acho que não será difícil averiguar. – E, confiante na sua inocência, resolveu quebrar o clima solene do momento e brincar com Sandrinha. – Acho até que seria um bom treino para a nossa futura advogada enfiar o nariz e descobrir quem são os culpados e quem são inocentes. Eu, por mim, já tive minha dose de suspeita e, graças ao meu padrinho, me saí muito bem. Espero que os outros inocentes também se saiam. Quanto aos culpados, que Deus tenha piedade das almas deles.

O engenheiro ouviu as palavras de Boni e voltou-se para Alberto:

_ Delegado, estivemos no acampamento, na Reserva e nesta babilônia. Podemos ir à delegacia e à prefeitura? Estou curioso de apertar as mãos de pessoas que conheço só por telefone e ver alguns salafrários.

_ Só que ainda tenho duas coisas pra fazer, e pediria um pouco mais de tempo. – Fez uma pausa, olhou para o cacique que se mantivera silencioso, e disse:

_ Boitatá aguarda!...

_ Boitatá grande guerreiro!... Carbeto decidiu trocar fumaça da paz com visitante. Conselho aguarda!... – E bateu em retirada com o séquito.

_ Onde eles vão? – Perguntou Sandrinha, que mal conseguia se conter.

_ Esperar por nós, pra narrar a mais bela história que alguém jamais ouviu. – Deu todo o ar solene de mistério que o caso requeria, o que deixou a moça ainda mais curiosa.

_ E quem é Boitatá?...

_ Sou eu!...

_ Mas, por quê?...

_ Bem!... Porque eles querem!...

_ Mas, por quê?... – Insistiu, irritada.

_ Porque eles são muito generosos...

_ E o que foi que você fez para merecer ser chamado de Boitatá, grande guerreiro?

_ Generosidade deles. Eu só prendi um bandido!...

O engenheiro colocou um ponto final na batalha de palavras, iniciando a subida.

Na castanheira, comprovaram a veracidade das palavras do rapaz. Os moacaras estavam sentados, imóveis como estátuas milenares. Quando faltavam mais ou menos dez metros, Alberto voltou-se para os que o seguiam, tomou a atitude solene de quem tem algo muito importante para comunicar e disse:

_ Ontem, solicitei permissão pra o meu pai assistir a uma reunião desse conselho. Creio que ouviram bem o que o cacique disse, que o carbeto decidiu trocar fumaça da paz com visitante! Entenderam bem? Ele se referiu apenas ao Dr. Carlos. Quanto às senhoras e o Sr. Bonifácio, vou ver ser também poderão estar na conversa. Entendido?

Mais decepcionadas que constrangidas, elas vacilaram mas concordaram. Boni, que estava com eles havia quase um ano, conhecia o tradicionalismo e não discutiu.

Entraram no carro que Boni havia trazido, enquanto eles seguiam para o encontro. A alguns passos, aguardaram o convite do morubixaba, que não se fez esperar.

_ Boitatá sempre bem vindo. Amigo de Boitatá, se fala a língua dos justos, bem vindo, se fala a língua da serpente, pensa antes de sentar e trocar a fumaça da paz!...

O Dr. Carlos inquiriu de Alberto o significado das palavras, que explicou:

_ Muitos segredos seculares serão revelados. Eles pedem que o senhor use o que ouvir apenas em favor da justiça e nunca em benefício próprio ou mero lazer. Se o senhor estiver disposto a cumprir, que se sente, mas se achar que não, é melhor não se sentar. Um compromisso traído, jamais será perdoado por eles.

O cacique tomou a palavra e exclamou:

_ Boitatá falou!...

De espírito prático, o engenheiro começou a entender o significado das tradições, rebuscou no ego os conceitos de moral e solidariedade, e disse:

_ Eu fico!...

Satisfeito com a firmeza do convidado, o cacique falou:

_ Bem vindo o amigo de Boitatá, grande guerreiro branco que tem os olhos da grande serpente de fogo, que voa como o raio de Tupã!...

Outra vez, ignorando o significado das palavras, buscou o rapaz com o olhar e foi recebido com um leve sorriso e a resposta lacônica, enquanto se sentava.

_ É uma longa história. – E, brincalhão: De alguns dias!...

O homem entendeu que deveria apenas ouvir, e decidiu sentar-se e aguardar.

Alberto ergueu o braço, dando mostras de que desejava falar, e o cacique decretou:

_ Boitatá fala!...

_ Boitatá intercede pela moça de sentimento, que deseja ouvir a maranduba do cacique Jutorib, o que traz a alegria, bem como sua mãe e o Sr. Bonifácio!...

O cacique esboçou um leve sorriso e declarou:

_ Boitatá grande guerreiro e defensor, merece moça de grande sentimento. Seja feita vontade de Boitatá!...

_ Boitatá agradece, comovido!... – E levantou-se.

Feitas as acomodações, o cacique iniciou a saga do seu povo, começando pelas origens remotas, numa mesclagem fantástica de monstros e batalhas heróicas e sangrentas. Procurou enriquecer com o máximo de detalhes conhecidos as visitas dos extraterrestres que vinham constantemente em busca de combustível para suas naves, nunca mais tendo retornado ao local após a chegada dos bandeirantes que trouxeram a desgraça aos nativos, culminando com a morte do cacique Jutorib, o que traz a alegria.

_ Enquanto ele falava, as pessoas que o ouviam pela primeira vez, quedavam-se boquiabertas, divididas entre a possível realidade e o medo de estarem sendo vítimas de uma terrível brincadeira, o que lhes poderia causar o maior ridículo se ousassem ao menos por brincadeira citar o fato nos círculos sociais que freqüentavam na capital carioca. Em determinado momento, quando a maranduba se aproximava do final, Alberto ergueu o braço, dando mostras de que desejava falar e o cacique decretou mais uma vez:

_ Boitatá fala!...

_ Boitatá ouviu e sabe, mas pede ao grande cacique que informe aos estrangeiros a maneira como os filhos de Tupã retiravam alimento para suas ocas voadoras do ventre da Terra, e as conseqüências da revelação do segredo nas terras distantes, onde moram?!...

_ Boitatá guerreiro sábio! Filhos de Tupã rasgaram seio da Terra e tiraram alimento pra ocas voadoras no local onde fica totem sagrado. Filhos de Tupã abriram profundo buraco que é lugar sagrado. Só entrarão filhos de Tupã, quando voltarem pra buscar mais alimento pra oca voadora. Lugar sagrado protegido por totem sagrado. Filhos de Tupã colocaram totem sagrado, filhos de Tupã retiram totem sagrado. Amigos de Boitatá fazem segredo de Jutorib, o que traz a alegria e todos amigos. Amigos de Boitatá usam língua de serpente e reserva indígena vira inferno. Amigos de Boitatá decidem ser amigos ou ser serpentes. Conservar ou revelar segredo?!...

Nos poucos dias em que com eles convivera, Alberto podia se considerar um expert no conhecimento dos seus temperamentos. Como ainda tinham muito serviço pela frente, entendeu que o assunto se esgotara e que a entrevista fora dada por encerrada. Convidou os visitantes a se levantarem e declarou para os membros do conselho:

_ Boitatá mais uma vez muito agradecido pela solidariedade!...

_ Boitatá sempre bem vindo!...

O engenheiro, por sua vez, entendeu que o momento não permitia maiores delongas, levantou-se e experimentou apertar a mão do cacique, no que foi correspondido, incentivando-o a prosseguir com os outros. Emocionadas, as duas mulheres não ficaram para trás e secundaram o empresário, seguidas de bom grado pelo Boni, que durante o ano transcurso não desejara outra coisa, senão conhecer-lhes as tradições.

CAPÍTULO TRINTA E SEIS

Sem a Peça-Chave, Nada Feito...

e o Sargento Precisa Voltar

Quando se afastavam da castanheira, Alberto disse:

_ A primeira etapa está cumprida. Agora vamos ver como funciona o carregamento do minério e depois o caminhão carregado. Depois, o que vier. Quero lembrar que a partir do meio-dia, teremos um almoço na casa do prefeito, que não será necessariamente de confraternização, e acho até que será meio tumultuado. Muitas coisas serão ditas e vão machucar os calos de algumas pessoas. Mas seja o que Deus quiser. Ah! Dr. Carlos, vou precisar também do depoimento do senhor. Quero saber como os caminhões da empresa foram usados por tanto tempo no contrabando, sem o senhor estar envolvido.

_ Ótimo! O meu depoimento e o relatório do sargento vão ajudar a desmascarar um trambiqueiro safado que era meu funcionário e saiu pra criar sua própria empresa. Como ele parecia ter um certo interesse pela minha filha, procurei ajudar no que pude. Quando o sargento chegou com o número da placa, o nome que apareceu foi o da empresa dele, alugando meus caminhões pra carregar madeira e, dentro dela, o contrabando de urânio. Já temos uma queixa na polícia do Rio e outra na Polícia Federal. Qualquer coisa, é só o juiz soltar o Mandado e a gente providencia o resto.

_E, quem é esse cara, Dr. Carlos?...

_ É o Roberto... Ele como o Bonnelli e o Boni, gozava da minha inteira confiança... Alias, nunca fiz distinção com meus funcionários... Apesar das dores de cabeça, acredito mais no trabalhar comigo do que no trabalhar pra mim... Se dou uma ordem pra um funcionário, ele cumpre, porque o chefe mandou, mas se peço por favor, ele cumpre com prazer, porque foi tratado com o respeito devido a um ser humano... Entendeu?

_ Eu sou da mesma opinião!... Mas o que eu quis perguntar, foi, Como foi que esse cara, no Rio de Janeiro, descobriu esta serraria, aqui, em Serra Dourada, e o urânio?...

_ Simples... Antes do Boni, ele foi o encarregado da instalação deste canteiro!...

_ O quêê?... Mas isto é muito importante!... Temos de ir imediatamente ao fórum conversar com o Dr. Gil! Esse homem é o que precisamos pra formar o quebra-cabeça!... Ele é o ponto chave de tudo!... Meu Deus!... É bem capaz de ter sido ele a embriagar o índio!... Temos de providenciar imediatamente o Mandado!... O sargento vai fundar o chão daqui pra o Rio!... Daqui a pouco, ele vai voltar pra prender ele, com a ajuda das polícias de lá!... – E o rapaz falava com uma euforia tão contagiante que os circunstantes se sentiam envolvidos pelo clima por ele criado, quando Sandrinha, que se mantinha ligada ao que ocorria, perguntou curiosa:

_O que quer dizer com embriagar o índio, delegado?

_ É como a senhorita ouviu!... Os descendentes do cacique Jutorib mantiveram o segredo como se fosse a coisa mais importante das suas vidas!... Como pudemos ver, o túnel que foi colocado na casinha da bomba é uma entrada falsa para o buraco cavado pelos ET´s. Quer dizer, se o totem foi colocado pra cobrir a entrada, os índios guardaram segredo por todos esses séculos e os contrabandistas fizeram a entrada falsa, isto quer dizer que eles tinham conhecimento exato da localização do poço. Corre por aqui um boato que alguém tentou embriagar um índio pra se apossar do segredo, mas ninguém acreditou, pois não houve mais comentário. Agora que as coisas tomaram esse rumo, não é difícil acreditar que esse Roberto subornou o indígena, que pode ter esquecido a traição, após a bebedeira. É uma pista que não podemos desprezar.

_ Mas, por que, necessariamente, o Roberto seria o responsável pela embriaguez do índio, se tantas outras pessoas poderiam tê-lo tentado?

_ Exatamente! Muitas outras pessoas poderiam ter tentado, mas não tentaram. Sabe por que? Porque desde a batalha que há um código de honra entre os habitantes de Serra Dourada, como uma espécie de pedido de desculpas. Daí, se não foi ninguém daqui, só pode ter sido de fora. E quem de fora se envolveu o bastante pra se enterrar até o pescoço? Só esse tal de Roberto que veio pra Serra Dourada, instalou o canteiro de obras em contato com os índios, dependendo sempre de uma opinião deles, principalmente na demarcação dos limites entre o canteiro e a Reserva, que não podia ser invadida, sob pena de se ver com a FUNAI. No desenrolar dos acontecimentos, ele participa de um piquenique e fica sabendo que é em homenagem aos índios tombados no dia fatídico e, na seqüência, o segredo. Dono de todas as possibilidades, numa das idas ao Rio, leva amostras do solo e comprova a radioatividade. Na volta, aproxima-se mais ainda dos índios até descobrir o que lhe interessa, ou seja, o língua-solta que dá a localização do poço dos ET’s. Chama o topógrafo e pede um levantamento rigoroso entre a casinha e o totem, que lhe permite cavar com toda a segurança, na certeza de que vai sair no poço, bem debaixo do totem. Como um patife nunca está só, foi o bastante bater o dedo por um trocado a mais e não faltou quem cavasse o que fosse, a hora que fosse, sem fazer perguntas. Horas extras da ENGETEC?... Não sei! Conectada a entrada falsa com o poço, nada mais havia a fazer, a não ser retirar o material e contrabandear pra o Rio de Janeiro!...

