Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo (Notas do Livro)

Prefácio

Você está prestes a se deleitar com um excelente livro. Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo: Economia, Política e Ética de Hans-Hermann Hoppe me cativou e me esclareceu plenamente quando o li há 20 anos.

Todos os trabalhos do professor Hoppe são criteriosos, incluindo seus livros The Economics and Ethics of Private Property (2003), Democracy: The God That Failed (2001), A Ciência Econômica e o Método Austríaco (2010), e The Great Fiction: Property, Economy, Society, and the Politics of Decline (2012), este publicado no início de 2012 pela Laissez Faire Books. Mas Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo sempre foi o meu favorito. Um tratado integrado e sistemático, e não apenas uma coletânea de ensaios, este livro é a sua obra-prima — seu Ação Humana, seu Man, Economy and State.

Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo é uma obra tão rica que exige uma leitura cuidadosa e uma releitura periódica. Numa resenha sobre o livro, o professor Robert McGee observou:

Quando eu leio um livro, faço anotações nas margens e sublinho os pontos que acho que merecem ser relidos. Com esse livro, eu tive que me controlar porque eu estava fazendo tantas anotações que tornavam a minha leitura mais lenta. Quase todo parágrafo tem pelo menos um ponto que merece reflexão.

Eu mesmo fiz uma observação parecida sobre a obra, mencionando os outros trabalhos de Hoppe, numa resenha do seu Economics and Ethics of Private Property:

Se os livros e artigos do professor Hans-Hermann Hoppe já viessem com partes sublinhadas e destacadas permitiriam aos leitores poupar bastante tempo. Ou, pelo menos, cada livro deveria vir com uma caneta anexada. Pois quando cumpro o meu hábito rotineiro de sublinhar, circular, verificar, marcar com asteriscos ou destacar ideias importantes nos livros que leio, fico com a impressão de que meus exemplares dos livros do Hoppe foram manuseados por uma criança de dois anos com um lápis de cera. 

Na verdade, este livro não é só o meu favorito dentre os trabalhos do professor Hoppe, mas o meu livro predileto de não-ficção de todos os tempos e uma das obras mais importantes que eu já li. A obra estabelece uma análise rigorosa da natureza do direito de propriedade e o relaciona com a teoria econômica e política. O livro é fundamentado nos conceitos e na análise da praxeologia misesiana e nos insights libertários rothbardianos.

O capítulo 2 é fundamental ao apresentar e explicar os conceitos básicos indispensáveis à teoria econômica e à filosofia política: propriedade, contrato, agressão, capitalismo e socialismo. Com o seu rigor característico, Hoppe identifica os aspectos essenciais desses conceitos. Como ele mesmo escreve:

Depois do conceito de ação, propriedade é a categoria conceitual mais fundamental dentro das ciências sociais. Na verdade, todos os outros conceitos a serem apresentados neste capítulo – agressão, contrato, capitalismo e socialismo – são definíveis de acordo com a propriedade: agressão sendo agressão contra a propriedade, contrato sendo um relacionamento não-agressivo entre proprietários, socialismo sendo uma política institucionalizada de agressão contra a propriedade, e o capitalismo sendo uma política institucionalizada de reconhecimento da propriedade e do contratualismo.

Hoppe também explica “a condição prévia necessária para o surgimento do conceito de propriedade”: escassez. Se todos os bens fossem superabundantes ou “gratuitos”, não haveria possibilidade de ocorrer disputa ou conflito, nem a necessidade de existir direito de propriedade. Sem o direito de propriedade, não faria sentido haver contrato; ninguém seria dono de nada (porque não haveria necessidade) e a ideia de permitir, dar ou vender as coisas também não faria sentido. Muito mais do que suas duas grandes influências (Mises e Rothbard), Hoppe enfatiza a importância dessa condição prévia fundamental de toda ação humana, da propriedade e da ética política. Mises e, obviamente, Rothbard, reconheceram que a ação humana emprega meios escassos, mas não deram muita atenção à conexão entre escassez e propriedade. David Hume observou que o fato fundamental da escassez leva a conflitos e exige regras (de propriedade), uma ideia que muito influenciou Hoppe. Ele integrou o foco praxeológico nos recursos escassos como meios de ação com o foco humeano na escassez dos recursos como a origem de um possível conflito e à necessidade de regras de propriedade, ampliando e reforçando dessa forma o enquadramento austro-libertário.