_ Até aí, tudo bem. Mas como foi que ele conseguiu verba pra aquela parafernália que está lá embaixo? Aquilo é uma verdadeira fortuna!...

_ Não é difícil explicar. Conforme o senhor falou, ele não demorou aqui, e voltou pra o Rio. Conhecendo o Claudino, como conheço, não deve ter sido difícil convencê-lo a colaborar no superfaturamento do material aplicado na caixa, apesar do rigoroso controle do Dr. Charles. Só que ele não controlava as Notas Fiscais que não chegavam às suas mãos e ele não tinha obrigação de saber de notas que ele nem imaginava existir. Ontem à noite, seu Afonso, Dr. Charles e meu pai se empenharam até altas horas no levantamento, mas não será fácil localizar os furos. Se o senhor quiser dar uma mãozinha pra eles, acho que ficarão agradecidos. – Concluiu com um piscar maroto.

Mesmo percebendo o ar de troça, muito compenetrado das suas responsabilidades e aborrecido com as falcatruas, o engenheiro disse:

_ É!... Quem sabe eu não vou dar uma olhadinha naquilo?...

Após o comentário do engenheiro, Alberto voltou à carga:

_ Depois que ele se estabeleceu e começou a receber os carregamentos do minério, já não precisava mais do dinheiro da Prefeitura, pois a venda manteria as despesas!...

_ Parabéns, delegado, seu raciocínio é perfeito e incontestável. Agora consigo entender a causa do respeito que o sargento tem pelo senhor!...

Alberto não ligou para o elogio, e prosseguiu:

_ É uma pena que isto não passe de meras suposições, sem uma única prova. A que podemos usar à vontade, é o caminhão. Através dele, podemos buscar o tal Roberto. Ele vai explicar como é que um caminhão alugado é utilizado pra contrabandear minério de outro estado, ainda mais de uma cidade onde ele chefiou serviços de terraplanagem!...

_ Mas há um ponto que precisa ser levado em consideração, e eu não tenho ouvido nenhuma referência pelo menos por enquanto. É quanto ao assassinato dos delegados. O que o senhor me diz, delegado?

_ Assassinato de delegados? O que quer dizer com isso, papai?...

_ Pois é, filha! Pelo que me contou o Boni, na semana passada, foram assassinados três delegados e quatro pediram afastamento, aqui, em Serra Dourada!...

_ Como é que o senhor não me falou nada, papai?

_ Bem, filha, é que eu disse ao Boni para não se meter nos assuntos que não se referissem à empresa, e do meu lado, também procurei esquecer!...

_ Bom modo de se manter afastado! Três passagens de avião, cinco horas de carro, hotel, e o que mais vier! Imagine se estivesse enterrado até o pescoço, hein? Tá bom!

Alberto entrou na conversa e disse:

_ Não se recriminem. O Euclides era meu amigo. Eu percebi, à tarde, que ele estava nervoso e à noite foi assassinado. Quando falei com meu pai, ele disse pra eu ficar calado, e agora, vejam!... Ontem à noite, quando cheguei, ele estava mergulhado num oceano de papéis, que só se via a ponta do nariz. É tudo igual!... Vamos à luta? Há muito trabalho à espera, e eu não quero chegar atrasado pro rango, que é falta de educação!...

Riram e entraram nos carros, rumo à delegacia.

* * * * *

Mesmo tendo acordado às seis e chegado à delegacia às sete, o sargento surpreendeu-se com o movimento que para ele era inusitado. Pelo menos metade do contingente estava a postos, preocupados com a ausência do delegado. Conhecedor da causa, procurou tranqüilizar o pessoal, informando que Alberto deveria estar no hotel com o engenheiro e narrou superficialmente a aventura do dia anterior e quis saber a causa de tamanho rebu. Quando lhe contaram o que haviam descoberto desde a sua viagem, largou um palavrão que faria corar um monge e disse:

_ Aquele delegado pensa que pode me enganar? Ele armou essa tramóia só pra me afastar e perder essas festa, mas ele vai ver. Nem que o mundo vá abaixo, ele não vai me afastar pra mais nada. Eu quero estar perto na queda do poderoso chefão. Ele vai ver!...

Não tinha fechado a boca e dois carros frearam à porta com a comitiva formada pelo delegado, o engenheiro e as duas mulheres que arrancaram olhares de aprovação dos policiais. Após os cumprimentos, Alberto disse:

_ Sargento, creio que o senhor ou vai ser morador do Rio de Janeiro ou dono de uma agência de turismo. Daqui a pouco, teremos outra missão que não poderá ser cumprida por outra pessoa, a não ser o senhor!...

O militar olhou de soslaio para o rapaz e perguntou:

_ O que quer dizer com morador no Rio de Janeiro?

_ Há uma suspeita muito forte de que o Roberto seja o elo de ligação. Foi ele quem instalou o canteiro da ENGETEC e pediu as contas pra montar firma própria. Alugou os caminhões da ENGETEC pra transportar madeira. Uma parte era usada nas escoras e o restante pra camuflar o urânio. Só o uso dos caminhões já é suficiente pra averiguações, quanto mais com esse monte de suspeitas. Como o senhor conhece a fera e sabe onde ela se esconde, não tem ninguém melhor pra ir buscar!...

Meio decepcionado, porém satisfeito em participar, o sargento perguntou:

_ Quando é que viajo?...

_ Logo que o Dr. Gil assinar o Mandado. Enquanto o Roberto não chegar, muitas perguntas ficarão sem resposta e nós ilhados nas investigações.

_ Está bem, vou arrumar a mala!...

Ouviu alguém pigarrear e risinhos safados às costas. Adivinhando a causa, disse:

_ Está bem!... Ele venceu!... Não se pode ganhar sempre!...

_ O que quer dizer, sargento?... – Perguntou Alberto, curioso.

_ Ora, você venceu, não está vendo? Eu acabei de dizer que você armou uma tramóia pra me afastar e resolver o caso sozinho, e que não ia conseguir novamente, nem que o mundo fosse abaixo. Nem fechei a boca, e você entra com essa conversa, e aí estão eles me gozando. O que acha? Você venceu e eu perdi. O que posso fazer?...

Percebendo o clima que involuntariamente houvera criado, Alberto desatou numa risada tão expontânea que não demoraram muitos segundos e todos riam a bom rir. Para demonstrarem a grande amizade que os unia, espalmaram as mãos e as chocaram à altura dos ombros, cruzando os polegares, num aperto solidário, dando a entender que tudo o que fora dito não havia um mínimo de ressentimento e era pura brincadeira.

CAPÍTULO TRINTA E SETE

Insolência e Temor,

Mas Será Que o Chefe Vai Almoçar?

Acalmados os ânimos, foram tomar o depoimento do engenheiro para oficializar o pedido ao juiz. Alberto mandou buscar o motorista do caminhão para que pudessem vê-lo e dar as informações que o caso requeria. A não ser mais uma decepção para o empresário, nada acrescentou de útil. Seu desconhecimento quanto ao material era real, e acrescentou que se soubesse não teria se envolvido com material radioativo.

Trouxeram o atirador e seus olhos cruzaram com os de Alberto, fuzilando-o. O ódio que sentia por ter sido flagrado era visível. Desviou os olhos para o engenheiro e deixou transparecer claramente a expressão de desdém. Mudou para Sandrinha que sustentou o minucioso exame, quando ele falou pela primeira vez:

_ Olá, gatona, pensei que nunca mais ia te ver. Sabe que tu é muito da gostosa? – A atitude debochada e irreverente fez o pai da moça dar um passo na sua direção, mas foi contido pela providencial interferência de Alberto. O marginal olhou o Dr. Carlos e falou:

_ Tá brabo, hein, coroa? Aproveita que eu tô aqui com essa pulseira e tira a forra. Pode não achar outra chancha!... Vai lá! Aproveita!... Tem coragem não?... Babaca!...

Para evitar problemas, foi recolhido e o outro apresentado. Além de ser língua solta, não tinha nada daquele e, muito pelo contrário, era um bebê chorão. Apareceu na porta e desatou num rosário de queixas, lamentos e agradecimentos que parecia nunca mais querer terminar, quase ajoelhando-se aos pés do empresário, esposa e filha, dizendo:

_ Dr. Carlos, dona Sandra, dona Sandrinha, graças a Deus, estão aqui!... Eu não agüentava mais com esses caras me apertando pra fazer o que eu não queria. Eu juro, Dr. Carlos, que eles estavam me obrigando a fazer o que eles mandavam, ou então eles me matavam. Agora eu sei que vou ficar livre, e vão ter que pagar o que me fizeram!...

_ Tudo bem, Marcelo, tudo bem!... Nós estamos aqui, mas começa a contar o que você sabe. Nós viemos foi pra isso. Agora, se acalma e conta do princípio, tá? – Disse o engenheiro, paternalmente, e perguntou ao delegado: Já tomou o depoimento dele?

_ O que ele disse não dá pra prender nem um ladrão de galinhas. Disse um monte de bobagens que não se aproveita nada, apesar de ter sido flagrado entregando um rifle pra esse outro matar o do hospital... O operador da carregadeira!...

É, aquele sempre foi um mau caráter e até drogas eu acho que usa, mas como é bom profissional, achamos que nunca fosse se envolver nesse tipo de coisas. Como achar um que tenha estrela na testa? São os ossos do ofício de quem trabalha com gente. Alguns são meigos e educados como damas e outros porém, quando desvirtuam, são mais brutais que bestas selvagens. Mas vamos ao que interessa. O que fazemos agora?

_ Vamos ver o juiz e o prefeito. Devem estar pensando que aluguei o Dr. Carlos só para mim!...

_ Não é surpresa nenhuma. Ontem, alugado por um sargento, hoje por um delegado, amanhã pelo que vier. Vou entrar logo pra a polícia, assim fico alugado direto!...

Alberto olhou o relógio e perguntou:

_ A que horas foi o vôo daquele dia, sargento?

_ Vinte e duas horas!...

_ E teve tempo de arrumar?

_ Claro!...

¬_ Então, não precisa ir agora. O senhor só vai se movimentar amanhã cedo, não é?

_ É, sim!...

_ Então, vai almoçar conosco na casa do prefeito, OK?...

_ Tudo bem. E o que faço até lá?...

_ Procurar o cacique e perguntar quem era o índio que mais conversava com o Roberto. Sabendo quem é esse índio, já temos um passo dado pra a solução do segredo do cacique. Ainda não pudemos conversar, mas nesses dois dias muitas coisas aconteceram. Numa delas, eles me deram o cognome de Boitatá. Se o senhor quiser detalhes, conversa com os que estavam comigo, e eles contam as prisões. Pra facilitar, na Reserva, me chame de Boitatá, como se eu fosse um deles.

_ Está certo. Farei isso!...

_ Algum problema, sargento?...

_ Não. Por que?...

_ Estou notando o senhor muito lacônico...

_ Estou só coordenando as idéias. A missão vai depender de calma, perseverança e coragem. Se o cara tem quadrilha organizada, até o avião decolar de volta, vou precisar de muita proteção divina!...

_ Não discordo, e por isso é a pessoa indicada. Qualquer outro teria o dobro ou o triplo da dificuldade. O senhor teve a ajuda do Dr. Carlos. Mas não é hora de preocupar... Ainda faltam no mínimo vinte e duas horas pra enfrentar a fera. O melhor é conversar com o pessoal sobre as prisões. – Disse, com uma certa dose de vaidade. Sabia o quanto sua atuação seria exaltada. – Afinal, ninguém é de ferro e nem de gelo, para não querer um elogio de vez em quando. – Pensou, com um sorriso maroto bailando nos lábios.

Os outros se instalaram no carro da ENGETEC e ele pegou o fusca, enquanto o sargento pegava o chevete com os que tinham sido vítimas da emboscada.

A comitiva foi apresentada ao Dr. Gil e Alberto solicitou o Mandado. Aproveitou para convidar para o almoço, e foram convidar o padre.

Chegaram na sede do Municipal debaixo de enorme expectativa. A comitiva foi recebida com as melhores demonstrações de efusividade, seguindo para o gabinete a fim de trocarem impressões e traçarem planos. Alberto falou dos assassinatos, da placa do caminhão, da viagem do sargento e da viagem do engenheiro, dedicando especial atenção ao segredo do cacique Jutorib, o que traz a alegria, e do suposto modo como o Roberto poderia ter descoberto.

Curiosos com as informações, os três homens não deixaram de ficar impressionados com o que acabavam de ouvir. Durante todos aqueles anos, nem de leve suspeitaram, com exceção, naturalmente do Dr. Charles, que na mina estivera, de que ali debaixo dos seus pés havia uma centenária jazida de urânio e muito menos que extraterrestres houvessem garimpado séculos atrás com seus engenhos fantásticos, que supunham existir apenas na imaginação. As provas no entanto não podiam deixar a menor sombra de dúvida. O rapaz comunicou as suspeitas de haver o Roberto subornado o contador da Prefeitura com a fraude das Notas Fiscais para burlar o Tribunal de Contas, no que foi contestado por Agnelo e pelo sogro. Qualquer pedido de material deveria ser feito pelo Departamento de Compras, dependendo antes de solicitação de compras ou requisição, licitação e tomada de preços, no que o rapaz argumentou:

¬_ E foi por isto que solicitei a CPI. Se o material existe é porque foi comprado. Se foi comprado, foi solicitado. Se foi solicitado, alguém assinou a solicitação. Daí, ou o Claudino falsificou as assinaturas ou então há mais alguém por trás disso. Se há, quem poderá ser? O Dr. Charles que permanece no cargo? O Sr. Afonso que era o tesoureiro ou vamos ter de criar uma Comissão Auditora, já que a CPI não vai ser possível?...

_ Filho, – lamentou Agnelo – você não viu ontem à noite? Mas leva tempo!...

_ Eu sei, papai, e lamento, mas não temos um segundo a perder. Há um assassino solto entre nós que já matou três dos nossos melhores amigos e, podem crer, na primeira oportunidade vai querer levar mais um quiçá apenas por vingança!...

Na crueza da realidade, entreolharam-se indecisos, e Agnelo tomou a palavra:

_ O meu filho tem razão. Eu vi as cascas do abacateiro arrancadas, no meu quintal, conseqüentes de um atentado que ele sofreu. Se não está morto agora, é que seus reflexos e raciocínio são de características acima do normal. – E, concluiu: Graças a Deus!...

_ Ferreira!... Como fui me esquecer?... – Questionou-se o engenheiro, contrariado.

_ Calma, Dr. Carlos, ele está no hospital e não é a mola mestra, e é nela que temos de chegar. Depois vem o resto. É como capturar a abelha rainha pra pegar as operárias. Vem tudo numa boa. A propósito, seu Afonso, pode incluir o Dr. Odorico e os Secretários de Administração e de Fazenda na lista? Sem eles, o quadro ficará incompleto!...

_ Não sei o que você está preparando, rapaz, mas se vem conduzindo este caso com tamanha segurança, não sou eu que vou me opor a este pedido. Sinta-se à vontade pra convidar quem você quiser!...

_ Obrigado! – Discou o número do hospital e pediu: Aqui é Alberto. Por favor, o Dr. Odorico está?... Sim... Obrigado... Alo?!... Dr. Odorico?!... É o Alberto. Escuta, doutor, como foi a noite de ontem para hoje? Alguma chamada de alguém com princípio de enfarte?... Que pena!... Quer dizer que o senhor passou a noite na curiosidade de saber, não é? Escuta, Dr. Odorico, o seu Afonso vai dar um almoço pela chegada do Dr. Carlos Morales, da ENGETEC, com a família, e pergunta se o senhor dispõe de um tempo e dá o prazer de estar presente?... Quem sabe, Doutor?... Numa roda heterogênea de pessoas com os mais diversos pontos de vista, muita coisa pode acontecer!... Se o seu Afonso vai convidar, eu não sei, mas seria interessante que ele participasse, ainda mais com a belíssima voz de pato que tem. Vou perguntar ao seu Afonso se ele vai convidar... Está bem. Até logo mais, Doutor. – Desligou e disse ao prefeito:

_ O Dr. Odorico disse que só irá se o senhor convidar o Pato!...

_ Mas, se eu não sei quem é ele, como vou convidar?...

_ E, se já convidou, sem saber?...

_ Se você sabe e não diz, como vou saber?...

_ Quando o sargento voltar, saberemos quem é o cabra. Antes que me esqueça, vou convidar o Dr. Silvano. Vai ficar uma fera, se não for convidado!...

Fez a ligação e quando foi atendido, disse:

_ Alo, Marquinhos?! É o Alberto! Seu pai está? Chama aí, por favor?! Tenho um recado... Alo, Dr. Silvano?!... É o Alberto!... Dr. Silvano, o seu Afonso vai dar um almoço pela chegada do Dr. Carlos Morales, da ENGETEC, com a família, que chegaram ontem, à noite. Ele pede que o senhor compareça, pois tem assuntos a tratar. Podemos contar com sua presença?... Tudo bem, então, até lá, Doutor!...

Alberto desligou e defrontou-se com olhares hostis de pessoas que aguardavam o final da conversa, quando Sandrinha tomou a dianteira e perguntou com veemência:

_ Será que eu ouvi bem, quando o Sr. Prefeito disse que o senhor conhece o chefe da quadrilha? O que é isto? Está querendo nos fazer de bobos, ou fazer média?...

_ Não é nada disso, que eu não ligo pra essas coisas! Eu só juntei algumas peças e cheguei a uma conclusão, mas não tenho nenhuma prova. Já dei dois telefonemas para ele. No primeiro, desligou sem uma palavra e no segundo, ontem à noite, quando fui pegar o carro, ele tinha me armado uma emboscada de dentro da prefeitura, mas tive sorte de ver. Ocultei Maristela atrás de um canteiro e liguei pra a casa dele, mas ele não disse nada, a não ser me mandar pra o inferno e desligar!...

_ Mas, como é que ele estava na prefeitura e atendeu o telefone em casa?...

_ É que enquanto eu ia da praça pra a delegacia, ele ia da prefeitura pra casa. Sabia que eu ia ligar e tentou se antecipar, mas atrasou um pouco!...

_ E, quem foi que atendeu o telefone?...

_ Outra pessoa!... – Respondeu, laconicamente.

_ Quem?... – Insistiu a moça.

_ Direi mais cedo do que pensam. Ainda faltam dados!...

_ Quais são esse dados?...

_ O sargento foi colher e dirá no almoço!...

_ Delegado, estamos todos neste caso. – Falou a moça irritada. – Meu pai é suspeito de contrabando e eu, na qualidade de estudante de direito, exijo que tais dados me sejam revelados. Do contrário, serei obrigada a tomar providências!...

_ Se é assim, já que a senhorita insiste, vou dizer um deles, está bem?...

_ Pra começar, sim. Qual é ele?...

_ O fator surpresa!... – Respondeu, cinicamente.

_ Voltamos ao ponto de partida!... Não me disse nada!...

_ Engana-se, senhorita. Disse mais do que podia. Eu achava que fôssemos chegar a este ponto, e me preparei pra ele. Agora, a senhorita deve ter percebido que não adianta insistir, pois vamos ficar andando em círculos e só perdendo um tempo muito útil!...

_ Posso ao menos saber quando?...

_ Sim! Ainda hoje, quando juntar as peças, OK?...

_ OK! Não tenho outra alternativa, não é?...

_ Receio que não!...

Sentindo-se derrotada, Sandrinha perguntou aos executivos:

_ Desisto. Posso ser útil em alguma outra coisa?...

Lisonjeados com a oferta, os homens sorriram e Agnelo falou:

_ A senhorita não devia ter se oferecido. Temos tanto serviço no levantamento das contas que não posso dispensar, a menos que seja brincadeira, é claro!...

_ Eu não aceitaria ver meu pai envolvido num problema tão sério e ficar de braços cruzados. Que filha seria eu e que futura advogada estaria sendo, se não me envolvesse até o limite máximo das minhas possibilidades?... – Protestou, com ímpeto.

Impressionado, Agnelo disse:

_ Se é assim, quando a senhorita quiser, estou pronto!...

_ O que me interessava nesta sala era ouvir o nome do chefe da quadrilha. Como não foi possível, acho que de parceria com o senhor, posso chegar a certas conclusões, mesmo que haja alguém tentando me barrar os passos nessa busca!... – Olhou fixamente para o delegado, que recebeu a crítica com um sorriso irônico e um rápido olhar a medir a estatura escultural da moça, que, de pés, estava pronta para entrar em ação. Vendo-a tão disposta, Agnelo não se fez de rogado e, a guisa de despedida, falou:

_ Estaremos em minha sala!...

Fecharam a porta e Alberto disse:

_ Se descobrirem alguma coisa, vai ser de grande utilidade. O homem é osso duro e tenho certeza de que mesmo depois de desmascarado, ainda tentará qualquer recurso pra mostrar sua inocência. Bem, creio que agora os senhores terão assuntos que não me dizem respeito. Vou pegar o Mandado e, quem sabe, fazer algumas coisinhas?!... – Concluiu com um leve aceno e saiu acompanhado dos olhares curiosos dos que ficaram, com uma interrogação a bailar-lhes nas mentes: Que coisinhas seriam aquelas?... Mistério!...

Passou nas salas dos secretários e formulou os convites.

CAPÍTULO TRINTA E OITO

O Índio Delator Apareceu,

Mas É Hora de Almoço

e os Anjos Dizem Amém

Alberto relatou ao Dr. Gil os entendimentos que teve com os índios e a viagem do sargento. O juiz assinou o Mandado e as solicitações de apoio às polícias Civil e Federal. Colocou num envelope e entregou ao rapaz.

_ É quase meio-dia. Vou terminar uns serviços e vou para o almoço!...

Alberto agradeceu e saiu. Encontrou o sargento de saída, que ficou contente com a sua chegada. Apesar da relativa intimidade com a família do engenheiro, sentia-se meio deslocado. Relatou que a pessoa mais chegada ao Roberto não era necessariamente um índio, mas o fruto do relacionamento de um descendente do cacique com uma mulher branca da cidade, e pela linhagem, tivera o privilégio de conhecer o segredo. Lamentável, foi a desventura que tivera dois dias antes. Ao embriagar-se, batera com a cabeça numa pedra e morrera, dentro de uma casa velha, e acrescentou:

_ Rememorei os casos de morte que tivemos e só consegui atinar com uma pessoa...

_ Zé de Ticha!... – Quase gritou Alberto, que acompanhara atentamente a narração.

_ Zé de Ticha!... Eles me deram o nome de Abunã, o que não vem ao caso!...

_ E que vem ao caso! Abunã significa vestimenta preta. Ticha era o apelido da mãe dele. Depois que ela morreu, ele passou a usar luto e a beber, entregando-se de certo modo à vida desregrada de meretrício e más companhias. Daí pra a marginalidade, foi um pulo, de até querer tocar fogo na farmácia do meu pai, depois da assistência que deu à mãe dele, quando estava à beira da morte. Não me surpreendo, e é só mais uma peça que se encaixa no quebra-cabeça. O Roberto vai ter muitas perguntas pra responder!...

O meio-dia se aproximava e ele queria fazer as honras da casa. O almoço não seria de confraternização, mas não seria também um velório. Arregaçaram as mangas e puseram mãos à obra. Era uma mesa com as cadeiras, uma caixa de som, e não perderam tempo. A campainha tocou pelo primeiro convidado, na sua longa batina, abençoando, com voz paternal e não se fez de rogado. Arrancou a batina, arregaçou as mangas e pôs também mãos à obra, tanto na arrumação das mesas e cadeiras, quanto dos pratos e talheres.

Alberto foi à sala, ligou para a delegacia, pediu Falcão na linha e disse:

_ Amigo, você deu um fora em descobrir o segredo, agora, vai ter de agüentar um pouco mais. Preciso de um grande favor seu, pra a gente colocar um ponto final, tá?...

_ Que qui manda, chefe?

_ Olha, da sua atuação vai depender o sucesso desta missão, tá?...

_ Tá! Tá! Mas fala logo, que já estou ficando impaciente. Tá duvidando de mim?...

_ Não. Ninguém melhor do que você pra saber. Só não quero furar. Quando estava comigo, eu segurei, mas agora somos dois e tem de funcionar como um computador!

_ Como no hospital? – Perguntou, em tom sarcástico. Tinha consciência da sua atuação, que salvou a vida do próprio Alberto.

_ Desculpa, vai!... Olha, faltam dez pra as doze, e o pessoal deve estar saindo. Vai lá ver se o seu Afonso já saiu com o Dr. Carlos e meu pai. O importante é você encontrar o Claudino longe deles e dizer que o seu Afonso mandou convidar pra um almoço e que você também foi convidado. Se ele se amarrar, conversa o juízo até convencer. Se não conseguir, abre o jogo e diz que tem ordem minha e do juiz pra trazê-lo, nem que seja a força. Se engrossar, pega na marra. O importante é que seja longe dos que vierem. Depois, na calma, convida o Dominício e o Malaquias, também. O fator surpresa, lembra?

_ Claro! Como não vou lembrar do furacão de ontem?...

_ OK! Tchau, e boa sorte. Quando chegar, vamos tomar um uísque. Chegando aqui, nada de cerimônia e vai logo pro quintal, como se fosse o dono da casa. Basta perguntar se eu já cheguei, e entra me chamando, OK?...

_ Olha só quanta mordomia prum sordeco véio?!...

_ Você merece bem mais do que isso, amigão!... – Falou Alberto, emocionado, cujo pensamento voava a trinta e seis horas antes, no hospital.

_ Tá bom. Deixa eu ir, se não vou perder a caça. Tchau!...

_ Tchau e boa sorte!...

A campainha tocou e Alberto deparou-se com a fisionomia sorridente de Boni, que em pouco mais de vinte e quatro horas passara pelas mais diversas experiências a que pode ascender ou decair emocionalmente um ser humano. Sentia-se o homem mais feliz do mundo, principalmente por estar novamente nas boas graças do Dr. Carlos Morales. Para ele não era o melhor de todos os patrões. Para ele, o Dr. Carlos era o único patrão do mundo a quem se devia estar subordinado. Conduziu-o à área onde estavam o padre e o sargento e procurou da melhor maneira possível fazer as honras. Boni aceitou a dose e na qualidade de gerente da ENGETEC, procurou integrar-se ao grupo. Apesar do que ocorria, na sua concepção, aquele almoço poderia ser considerado uma confraternização entre a prefeitura e a ENGETEC, pelos bons serviços prestados à comunidades serra-douradense.

Minutos depois, começaram a chegar as pessoas em seqüência desordenada. Fora do grupo da prefeitura, apenas o juiz, o Dr. Silvano e o Dr. Odorico, sem contar Falcão e Claudino, chegariam isoladamente. À medida que entravam, Alberto conduzia ao galpão, e servia cerveja ou uísque, não tanto por cortesia, mas para evitar que alguém se isolasse. Gentilmente, procurou formar grupos distintos e em cada um deles um membro da família do engenheiro, para evitar a falta de argumento em qualquer circunstante.

No final da discreta coreografia, ouviu uma voz conhecida chamar alegremente o seu nome. Sabia tratar-se de Falcão e virou-se com um largo sorriso. Colocou um braço sobre os ombros de ambos e os conduziu ao grupo do engenheiro.

_ Dr. Carlos, estes são membros da nossa sociedade que o senhor não conhece. São Dominício, Malaquias e Claudino, secretários de Administração e de Fazenda e Contador. Nas suas mãos passam os cálculos matemáticos da Prefeitura!...

O engenheiro voltou-se ao ouvir o nome de um dos principais suspeitos, estendeu a mão e procurou integrá-lo ao grupo. Satisfeito com o rumo da palestra, Alberto tocou de leve o braço de Falcão e saíram. Ombro a ombro, com um largo sorriso, confidenciou:

_ Rapaz, você é grande. Vamos pra o grupo do sargento e você fica de olho, tá?

_ OK, gostou da lábia no bicho?...

_ Foi difícil de convencer?...

_ Que nada, ele sabia do almoço e estava uma fera com vocês por não terem convidado. Quando falei, ele perguntou por que não convidaram antes. Eu disse que você tinha ficado encarregado, mas esqueceu, e agora, quando as pessoas começaram a chegar, você mandou que eu fosse correndo pra o Sr. Afonso não perceber. O cara ficou todo feliz da vida e acha até que tem um trunfo na mão pra lhe pegar. Chegou ao ponto de dizer que você, depois que assumiu o cargo de delegado, ficou muito do metido a besta e que seu topete vai ser cortado e não demora. É claro que eu concordei!...

_ Ótimo! A melhor arma contra um inimigo é o próprio excesso de confiança que lhe pudermos incutir. Depois, é só puxar o tapete e ele beija a lona!...

O grupo das moças, do padre e do sargento se encontrava em animada palestra. Alberto pediu licença para incluir o soldado e argumentou:

_ O Falcão tem sido o meu anjo guardião. Acho que vou acertar na Loto e tirá-lo da polícia pra ser meu segurança. – Piscou um olho para o sargento à guisa de safadeza, mas que para eles e Sandrinha que já estavam familiarizados, tinha um significado bem mais amplo. Não perdendo a oportunidade de evangelizar, o padre disse:

_ Nem sempre uma arma ou dois braços musculosos são a melhor defesa, mas a prece, em todos os momentos, é o melhor guardião do homem e da sociedade!...

Demonstrando um estado de espírito de extrema euforia, piscou para o padre.

_ Os anjos digam Amém, padre, vamos precisar!... – E foi cuidar de outros afazeres, para não faltar nada aos convidados. Não queria ninguém vencido pela nostalgia.

CAPÍTULO TRINTA E NOVE

Coreografia Para Almoçar?

Quem Fez o Quê?...

Enquanto Alberto se movimentava, era observado pelo sogro que ao notá-lo circular de um grupo para outro, em dado momento, a sós, interpelou-o:

_ O seu objetivo aqui é só o do almoço ou tem mais coisa em vista? Estou notando você ir muito de um grupo pra outro, e nunca foi disso. O que está acontecendo?...

_ Não se preocupe, seu Afonso. Está tudo sob controle. Minha movimentação é pra ter certeza de que os convidados do senhor estão bem!...

_ Não creio que deva chamá-los de meus convidados... A maior parte foi convidada por você, e ao invés da ENGETEC, estão mais ligados aos crimes. Estou certo?...

_ O sargento e o Falcão são meus protetores, o Dominício, o Malaquias e Claudino são da Prefeitura, os outros merecem respeito e não poderiam ficar de fora, não acha?

_ Faça o que achar melhor. Você tem preferência quanto a hora de servir?

_ Quanto mais cedo melhor!... Tenho muito serviço e o sargento vai viajar!...

_ Então vamos convidá-los a se sentarem. Vou dar ordem pra que sejam servidos!

Certo do que viria, usou da mesma coreografia, de forma que cada um se sentasse conforme a posição em que ele estaria. As pessoas notaram que por feliz coincidência, continuavam juntas e podiam continuar os assuntos. Um grupo era formado por Malaquias e Dominício, o Dr. Carlos e o gerente, o contador e o Dr. Charles. No outro, estavam Agnelo, o médico, o promotor, o juiz e o Dr. Silvano, e no terceiro estavam as senhoras, as moças, os militares e o padre, que não perdeu a oportunidade de doutrinar as ovelhas desgarradas. Os assuntos, portanto, quase não foram modificados.

Findo o almoço, Alberto elevou a voz, pediu a atenção e disse, pausadamente:

_ Senhoras, senhoritas e senhores, este almoço não está sendo necessariamente de confraternização, e sim do ajuste de certas pendências. Se alguém não estiver de acordo, tem todo o direito de protestar. – Observou as fisionomias, tensas, como hipnotizadas. Sabiam que incógnitas revelações seriam feitas, mas não os efeitos que causariam. Como ninguém se pronunciasse, recomeçou:

_ Em Serra Dourada, sempre fui tido como filhinho do papai, folgado, playboy, etc, o que não vem ao caso, e virá, no momento certo. Eu jamais tive ambição de ser delegado e muito menos de pegar em uma arma, a não ser nas caçadas que fizemos, meu pai, o seu Afonso, o Dr. Silvano, eu mesmo e muitos outros. Por que sou delegado? Por que estou entre os que me viram crescer com a guitarra, portando um revólver, num almoço que deveria ser de confraternização, mas que terá aspectos dramáticos? Lamentavelmente, eu explico! Dolorosamente, eu explico! Sim, dolorosamente! A data está gravada em minha mente, como se fosse hoje! Foi no dia vinte e cinco de julho do ano passado. Eu estava à tarde na farmácia, quando o Euclides entrou agitado e pediu remédio pra dor de cabeça. Nós tínhamos uma saudação de saravá, desde que comemos um caruru num candomblé, em Salvador, mas ele não me saudou. Notei que algo anormal estava acontecendo, mas tentei brincar e perguntei se era pra dor de cabeça ou pra nervoso. Ele girou nos calcanhares e ganhou a rua. Foi a última vez que o vi com vida. Horas depois, foi encontrado crivado de balas. Quem matou? Quem era Euclides? Era o nosso delegado, mas era muito mais que isso. Ele era o maior baluarte da campanha do seu Afonso. Ele não comia e nem dormia, atrás de votos pra o seu candidato, porque sabia que o progresso estava a caminho. O contrato com a ENGETEC, estava assinado pelo Dr. Silvano, pra o aterro da barragem, um lago pra peixes e, do outro lado do campo da castanheira, um curral pra cabras, um pomar e uma horta comunitária. Mas pra isso tinha de levar água, e a ENGETEC estava cuidando. Havia porém um problema. O delegado de Terras requereu subsolo, a fim de preservar a castanheira e bloqueou o projeto. A ENGETEC impetrou Mandado de Segurança, mas o Dr. Lourinaldo, ecologista doente, não descansou e está sempre revendo o processo e a ENGETEC tendo a maior dor de cabeça, pois tem um contrato a cumprir e uma ordem judicial a obedecer. Quanto ao Euclides, ele passou na casa do Lourenço às vinte e uma e quarenta e cinco e antes das vinte e duas era dado o alarme da sua morte. Se ele falou com o Lourenço e foi morto na praça, então estava indo pra a Prefeitura, para, conforme ele mesmo confessou e confessa ainda, falar com seu Afonso sobre algo muito importante. O sargento Argolo e eu encontramos na agenda um papel com a placa de um caminhão. Ele foi ao Rio e descobriu ser da ENGETEC, alugado pelo Roberto, dono da PAVICONST, e ex-funcionário da ENGETEC, pra contrabandear urânio da Reserva Indígena tirado de um buraco cavado há séculos por extraterrestres. Esse buraco está coberto pelo totem dos índios, segredo que guardam a sete chaves e pelo menos depois da grande batalha, vêm passando só para os descendentes do cacique Jutorib e os anciões que invariavelmente são sexagenários e jamais o trairiam. Mas um descendente do cacique teve um filho com uma mulher conhecida por Ticha e, de acordo com o código, teve acesso ao segredo. Enquanto a mãe era viva, ele era íntegro, mas depois que morreu, entregou-se à bebida e foi cair nas garras do Roberto e revelou o segredo, dando subsídios pra a formação de uma quadrilha de traficantes. Voltando ao Euclides, como poderia ser assassinado à noite, quando teve o dia quase todo a andar pela cidade, e só na hora de contar o segredo é que foi morto? Quem sabia o suficiente pra não deixá-lo falar? Ele só tinha confidenciado ao seu Afonso a descoberta de algo muito grave, mas não disse o quê... Então, ou ele foi morto pelo seu Afonso ou por alguém a quem tivesse repassado o segredo. Mas quem? Durante todo um ano, ele não conseguiu recordar, não que estivesse compactuando com o assassino, mas como uma espécie de amnésia protecionista, como certos pais se obstinam em ocultar as delinquências dos filhos. Inconscientemente, ele não queria acreditar no que acontecia. Mas, passando adiante, vamos encontrar o Epaminondas assumindo e deixando o cargo dois meses depois, de maneira inexplicável, depois de abrir o inquérito da morte do Euclides. Foi substituído pelo Baltasar que misteriosamente também permaneceu dois meses, seguido pelo Enoque, Godô e Miro. A rotatividade constante estava se tornando alvo de gozação, nas permanências, quando o Epaminondas confidenciou ao Fulgêncio ter recebido um telefonema de um personagem misterioso com voz parecida com a de um pato. O Fulgêncio não guardou o segredo e espalhou aos quatro ventos, declarando que ia assumir e queria ver qual era o pato que iria assustá-lo. A resposta veio em forma de chumbo pra ele e uma dose fulminante de veneno aplicada numa laranja com uma seringa de injeção no quintal do Epaminondas pra ele tomar suco, costume de muitos anos, pra manter a garganta em forma. Nós sabemos como ele gostava de cantar... O seu Afonso passou a informação da seringa pra o Sr. Governador, mas até agora não consegue se lembrar quem falou pra ele. Daí, ou ele é o assassino ou, como disse, inconscientemente, está tentando proteger alguém muito querido. O que de certa forma o isenta é exatamente ter ido conversar com o governador e buscar providências. Ele veio aqui, nos encontramos no piquenique e depois de algumas músicas e um jantar, indicou o meu nome pra o cargo. Na hora que assumi, o telefone tocou e o patinho feio me intimou a ficar de bico calado, receber meus proventos e sumir do mapa depois de dois meses. O que ele não sabia era que eu tinha o respaldo do governador e pretendia definitivamente colocar um ponto final nas artimanhas. Comecei de leve a enfiar o nariz nas patifarias, que o aborreceu e mandou tocar fogo na farmácia do meu pai por um carinha que está preso. Naquela noite, não descansamos um só segundo, patrulhando. Ele abriu a guarda e cometeu dois gravíssimos erros que o denunciaram definitivamente. Sem querer tomar tempo, vamos fazer uma retrospectiva pra a conclusão. Primeiro, o Roberto, após embriagar o índio, precisava de verba pra financiar o projeto. O modo mais simples eram os cofres públicos e subornou o contador da Prefeitura... – Inquieto, o Claudino quis tentar se defender mas foi contido pelo delegado que, de pé, com um gesto autoritário, disse: Cala a boca, eu não estou pedindo a sua opinião. Estou fazendo uma acusação e vou lhe prender!... – E continuou, na certeza de que o sargento e o soldado estavam vigilantes. – Este homem é o que vem manipulando o dinheiro público. Sabemos que a função do tesoureiro é a de emitir os cheques das contas que lhes chegam às mãos. A movimentação, portanto, de Notas Fiscais e toda a papelada a elas relacionada são atribuições específicas do contador, quer dizer, o contador é a mola mestra não só da Prefeitura como de todos os setores econômicos. Daí, por este motivo, quero neste momento declarar na presença das mais altas autoridades de Serra Dourada que o senhor Claudino da Silva Souza está preso por fraude, corrupção, estelionato, suborno e outros crimes correlatos que lhe forem imputados. Resta agora saber quem matou Euclides, Epaminondas e Fulgêncio. Teria sido o seu Afonso? Ele estava na prefeitura trabalhando na coordenação da campanha. Ele atira bem demais pra acertar os tiros daquela distância e assume as características de suspeito, senão, vejamos. O seu Afonso sabia que o Euclides estava de posse de um segredo e que iria revelar. O seu Afonso estava na prefeitura na hora do crime, pois o Euclides estava indo pra lá contar o que sabia. Mas haviam outras pessoas que não deviam saber da verdade. O seu Afonso disse ao Sr. Governador que o Epaminondas morrera envenenado por uma droga injetada com uma seringa na laranja mais próxima, coisa que até hoje ninguém fez referência e nem ao menos cogitou de tal hipótese. Ora, como uma pessoa seria detentora de tantas informações sem estar envolvida diretamente com os crimes? Eu não queria acreditar na sua culpa, mas não tinha meios de inocentá-lo. Todas as provas, todas as evidências estavam contra ele, e já me dava os pêsames por ter de dar voz de prisão ao homem que, indiretamente, ajudara meu pai a me criar. Além disso, na mais tenra idade, me dera a filha como namorada, que conservo até hoje com o máximo de respeito. Só havia uma solução, prendê-lo e confiar em Deus que a filha me perdoasse, pois ao aceitar o cargo já me dominavam estas suspeitas. Só haviam então, dois caminhos, ou ela me perdoaria, ou com a prisão do pai nosso namoro de tantos anos chegaria ao fim. – Parou um pouco, refletiu e analisou as fisionomias, cujos olhares estavam fixos na sua figura e vez por outra davam uma rebuscada acusadora na do prefeito, que se remexia inquieto. Não conseguia esquecer as palavras do rapaz de doze horas antes, quando dissera que o pai ele tiraria mas a ele, se não tivesse cuidado, ficaria todo enredado para não mais sair. Alberto olhou significativamente para os militares e entenderam que a partir daquele instante ele sairia das conjecturas e entraria nas acusações diretas, e se prepararam para o que viesse. – Quis o destino, porém, que dois fatos isolados acontecessem em momentos e locais diferentes e pude presenciar. Um telefonema e uma luz acesa, de madrugada. O que há de tão estranho ou comprometedor num telefonema ou numa luz acesa, de madrugada? Nada, se a pessoa que faz as duas coisas é inocente, mas se é um refinado assassino, se é um patife que só merece a cadeia, essas duas coisas têm um significado muito grande. E foi o que eu vi. Eu descobri o patife assassino por um telefonema e por uma luz acesa. E que telefonema foi esse? O Fulgêncio foi afastado de casa por um telefonema, pra achar a morte na porta. Com o seu Afonso, talvez não fosse na porta, mas seria por causa do telefonema. O mais simples e inocente dos telefonemas, convidando pra mais uma partida de canastra. – O Dr. Charles Burnier saltou da cadeira, como impulsionado por uma mola. Firme, Alberto determinou: Sente-se, Dr. Charles, o senhor não está autorizado a falar, ao menos por agora. Há dúvida? A quem o seu Afonso confiaria o segredo? Quem poderia ser tão mau e ter tanta aproximação com o seu Afonso pra sugerir que o veneno poderia ter sido injetado na laranja, sabendo que ele tem boa fé suficiente pra acreditar no que lhe diz um grande amigo, mesmo tendo sido uma suposição? E, finalmente, quem é a única pessoa em Serra Dourada que pode ter livre acesso na prefeitura, sem que o vigia noturno perceba? Ora, a única pessoa que pode se dar ao luxo de ter uma chave da porta dos fundos e andar no meio dos bravíssimos cachorros que ficam todo o tempo no pé do muro que limita com a Prefeitura, é o próprio dono dos cachorros. Nem sua esposa Denise e nem seu filho Marquinhos têm essa coragem. Quem é ele? Por quê fez? Ambição!... Pura ambição!... Quantas armações não fez com o Roberto? Desde que tomou conhecimento da existência do urânio na região da castanheira, não tem pensado em outra coisa. Ele chegou a contratar em caráter particular os serviços da ENGETEC pra anular o tombamento feito pelo Dr. Lourinaldo. Não há mais escapatória!... E pra formalizar a acusação, pergunto ao Dr. Carlos Morales e ao Sr. Bonifácio se o topógrafo é o mesmo ou foi substituído?

_ É o mesmo!... – Responderam.

_ Ele será indiciado como intermediário entre o Roberto e o chefe da quadrilha!...

Finda a explanação, em tom solene, olhou para o juiz e o promotor, e disse:

_ Dr. Gil de Castro Menezes e Dr. Sinval José dos Santos como delegado nomeado pelo Exmº. Sr. Governador do Estado, para a cidade de Serra Dourada, quero entregar aos vossos cuidados a conclusão deste caso, com a revelação do nome do chefe dessa impiedosa quadrilha que espalhou o terror e a ignomínia entre os nossos mais honrados concidadãos. O homem que tem vivido como um dos nossos, galgando as mais altas posições, não passando de um reles e vulgar assassino e ladrão é este... – E, apontando fixamente com o dedo acusador, declarou:

_ Com os poderes que me foram deferidos pelo Exmº. Governador do Estado, em presença do Meritíssimo Sr. Juiz de Direito da Comarca de Serra Dourada e demais autoridades e pessoas presentes, baseado nas provas apresentadas, Dr. Silvano de Almeida Chagas, o senhor está preso!...

CAPÍTULO QUARENTA

Vitória & Derrota

Um surdo murmúrio, e o prisioneiro, como o Claudino, baixou a cabeça, com os braços arriados sobre as pernas. A atitude humilde chegou a penalizar algumas pessoas. Primeiro foi um sussurro, que foi-se elevando até se perceber que ele dizia alguma coisa.

_ Eu tinha a intuição de que você não ia fugir como os outros, e fui mais longe. Eu dizia pra se cuidarem pois a esposa ou um dos filhos podia sofrer um acidente, e eles faziam o que eu mandava. Você não acreditou no microfone... Eu ouvi todas as suas conversas. Não acreditou nos telefonemas nem nos tiros. Parecia que cada ameaça era um desafio novo e maior que tinha de superar, e eu fui gostando. Só não esperei que estivesse aqui na hora do telefonema do Charles. Era hora da janta e eu estava ouvindo as conversas na sua casa, mas já tinha acertado o jogo de canastra e não podia voltar. Não esperei também que fosse ligar uma coisa com a outra, nem que passasse àquela hora na praça. Os planos estavam falhando e eu fui pegar os documentos comprometedores. Dei azar. Os arquivos estavam fechados e não podia acender a luz. Sou obrigado a reconhecer que você não é o moleque irresponsável que imaginei e sua inteligência é realmente brilhante. Você errou quando disse que o Roberto tinha embriagado o Zé de Ticha e esqueceu que ele trabalhou na minha fazenda. Seu raciocínio direto não deixou que olhasse as alternativas paralelas e preferiu acreditar nisso. Eu soube do urânio bem antes de me candidatar, mas esperei o momento. O Lourinaldo não ia deixar escavar o solo e a FUNAI protegeria a Reserva. Eu não tinha com que me preocupar. Quando fui eleito, comecei a preparar o Afonso, que era o tesoureiro, pra assumir o projeto comunitário. Eu sabia o quanto ele se dedicaria e que Euclides tinha verdadeira adoração por vocês. Só cometeu o erro de ver o caminhão recebendo a carga. Foi olhar por baixo e ouviu os comentários. Mas foi visto, e eu fui comunicado a tempo. Posso dizer com segurança que você é um gênio. Mas é a sua genialidade que se torna um desafio. Eu sou um jogador, e não me considero derrotado. A vida continua, e você não vai se livrar da minha vingança... Eu falei e você não acreditou. Você vai viver, mas a pessoa que mais ama vai pagar caro... – E enquanto os circunstantes ouviam a batalha de palavras, moveu-se rapidamente e Alberto adivinhou qual seria a vingança. Mas era tarde. O Dr. Silvano tinha uma arma escondida, Deus sabe onde, e estava subindo velozmente para cima da mesa e seria disparada, não contra ele, mas contra a pessoa amada. Sentiu que não poderia bancar o caubói. Não se tratava de impedir de atirar, mas de salvar a vida. E, sem pensar, sem mesmo entender, num espetacular salto digno do mais ágil acrobata, voou por sobre a mesa, ainda com muitos pratos, e recebeu no tórax o projétil disparado para a cabeça de Agnelo. Na simultaneidade dos grandes campeões, os militares dispararam, ainda que, muito tardiamente, atingindo o facínora no peito, empurrando-o ao chão por sobre a cadeira em que estivera sentado.

Indizível, indefinível e intraduzível foi o clima gerado no momento. As mulheres gritavam desesperadas ao verem Alberto com o peito jorrando aos borbotões, dentro dos pratos que ainda continham grande parte dos acepipes. Os homens se moviam, tirando o rapaz da mesa, ou verificando se ainda estavam vivos. Agnelo, em desespero, abraçava o corpo do filho, aumentando a dificuldade dos que tentavam salvar-lhe a vida. Por sobre a algazarra, ouvia-se a voz severa do Dr. Odorico ordenando que Agnelo fosse afastado e Alberto conduzido ao hospital, antes que fosse tarde demais. A dedicação pelo rapaz fizera o catedrático esquecer por momentos os deveres de médico, que só voltou a atenção para o ex-prefeito depois que providenciou a remoção dele.

As pessoas recobraram o domínio sobre as próprias fraquezas e tentavam atender aos gritos desesperados de Agnelo que tinha percebido a manobra do filho. Ele dissera continuamente que não queria sangue derramado, e o bandido reservara aquela terrível vingança para atingir o mais profundamente o rapaz, na dor de perder o pai que, sabia, era, na verdade, a pessoa a quem mais amava no mundo e ofereceu a vida em troca.

Tomadas as providências de hospitalização, o sargento procurou o juiz.

_ Dr. Gil, talvez não seja o momento mais indicado para tratar do assunto, mas pela dedicação que este rapaz vem dando ao caso, mesmo em defesa do pai, ofereceu a própria vida, gostaria de saber se o senhor poderia conduzir o processo de nomear outro delegado para continuar os depoimentos. Se Alberto tombou, levou consigo o cancro e qualquer dificuldade agora será bem menor. Pra o senhor ter uma ideia, na noite que passamos rondando, eu cheguei a falar com ele... Logo que o dia amanheceu, o pato ligou pra Alberto. Depois que desligou, após uma crise de nervos, recuperou a calma de tal forma que só vendo pra acreditar. Ligou pra alguém e disse tantas coisas, na certeza absoluta de quem era o chefe. O telefonema do Dr. Charles e a luz acesa o colocaram na trilha certa de tal forma que ele não duvidou em nenhum momento. Ele me entregou o telefone e pediu entre risos que tentasse arrancar uma palavra dele, pois parecia só saber fungar.

_ Tudo bem, sargento, se o senhor me pede essa providência, acho que a pessoa mais indicada é o senhor, que vem acompanhando as investigações desde o início, e sabe quais são os passos a serem dados.

_ Fico grato, Dr. Gil, mas tenho de ir ao Rio de Janeiro prender o Roberto que é o elo do processo. Por isto, gostaria que o meu nome fosse substituído ao menos em caráter provisório pelo da senhorita Sandra Morales. Ela estuda Direito e tem muito interesse em provar a inocência do pai, que tem a empresa muito envolvida.

_ Nada em contrário. Por que ela não veio? Não foi comunicada?

_ Não senhor, Meritíssimo, preferi sugerir primeiro ao senhor e depois falar com ela. Além disso, precisamos comunicar ao governador a tragédia. Conforme Alberto falou, ele tem mais interesse neste caso do que possa parecer!...

_ O que quer dizer, sargento?...

_ Antes de ontem, quando viajei pra o Rio de Janeiro, Alberto me deu o número de um telefone que não é nada mais, nada menos do que o telefone secreto do próprio governador. Com ele, mesmo à noite e fora do expediente, peguei dinheiro pra viajar, depois de ter conversado pessoalmente com ele. Há poucos instantes decidi ligar pra ele, mas antes preferi vir me entender com o senhor, pra fazermos uma comunicação só!...

_ Muito bem, sargento. Desta forma, relataremos o episódio, informaremos a sorte de Alberto e pedimos a nomeação da moça. Onde ela está?...

_ Deve estar no hospital, que é onde se encontra metade da população, em busca de notícias. No telefonema, temos de pedir verba pra a viagem, também!...

_ Certo, sargento. Dr. Silvano, hã?!... Quem diria?!... – Ponderou, laconicamente.

_ É, o Dr. Silvano!... – Respondeu o sargento. E saiu, puxando suavemente a porta.

CAPÍTULO QUARENTA E UM

Terrível Angústia, Mas a Missão Foi Cumprida

A porta do hospital parecia uma empresa paulista de metalurgia em greve. Homens, mulheres, crianças e adolescentes atropelavam-se em busca de notícias. A guitarra fizera de Alberto na sua bondade infantil a pessoa mais querida de Serra Dourada. As senhoras que tinham sido amigas de sua mãe, formavam correntes de orações, rezando ou cantando. A família Morales era como uma extensão daquela comunidade que por tantos anos estivera ligada ao jovem, na música e agora, na dor, às portas da morte, se o pior já não tivesse ocorrido.

A beleza das mulheres não deixava que elas passassem despercebidas e o sargento não teve dificuldade. Eram, na multidão, como dizia Alberto, como um elefante na panela de um formigueiro. Comunicou a decisão do juiz, apanhando-os totalmente desprevenidos. Ponderou as vantagens da aceitação e não encontrou resistência. Se Alberto tombara pela mesma causa que os trouxera, nada mais lógico do que dar continuidade ao trabalho. Ademais, Sandrinha sentia-se em débito com o rapaz. Como fora tola em querer arrancar o nome do chefe da quadrilha!... Se ele tivesse dito, jamais teria conseguido desmascarar o culpado e ainda teria entrado num tremendo processo de difamação. Apenas, conforme ele dissera, o fator surpresa pôde culminar em êxito o empreendimento.

A moça fez o juramento e assumiu o cargo, enquanto o sargento repetia os passos de dois dias antes, só que em circunstâncias bastante diferentes. Da outra vez ele fora em busca da placa de um caminhão. Desta, porém, em busca de um marginal envolvido com uma quadrilha que não vacilava em matar, mesmo estando fora de combate o chefão. Alberto fora um bravo? Ele também o seria, custasse o que custasse!...

Regressou ao gabinete do juiz para, sozinhos, fazerem a ligação. O governador poderia não achar de bom alvitre tantas pessoas conhecerem o segredo do telefone, além do mais, ainda não estava comprovada em definitivo a inocência do empresário. Quanto à nomeação da moça, pediria aos cabos que ficassem de olho na sua atuação para verificar se ela seguiria a mesma política de Alberto ou derivaria para outras bandas.

Abasteceu o gol, escalou os soldados e partiu para a missão que, apesar de mais esclarecida, parecia bem mais difícil. Sua vasta experiência e consciência do dever a ser cumprido, porém, tornavam as coisas se não mais fáceis, mas realizáveis.

O Dr. Odorico, incansável, coordenava a equipe, ora conduzindo uma cirurgia, ora outra. Vez por outra, auxiliava na sutura de um vaso, no afastamento de uma costela ou uma massagem a fim de evitar uma parada cardíaca. As cirurgias exigiam cuidados especialíssimos. O rapaz estava vivo por milagre da Providência Divina. O projétil tinha atravessado o mediastino e só não atingiu o coração porque teve passagem em momento sistólico e só foi possível a descoberta da posição, incrustado no encontro de uma costela com a vértebra, por radiografia, quando o racional, pelo ângulo de penetração, teria sido atravessar o músculo cardíaco. Desse modo, a cirurgia não poderia ser por onde ocorrera a penetração, mas em decúbito ventral. O Dr. Silvano recebeu as balas nos dois pulmões e não apresentava muitas perspectivas de salvação. As perfurações impediam a respiração e o ar escapava para o interior das vísceras formando bolsas nos tecidos e dificultando a eliminação do gás carbônico, envenenando as células.

Em outra ala, o farmacêutico dormia um sono agitado, à base de forte sonífero. Articulava palavras desconexas e levantava-se aos gritos de meu filho, caindo novamente em sono letárgico que durava uns poucos minutos e recomeçava todo o ciclo. No leito vizinho, Maristela sofria transe semelhante. A felicidade que sentira ao ver o noivo na coordenação do banquete dera lugar a um violento choque emocional por ouvir a dupla acusação que ele fizera contra seu pai e o desfecho final não fora bastante para reintegrá-la no domínio das faculdades. Quando retornava, aos poucos, enquanto o Dr. Silvano falava, foi maior o choque ao vê-lo tombado com o sangue a jorrar dentro dos pratos e quedara-se estática no mesmo lugar em que estivera durante o almoço.

O prefeito trancou-se no escritório a fim de rememorar os acontecimentos a que estivera presente no ano transcurso e pela sua mente desfilaram como num filme que tivesse estado enlatado. Estalou-se-lhe aos ouvidos o telefonema do Euclides, aflito, dizendo que presenciara uma coisa muito comprometedora, e marcaram encontro para a noite, onde estaria reunido com o prefeito. Viu-se conversando com o Dr. Silvano e comunicando o telefonema e o interesse deste em querer saber de mais detalhes. Mas o ápice das recordações foi o da cadeira. Por que cargas d’água, o chefe do executivo deveria entrar no banheiro com uma cadeira, dizendo que ia consertar um vazamento na descarga do vaso? E que descarga seria aquela, se a do gabinete era embutida e a boca não passava de um metro e meio de altura? Então, a cadeira teria sido usada para atirar no pobre do Euclides, pela janela de ventilação que dava plena visibilidade da praça!... Bem mais recente fora a notícia da morte do Epaminondas... E quando comentaram, ele, já prefeito, menos de trinta dias antes, lembrou-se claramente das palavras do Dr. Silvano, como em momento de reflexão: ... ora... Se ele morreu enquanto bebia a laranjada, deve ter sido alguém que aplicou veneno na laranja, sabendo que ele ia colher hoje cedo... Mas que idiota fora!... Ele, o mandatário ser tratado como um garotinho de recados... E mais, colocado como suspeito número um dos assassinatos!... Sorte sua que nunca fora um língua solta, que lhe valeu evitar tamanho dissabor.

Com lágrimas nos olhos, rememorou as conversas com Alberto e compreendeu que o rapaz durante todo o tempo soubera quem era o assassino e o incitava a raciocinar, enquanto ele, como uma mula velha, obstinava-se em, mesmo inconscientemente, ocultar uma verdade que lhe saltava aos olhos, tão clara quanto a luz do dia mais ensolarado. Como fora idiota!... Quanta admoestação recebera, inutilmente!... Não tivesse o rapaz a mente tão brilhante nas deduções, e só Deus sabe quantas mortes ainda iriam ocorrer, inclusive a sua, que, mesmo inconscientemente, era dono dos maiores segredos!...

No final da tarde, levantou-se decidido e foi em busca do Dr. Gil para dar seu depoimento. Desapontado, verificou mais uma vez que se encontrava um passo atrasado. O sargento viajara para o Rio de Janeiro e a moça carioca assumira o lugar de Alberto. Como para recuperar o tempo perdido, tocou para a delegacia, prontificando-se em passar à moça as informações que tinha, inclusive levá-la à prefeitura, de cujos fundos puderam ver as marcas da escada, apoiada que fora, no muro da casa do Dr. Silvano.

Deram a volta ao quarteirão e depararam com a esposa e o filho do ex-prefeito, ligados, num abraço desesperado de mútuo amparo. Ao ficarem sabendo da notícia, foram ver o que acontecia e por pouco não foram apedrejados, como se a responsabilidade fosse deles, das patifarias do dono da casa. Penalizados, tentaram inutilmente dizer palavras de conforto, mas a dor e a vergonha superavam qualquer argumento mais racional.

Mesmo compreendendo o sentimento familiar, a moça providenciou com o juiz um Mandado de Busca e Apreensão a fim de vistoriar a mansão, acompanhada de um fotógrafo e dos militares, compenetrados de peritos. Com muito sacrifício, conseguiram aprisionar os cachorros e tirar fotografias da sede do Município, do outro lado do muro. Sabiam que as respostas só poderiam estar ali e revistaram a mansão de alto a baixo, nada encontrando de comprometedor. Sandrinha resolveu dar buscas no canil e encontrou farto material de gravação, armas, munições e tudo o que se relacionasse ao caso. Recolheram as provas e voltaram à delegacia quando as luzes da cidade iluminavam a noite.

Relatou aos pais a descoberta e após o jantar preparou-se para ir ao hospital ver os feridos que, pela delicadeza dos casos, ainda estavam na sala de cirurgia.

Depois do esforço que durou horas, as equipes médicas conseguiram extrair os projéteis, sem demonstrar entusiasmo pela situação do prisioneiro que não resistiu sequer até o amanhecer. Faleceu no meio da madrugada e seu espírito foi prestar contas dos seus feitos nas zonas umbralinas do limbo. O delegado permaneceu sob o efeito da anestesia com batimentos cardíacos e respiração normais, que deixou a equipe fora de suspense, especialmente Agnelo que ao saber do estado do filho, após um banho quente, auxiliado pelos tranquilizantes, procurou manter a calma e raciocinar com clareza, demonstrando a vergonha que sentia pelo que fizera, no que foi compreendido e amparado pelos amigos.

Sandrinha notou que sua permanência não teria grande utilidade e no dia seguinte teria muito que fazer, e retornou com os pais ao hotel por volta da meia-noite. A morte do ex-prefeito era caso consumado e a equipe médica houve por bem comunicar-lhe depois que amanhecesse. As providências seriam o atestado de óbito e o sepultamento. Após a confissão, o Dr. Silvano perdera as honras de dignitário e se transformara em criminoso comum. As honrarias seriam transferidas aos familiares, se tivessem a inocência provada.

* * * * *

O sargento pegou um taxi e foi para a Polícia Civil esperar o início do expediente. Tinha deixado amizade formada com alguns colegas e não se sentia tão deslocado. Exibiu os documentos e os policiais não perderam tempo. Mobilizaram viaturas e saíram para a Polícia Federal, que colocou o que fosse necessário à disposição.

Roberto não esperava que as providências fossem tão prontamente agilizadas e estava dissolvendo a PAVICONST, para mudar de endereço ou talvez de Estado. Quando saltou do carro e começou a dar as ordens, sentiu nos pulsos o estalido incômodo do frio metal e a voz firme que decretava:

_ Está preso!...

O marginal olhou assustado para ambos os lados, tentou desvencilhar-se mas as algemas não permitiam os movimentos. Os policiais acostumados com bandidos violentos, não se deixariam intimidar por um almofadinha qualquer, por mais malandro que ele julgasse ser. Os funcionários, quando viram o patrão algemado, externaram um arroubo de ferocidade próprio do temperamento carioca, que arrefeceu logo que viram os documentos judiciais, as metralhadoras e a conexão das polícias Civil e Federal.

Um voo sairia em meia hora. O sargento marcou as passagens e de um orelhão, ligou a cobrar para Serra Dourada. Encontrou uma jovem delegada às voltas com o sepultamento de um ex-prefeito safado e um delegado operado. Disse que tinha passagem marcada para vinte minutos e Sandrinha deu um grito tão alto que os militares correram ao gabinete. Ela tentou explicar, apontando o fone com o dedo em riste:

_ Já pegou e já vem!...

_ Quem pegou?... – Perguntou um dos que, por folga, não soubera da viagem.

_ O sargento Argolo!... Já prendeu o Roberto e está no aeroporto do Rio!...

_ Do Rio?!... Nossa!...

Por volta das quinze horas, o sargento saltou do carro com o prisioneiro, à porta da delegacia. Roberto viu a moça que fora sua namorada exercendo as funções de delegada na cidade que ele tão bem conhecia e mantinha vínculos criminosos e por pouco não desfaleceu. As emoções que se acumularam no seu ego foram tão violentas que pediu água, logo se achou no interior do prédio. Sandrinha acompanhava as confusões na mente do criminoso e não vacilou em elaborar as mais embaraçosas perguntas. Com exceção da diligência na tarde anterior e dos funerais, na ausência do sargento não fizera outra coisa a não ser estudar profundamente os depoimentos tomados por Alberto.

Após a tramitação, o sargento correu ao hospital. Encontrou um dos quadros mais desoladores, com o delegado e o prisioneiro em coma profundo sem muitas perspectivas. Agnelo e Maristela à custa de muitos tranqüilizantes, carinho dos amigos e desvelo dos médicos e enfermeiros, recuperavam-se física e psicologicamente, a olhos vistos.

CAPÍTULO QUARENTA E DOIS

Clarões Mentais: Amigos, Sim, Namorados, Talvez...

Sandrinha tomou o depoimento de Roberto, arrumou os documentos e correu ao hospital. O sargento estava do lado de Alberto e, surpresa, ouviu claramente o moribundo pronunciar seu nome, enquanto alguém entrava no quarto, às suas costas. Virou-se e percebeu que Maristela também ouvira e tentou dizer algo, mas ela adiantou-se e disse:

_ Não se preocupe! Ontem, percebi como ele dispensava toda a atenção para você e antes de ontem, na praça, eu já tinha percebido que nossa união é mais de dois irmãos do que de namorados. Depois do que ele disse lá em casa, foi que me toquei e concluí que nossas vidas são totalmente diferentes. Eu continuo sentindo a mesma coisa, e é isto que me dá a certeza do que estou dizendo. Eu nunca poderia ser a esposa dele. Eu só estava acostumada com a rotina de vida que levávamos, e agradeço a Deus essa reviravolta. Ele não iria se acomodar comigo e um dia ia terminar se cansando. Se ele pronunciou seu nome, é porque é isto que ele quer e não ousa ou não teve tempo de confessar. Agora, as coisas ficaram bem mais fáceis. Basta a gente esperar ele acordar e contar o que ele disse!...

Sandrinha ofereceu a mão à nova amiga, que a apertou carinhosamente, assistidas em silêncio pelo sargento que se mantivera à parte. Quando viu que os entendimentos estavam concluídos, entrou na conversa, tentando fazer graça:

_ Esta é a primeira vez na minha vida que vejo um camarada terminar um namoro e começar outro sem saber de nada. Isto é que é ser um felizardo!...

As moças se voltaram para ele, esquecendo momentaneamente a gravidade do enfermo e riram a bom rir. Os pais dos jovens entraram acompanhados do Dr. Odorico e desejaram saber a causa de tamanha alegria. Ainda sorridente, Maristela esclareceu:

_ É que Alberto acaba de me trocar por ela!...

_ Trocar por ela, como, se está em coma?...

_ Ora, ele disse o nome dela e eu ouvi. Daí, entendemos que, quando ele acordar, a namorada dele vai ser a Sandrinha e não eu!... Simples, não é?...

Apreensivo, o Dr. Odorico disse:

_ Cuidado que ele pode entrar em choque. Apesar da estrutura física, ele perdeu muito sangue e a cirurgia foi muito delicada. Tivemos que deslocar uma costela!...

_ Ih!... É mesmo!... Então temos de dar a notícia com cuidado!...

Enquanto o farmacêutico sorria feliz com o carisma do filho, o prefeito entrou na brincadeira com a intenção de afastar da alma as lembranças amargas:

_ Mas, filha, você já pensou em que situação vou ficar com Agnelo? Afinal, quando vocês eram crianças, nós acertamos o namoro, com a intenção de ver vocês casados!...

_ E eu?... – Perguntou o Dr. Carlos, aderindo ao clima alegre. – Alguém por acaso pediu o meu consentimento pra arranjar namorado por aqui?...

_ Ora, papai, foi só porque encontrei um antigo amor. O coração bateu mais forte e preciso esquecer. Ou quer que eu volte pra ele?... – Sorriu Sandrinha, travessa.

_ Não!... Não!... Fica com este, mesmo!... Já não está mais aqui quem falou!... – Respondeu o engenheiro, simulando estar apavorado.

_ Ah, é, não é?... Viu só?...

_ Ohhhhhh!...

_ Shhhh!... Parece que está acordando!...

Apreensivo, o Dr. Odorico aproximou-se a fim de evitar algum movimento brusco. O rapaz abriu os olhos e tentou mover-se, mas deixou escapar um gemido.

_ Calma, Alberto, não se mova. Você sofreu uma intervenção cirúrgica muito delicada e precisa de repouso absoluto por um bom tempo!

_ Dr. Odorico, o que aconteceu?...

_ Foi um lamentável acidente, mas está tudo bem. Graças a Deus, você reagiu!...

_ Ah! Agora me lembro! Como foi que aconteceu? Onde está ele?...

_ Está tudo bem. O sargento Argolo e o Falcão fizeram o que você mandou!...

_Como sabe que eu mandei, eles falaram?...

_ Não! Mas entendemos tudo. Agora, descanse!...

_ E, ele está preso? Alguém mais saiu ferido?...

_ Não, apenas você!... Agora, descanse!... Está tudo bem!...

_ Graças a Deus!... Há quanto tempo estou aqui? Tenho de acabar o inquérito. O Dr. Carlos precisa voltar com a família!... Ai!...

_ Não se preocupe, estão todos aqui!...

_ Oh, desculpem! Fiquei tão envolvido com o Dr. Odorico que não vi ninguém! Olá, papai!... Olá, seu Afonso!... Olá, Dr. Carlos!... Olá, sargento!... Olá, querida, chorou muito?... Olá, Sandrinha, desculpe o transtorno!...

_ Cínico!... – Pensou Maristela, olhando para Sandrinha, com um piscar de olhos.

_ Alberto, – voltou o médico – se você não ficar quietinho, vou ser obrigado a chamar uma enfermeira pra lhe dar um tranquilizante, quer?...

_ Não!... Pelo amor de Deus!... Não!... Eu fico quietinho!... Por falar nisso, há quanto tempo estou aqui sendo babaricado, como um bebezinho?...

_ Só durante o efeito da anestesia. Quer outra?...

_ Não, pode deixar que vou ficar caladinho!... – E fechou os olhos, com mil interrogações a lhe bailarem na mente.

O médico aproveitou, fez um gesto e saíram silenciosamente. Ao se sentir sozinho, abriu os olhos, deu um sorriso e, num profundo suspiro, disse:

_ Obrigado, meu Deus, por ter saído tudo bem!... Ai!...

CAPÍTULO QUARENTA E TRÊS

Segredo de Estado: Jazida de Urânio em Serra Dourada

A noite transcorreu calma, mas quando o hospital foi aberto à visitação, as pessoas acorreram, como em procissão, querendo saber se estava bem, e foi necessário estabelecer a quantidade de pessoas e o tempo de permanência, bem como não fazerem perguntas.

Próximo do meio-dia, o grupo se reuniu, acrescido das duas senhoras que se tinham tornado amigas e mais unidas pelo laço amoroso das filhas.

A insistência em manter o namoro fez com que as moças comentassem algumas coisas que ele pronunciara no delírio, até que, delicadamente, contaram que ele chamara por Sandrinha. Ternamente, Maristela aproximou-se, passou a mão pelos cabelos e disse:

_ Sabe, Alberto, quando você chamou por Sandrinha, eu não senti ciúmes, e muito pelo contrário, cheguei a ficar feliz. Daí, concluí que eu sempre tive por você foi uma grande amizade e um imenso amor de irmã. Não quero dizer que estou aborrecida com o tempo que namoramos. Só as noites que você nos proporcionou com a guitarra foram maravilhosas e nunca vou esquecer. Agora, se você quiser trocar de namorada, não tenha nem um pouco de remorso. Já combinamos tudo e se não falamos ontem foi porque o Dr. Odorico pediu que não lhe causássemos emoções fortes. Mas como você já está bem espertinho, não precisa mais me tratar como namorada e pode virar pro lado dela!...

_ Ora!... Mas isto é que é ser um cara de muita sorte!... Quer dizer que tenho à minha disposição dois pedação de muié destamanho pra escolher? É isso? Do jeito que tô aqui, não agüento nem com uma, quanto mais com duas!... Dr. Odorico, socorro!... A anestesia! Chama a enfermeira, ligeiro!... Quero dormir!...

Segura de si, Sandrinha colocou a mão sobre a de Maristela, e disse:

_ Não se preocupe, Alberto. O que Maristela quer dizer é que você não precisa ficar preso a um compromisso que iniciou entre duas crianças pra satisfazerem a vontade dos pais que, como bons amigos, só queriam ver a amizade perpetuada no enlace dos filhos. Quanto a sermos namorados, acho que aqui tem muita gente e não dá pra falar, não é?...

_ Acho que você está certa, mas que foi bom lá na Reserva, lá isso, foi, não é!...

_ Seu bobo!...

_ Que negócio é esse de Reserva?... – Perguntou Maristela.

_ Nada, não!... – Disse Sandrinha, ruborizando, violentamente.

_ Ah!... Mas eu quero saber o que foi!...

_ Ora!... – Interferiu Alberto – ela se emocionou quando viu os autênticos índios de tradição secular, com uma lenda pra narrar, e ficou com os olhos cheios de lágrimas!...

_ Sim, e daí?...

_ Daí, eu enxuguei os olhos dela, com o lenço!...

_ Ah, mas aí é diferente!... Antes de ontem, você ainda era meu namorado!...

_ Antes de ontem? Que história é essa? Quer dizer que estou aqui há dois dias?...

A moça percebeu o erro, tentou consertar, mas foi socorrida pelo Dr. Odorico.

_ É, Alberto, realmente, meu filho, você esteve muito mal, mas graças a Deus, pela sua constituição física, conseguiu vencer o transe!...

_ Quer dizer, driblei a morte, não é?...

_ É, driblou a morte!... Esta é a verdade!...

_ E, como foi?...

_ Depois eu conto. Basta saber que você salvou a vida do seu pai. Ninguém na face da Terra teria feito igual. Só o amor foi capaz!...

Olhou e viu o pai com os olhos cheios de lágrimas. Raciocínio rápido, perguntou:

_ E ele, onde está?...

_ Os militares cuidaram dele!... – Informou o médico.

_ Como foi, sargento? Conta pra mim!...

_ Ah, você não vai querer um relatório, agora, não é?...

_ Claro! Afinal, quem é o delegado, nessa joça?...

_ É você, mas por enquanto está afastado, por incapacidade física!...

_ E quem me substituiu?...

_ Fui eu!...

_ Me toma o emprego e agora vem com tapeação de namoro, não é?... Tá bom!...

_ E quem disse que eu quero namorar com você?... É só pra me vingar das perguntas que eu fiz e você não respondeu!... Viu só?...

_ Tá!... Pois só pra chatear, vou sair daqui mais cedo do que vocês pensam!...

Enquanto brincavam no jogo das palavras, não perceberam que novo personagem ouvia a conversa, da porta. Quando Alberto se calou, resolveu se pronunciar:

_ Vou esperar pra uma seresta!...

_ Excelência, que prazer!... – Gritou Alberto.

_ Excelência?... – Perguntaram, enquanto se voltavam para a porta e davam de cara com o governador. Confusos, os que o conheciam ficaram sem saber o que fazer, mas ele quebrou a tensão, aproximando-se do leito e, tomando a mão do rapaz, disse:

_ Desculpe, Alberto, se não vim mais cedo, mas é que foi totalmente impossível vir antes. Aliás, tive de cancelar inúmeros compromissos!...

_ Obrigado, Excelência, mas não mereço tão grande honra!...

_ É bom deixar de modéstia. Todo mundo sabe o que você fez e não adianta negar!

_ Eu só queria ser leal ao senhor!...

_ Não, meu filho, você não foi leal a mim. Você foi leal à sua consciência, ao seu espírito de justiça e de solidariedade. Poucos homens fariam o que você fez!...

_ Desculpe, Excelência, mas esqueci de apresentar. – Interrompeu, para livrar-se dos elogios. – O Dr. Odorico, o meu pai... – E, no final: Pra quem ainda não conhece, este é o nosso querido governador, o homem que me meteu nessa fria, mas valeu a pena. Minha vingança é que se ele quiser tocar comigo, vai ter de esperar pelo menos uma semana até eu poder segurar de novo a querida guitarra. Por falar nisso, tem um violão?

_ A viagem foi tão apressada que não deu tempo... Espera aí, você acha que eu vim pra uma festa, ou foi ver um amigo que estava à beira da morte? Tá pensando o quê?...

_ Ah! A não ser uma dorzinha aqui nas costas, estou quase bom pra uma pelada!...

_ Pelada ou pelada?...

_ Pelada, é claro!...

O Dr. Odorico percebeu o excesso de otimismo do rapaz e disse:

_ Alberto, acho bom não se exceder. A bala ficou incrustada na base de uma das costelas e tivemos de deslocá-la pra retirar o projétil. O menor movimento brusco poderá causar traumatismo cervical e vamos ter de operar de novo!...

_ Que é que tem, Doutor? Eu sou como aquele negócio que só funciona a cabeça. O resto é só pra levar e trazer!...

_ Que negócio?...

À medida que os circunstantes iam compreendendo a piada, ouviam-se risinhos abafados, até que o quarto se transformou numa gargalhada só.

A conversa voltou ao normal e em dado momento alguém lembrou que era meio-dia. O prefeito convidou para almoçarem na sua casa, mas Alberto protestou:

_ O que? Além de me deixarem sozinho, ainda tiram a visita especial? Ou pensam que é todo dia que se tem um governador à disposição? Isso é exclusivo pra doente, ora!...

Com o pouco tempo vago e o que tinham para acertar, o governador agradeceu e disse que estava de regresso. O Dr. Odorico notou o impasse e disse:

_ É comida de hospital , mas por um dia, não dá pra morrer... Está à disposição!...

_ Acho que não vou dispensar, não. Meu tempo é curto!...

Quando os outros se preparavam para sair, Alberto perguntou:

_ Dr. Odorico, posso fazer um pedido muito especial?

_ Claro, Alberto. O que quiser!...

_ Tem comida aí pra todo mundo?...

_ Dá-se um jeito!...

_ Então, que tal um piquenique no pátio?... Esta cama pode viajar e me levar?...

_ Está brincando, Alberto? Isto aqui é um hospital. Não já chega a barulheira que fizemos por sua causa? – Observou Maristela, já travestida nas funções de irmãzona.

_ Tá bom. – Disse o médico, que aderira ao ritmo alegre do rapaz. – O único doente grave que temos aqui é o prisioneiro. Pensei que esse aí também fosse, mas me enganei!...

_ Como está ele, doutor? – Perguntou Alberto, com uma leve sombra no rosto.

_ Vai sobreviver. É mais um traumatismo craniano do que propriamente risco de vida. Vaso ruim não se quebra!...

_ Olha aqui a prova!... – Brincou o rapaz, lembrando-se do sermão do médico.

_ Quem é ele?... – Quis saber o governador.

_ O primeiro membro da quadrilha que foi apanhado numa emboscada, lá no rio!...

_ E, por que o traumatismo craniano?...

_ Uma bala o atingiu no rosto!...

_ Quem atirou?...

Discretamente, o médico apontou o rapaz, que, confuso, procurou defender-se:

_ Era ele ou eu. Ele tinha atirado, pelas minhas costas. O cabo viu!...

_ Ninguém está acusando, meu filho. Estamos é muito felizes por você estar vivo!...

_ Mas eu é que não consigo entender por que as pessoas se entregam ao uso das armas, quando é muito mais gostoso manusear uma guitarra!...

O governador quis ver o ferido e o médico o precedeu. Movidos pela curiosidade de ver o prodígio do rapaz, os outros os seguiram. Somente ele não se alegrava...

Minutos depois, chegaram dois enfermeiros com ordem de o transportarem para a coberta próxima do jardim, o que alegrou o rapaz de poder novamente ver a luz do Sol.

Puseram o leito no meio e um som muito familiar vibrou nos seus tímpanos. Não precisou olhar para saber que se tratava da inseparável guitarra. Pediu para Sandrinha fazer um som. O sargento estendeu o violão ao engenheiro, mas foi interceptado pelo governador, que pegou o instrumento e disse:

_ Desculpe, Dr. Carlos, mas o senhor já deve ter tocado muito com a senhorita e o meu tempo é muito curto, pra que me prive deste prazer!... – E jogou um lá menor, que foi rebatido pela moça. Ao ouvir os acordes de menos de três semanas atrás, o rapaz disse:

_ Da última vez que ouvi isso, entrei numa bronca da zorra. Será que está vindo mais chumbo grosso por aí?...

_ Não! Fique tranqüilo! Aliás, tenho uma informação confidencial. Um verdadeiro Segredo de Estado. O Serviço de Observações Geoaerofotogramétricas informou que nas coordenadas geográficas desta região há uma jazida de urânio debaixo de uma Reserva Indígena que se for explorada por curiosos causará o maior rebu da paróquia.

A cozinheira anunciou o almoço. Cada um fez o seu prato e sentou-se próximo do leito. Difícil foi dar comida ao paciente. O governador resolveu o problema, sugerindo que cada um desse uma garfada, por idade. Entre os homens foi fácil, mas com as mulheres, por pouco as mães não ficaram mais novas do que as filhas. Ficou decidido que elas resolvessem sozinhas. As senhoras desistiram e as moças foram discutir prioridades:

_ Eu dou primeiro, porque conheço há mais tempo!...

_ Eu dou, porque preciso conhecer melhor!...

_ Eu dou, porque fui namorada dele!...

_ Eu dou, porque ele chamou meu nome!...

_ Eu dou, porque agora sou irmã dele!...

_ Eu dou, porque agora sou a substituta dele!...

_ Eu dou, porque...

O cheiro da comida fez o estômago de Alberto roncar e, vendo que elas não se decidiam, chamou o médico com o indicador, e pediu:

_ Doutor, por favor, chama a Francisca?!...

Logo apareceu uma preta velha muito gorda, que pegou o prato e começou a dar a comida, enquanto as moças continuavam a discussão.

Findo o almoço, pegaram os instrumentos e recomeçaram a tocata, quando Alberto percebeu que o jardim começava a se encher de policiais. Olhou interrogativamente para o sargento, que encolheu os ombros, e disse:

_ Eles acharam que você ia sentir saudades!...

_ Obrigado, sargento. Foi providencial. Sem eles, eu agora não estaria aqui. Sem eles, agora eu estaria – apontou o dedo para o chão – guardado!... Sargento, se o senhor está aqui, e já fazem quarenta e oito horas que estou no hospital, onde está o Roberto?

O sargento apontou para os soldados e disse:

_Guardado!...

_ E... ele?...

O militar entendeu que não podia ocultar nada daquele cérebro computadorizado, apontou duas vezes para o chão com o indicador e repetiu:

_ Guardado!...

_ Eu sabia!... – Suspirou e insistiu: E, Falcão?...

Mais uma vez o sargento apontou para os lados da delegacia e disse:

_ Guardando!...

Antes que fechasse a boca, o Falcão entrou e disse para Alberto:

_ Delegado, tem um carro, com uns homens dizendo que são da Polícia Federal, e vieram ver o que é que tem aqui!?...

_ A delegada é ela!... – Simulou um ressentimento que estava longe de sentir.

O governador adiantou-se e esclareceu:

_ Este problema é meu! Antes de ontem, de manhã, recebi o relatório do Centro de Observações, e enfim eles chegaram! Mande aqui. Quero falar com eles!... – E, concluiu:

_A não ser pelo lamentável acontecido, acabaram-se os problemas. Agora, é com eles. O projeto, se não der para canalizar o rio, vou conseguir verba pra a conclusão. Sugiro que após a vistoria da Polícia Federal, o material seja retirado. Vou tentar inundar o poço. Assim, os curiosos pensarão duas vezes antes de querer contrabandear urânio. Serra Dourada, pra mim, será como chamou o grande Búffalo Bill à sua fazenda, SCOUT REST RANCH, que significa O Repouso do Guerreiro!...

Numa explosão de euforia há muito contida, Agnelo abraçou-se ao rapaz, e disse:

_ Filho, tudo isto é mérito seu!...

Alberto fez a cara mais inocente do mundo, encostou o dedo no peito e perguntou:

_ Meu?... Por quê, hein?...

CAPÍTULO QUARENTA E QUATRO

Qual Foi o Erro do SCRIPT?...

A tarde foi de entendimentos entre empresários e executivos, que se prolongaram pela noite e obrigaram o governador a dormir, desta vez, na residência do prefeito, onde acertaram planos de futuro para Serra Dourada.

De manhã, voltou ao hospital para se despedir de Alberto e tirar uma dúvida que lhe martelava o cérebro, desde que recebera o telefonema informando que ele tinha sido baleado.

_ Alberto, eu não me esqueci do que você disse naquele jantar. Só não consigo entender como foi que você, com todo o controle da situação, deixou-se apanhar desse jeito, como um patinho?!... Me lembro bem que você falou sobre palco e bastidores, e sei que foi por eles que você viajou o tempo todo. Sei que você rastreava cada gesto, cada pensamento de cada um dos moradores de Serra Dourada. Por que, então, foi apanhado? Isto não entra na minha cabeça. Eu simplesmente não consigo entender!...

_ É verdade, Excelência. Nem eu esperava por aquele desfecho. Eu tinha certeza de que ele iria atirar em mim, ou se entregar sem resistência. Se ele tentasse atirar, eu já havia prevenido o sargento e Falcão que só atirassem em minha defesa. Quer dizer, eu achei que ele iria querer se vingar em mim. Mas não foi o que ele pensou. Na sua mente diabólica e doentia, já tinha o plano traçado. Se deixaria desmascarar em público e depois, ao invés de se vingar em mim, se vingaria de mim. E foi o que fez. Quando acreditávamos que estava derrotado, disse umas tantas coisas e concluiu, dizendo que eu continuaria vivo, mas a pessoa que eu mais amo iria pagar pelo meu erro. Qualquer pessoa teria pensado em Maristela, que era a namorada, menos o seu Afonso e ele, que praticamente ajudaram papai a me criar, depois que mamãe morreu. Ele não se importou nem um pouco se, depois de atirar no meu pai, também morresse. O importante não era mais a vitória, e sim a vingança. Quer dizer, se eu tentasse duelar com ele, a arma já estava na mão e por mais hábil que eu fosse, jamais conseguiria sacar e atirar antes. E isto foi tudo!...

_ Não, não foi tudo!... – Interferiu bruscamente o médico, que se mantivera a parte, na interlocução. – Eu também estava lá, e desde a noite anterior estava curioso com um telefonema que recebi desse moço, dizendo que me preparasse pra atender alguém com princípio de enfarte, e esse alguém era o chefão, que ele tinha feito uma brincadeirazinha com ele e devia estar saindo fumaça por tudo que era de buraco. Daí, quando ele se levantou, depois do almoço, percebi que o momento decisivo tinha chegado. Eu ouvia e buscava nas fisionomias pra tentar captar um sinal em alguém. O que vi foi o medo no rosto do Claudino, além da natural apreensão nas outras fisionomias. No Dr. Silvano, estampava-se o perfil marmóreo do homem austero e incorruptível. Nenhum músculo, nenhuma ruga, nada que denunciasse ódio, medo ou nervosismo. Este rapaz demonstrou uma fibra impressionante em conduzir as acusações até o final. A convicção do dever a ser cumprido deu-lhe a diretriz correta. Outro qualquer, no seu lugar, teria fraquejado. O homem parecia uma rocha. Hoje, analisando mais detidamente a situação, vejo claramente que ele não tinha nada de austero, mas sim de psicopata dogmático. Em outras palavras, o Dr. Silvano, na sua maneira de ser, era um louco. Continuei nas observações ouvindo a carga de acusações e defesas que Alberto jogava contra o seu Afonso e percebi que não podia ser ele o chefe e que as acusações eram exatamente pra abrir a guarda do culpado. Quando ele deu voz de prisão ao Claudino, notei uma centelha de ódio nos olhos dele, e mais nada. À medida que as acusações iam se firmando contra a sua pessoa, (o telefonema, a luz acesa, o veneno na laranja) ele começou a baixar a cabeça, como envergonhado. Quando falou dos cachorros ao pé do muro que dá pra a prefeitura, da esposa e do filho, sua cabeça já quase tocava a mesa. Mas era tudo fingimento...

_ Fingimento, nada... – Interrompeu o delegado – Ele estava era tirando a arma da bota tão lentamente que não deu pra ninguém perceber...

_ ... e quando fez a acusação formal, – Continuou o médico – entregando-o ao Dr. Gil e ao Dr. Sinval, ele começou a falar tão baixo que ninguém ouvia direito, apesar do silêncio reinante. Quem seria capaz de respirar ao menos, num momento como aquele? Ora, eu ainda não estava entendendo como era que um homem como o Dr. Silvano, político dos mais enérgicos, cheio de recursos, se deixava abater daquela maneira. Seria vergonha?... Não, não era vergonha. Quem tem vergonha, não faz o que ele fez. O que seria, então? Sua voz saía tão baixa que a custo os mais próximos ouviram. Mas foram só as primeiras palavras. As seguintes eram como chicotadas. Verdadeiras confissões. Disse que ameaçou as esposas e filhos dos outros delegados. Falou de microfone, de tiros, de desafios, de tudo. Disse que não se considerava derrotado, porque a vida continuava. Que Alberto continuaria vivendo, mas a pessoa que ele mais ama iria pagar pelo seu erro. E concluiu com a terrível vingança. Eu, por mim, confesso que fiquei por instantes com a mente bloqueada e só dei conta de mim novamente depois dos três estampidos. Alberto voou por cima da mesa, como se tivesse sido impulsionado por uma mola. Um salto daquele é humanamente, fisiologicamente impossível de ser dado. A cadeira estava atrás dele e não saiu do lugar. Ele bloqueou com o corpo a trajetória do projétil e recebeu-o no peito, que foi-se alojar na base de uma das costelas. Só não atingiu o coração porque no esforço, este se contraiu, e a bala passou sem ferir. Imediatamente os militares abriram fogo e acertaram uma bala em cada pulmão. Agora, sim. Isto é tudo. O restante foi a correria, os gritos, o transporte, as cirurgias e este resultado, graças a Deus. Como eu disse ontem, ele salvou a vida do pai movido unicamente pelo amor filial. Ninguém na face da Terra seria capaz de fazer o mesmo. Só o amor foi capaz!...

Emocionado, o governador apertou as mãos dos dois homens e perguntou:

_ E agora, Alberto, você tem algum projeto pra o futuro?...

_ Oh, claro!... Sair desta cama e tocar minha guitarra, o que mais?...

_ Você não sabe fazer outra coisa, a não ser brincar? Olha que a vida é dura!...

_ A vida é dura pra quem é mole, não é, Excelência?...

_ Sim, claro, claro!... Ah!... Estava me esquecendo. Fiz umas pesquisas e descobri que não é muito caro pra se gravar um disco. A oferta continua de pé, OK?...

_ Quem sou eu, Excelência?! Isto é pra quem tem o talento do Dilermando Reis!...

_ Quer repetir a história?...

_ Deus me livre!...

_ Então, até breve. A estrada é longa e eu estou fugido. Já pensou se chamam a polícia pra investigar o desaparecimento do governador?...

_ Ora, é só chamar o delegado de Serra Dourada!...

_ Serra Dourada não tem delegado, Serra Dourada tem delegada!... – Rebateu Sandrinha, que ouvira a conversa da porta do quarto.

_ Que é isso? Ouvindo conversa de homens?...

_ A delegada pode!...

_ É o mal da tal revolução feminista!...

_ É o ponto de vista de alguns machistas!...

Os homens aproveitaram a interlocução dos jovens e saíram do quarto deixando que resolvessem sozinhos os seus problemas.

Pelas aparências, muito cedo Serra Dourada estaria assistindo a prisão do seu herói, nas grades do coração.

No corredor, cruzaram com o morubixaba e os membros do carbeto, seguidos de uma fila de índios da Reserva que se prolongava até a saída, derramando-se pela rua afora, que tinham ido visitar Boitatá.

Pelas aparências, os assuntos amorosos deveriam ser prorrogados um pouco mais...

FIM

* * * * *