Essa ênfase permitiu a Hoppe verificar facilmente por qual razão a suposta propriedade intelectual não pode ser justificada, e isso bem antes da internet ter forçado os libertários a adotarem um olhar mais severo sobre essas questões. Num painel de debates em 1987 no Mises Institute com o professor Hoppe, Rothbard e outros, ocorreu o seguinte diálogo:

Pergunta: Eu tenho uma pergunta para o professor Hoppe. A ideia da soberania pessoal se estende ao conhecimento? Eu sou soberano sobre meus pensamentos, ideias e teorias?

Hoppe: (…) para ter um pensamento você tem que ter direito de propriedade sobre o seu corpo. Isso não significa que você é o dono dos seus pensamentos. Os pensamentos podem ser usados por qualquer um que seja capaz de compreendê-los.

Aqui, Hoppe antecipou a posição antipropriedade intelectual que se tornou predominante atualmente entre a maioria dos libertários, especialmente entre os anarquistas e os austro-libertários. Por causa do seu foco na escassez como condição prévia da propriedade, ele pode facilmente verificar que coisas não-escassas como o conhecimento não podem ser possuídas, ou seja, não podem estar sujeitas ao direito de propriedade. O enquadramento praxeológico de Mises mostra que toda ação humana emprega meios escassos para atingir os objetivos desejados, além de ser orientada pelo conhecimento. Os meios escassos são possuídos num sistema de direito de propriedade porque eles são escassos: conhecimento, enquanto indispensável para uma ação bem-sucedida, não é um meio escasso de ação e, portanto, não é o tipo de coisa sobre o qual se aplica o direito de propriedade. Ao ter uma compreensão clara sobre os conceitos fundamentais da teoria política e econômica, Hoppe é capaz de verificar facilmente que a propriedade intelectual não faz sentido – uma conclusão que ainda é difícil para muitos libertários chegarem, especialmente os não-austríacos.

Uma vez que Hoppe identificou as características essenciais da agressão e do socialismo no que se refere ao contrato e à propriedade, ele é então capaz de dissecar os vários tipos de socialismo do mundo real: o socialismo ao estilo russo, o socialismo ao estilo social-democrata, o socialismo do conservadorismo e o socialismo de engenharia social.

No capítulo 7, o professor Hoppe apresenta a sua provocadora defesa “ético-argumentativa” dos direitos libertários. A ideia aqui é que quando buscamos avaliar quais normais políticas são justificáveis – por exemplo, se o socialismo ou o capitalismo são justificáveis — nós temos que nos envolver na argumentação, ou no discurso, para resolver essas questões. No entanto, a argumentação é, por natureza, uma forma de interação livre de conflito que exige o controle individual dos recursos escassos (observe novamente como o fato fundamental da escassez desempenha um papel na análise de Hoppe; sem a escassez, o conflito é impossível e, portanto, a ideia de interação livre de conflito não faz sentido, e a argumentação sobre quais normas adotar seria impossível e desnecessária). Num discurso genuíno, as partes tentam persuadir umas às outras pela força do argumento, não pela força real. Cada parte é livre para discordar sem ser agredida se assim o fizer. Ambas as partes reconhecem que cada uma delas emprega meios escassos (toda ação emprega meios escassos, incluindo a argumentação), inclusive os meios escassos do próprio corpo, e que cada pessoa está respeitando a autopropriedade do outro.

Em outras palavras, porque, num mundo de escassez, há a possibilidade do conflito interpessoal sobre os recursos escassos, pode surgir a prática da discussão de quais normas deveriam ser adotadas ou quais são justificadas (sem a escassez, nenhum conflito é possível e nenhuma propriedade ou outras normas são necessárias ou até mesmo fazem sentido). Um discurso livre de conflito é aquele no qual ambos os partidos respeitam os direitos de propriedade dos demais em relação aos seus próprios corpos, ou seja, a autopropriedade. Como explica Hoppe, a argumentação dessa forma pressupõe a validade da autopropriedade e, portanto, qualquer argumento para as normas políticas que violem a autopropriedade será sempre contraditório, uma vez que será incompatível com os pressupostos inevitáveis das normas de autopropriedade de qualquer argumentação possível. Hoppe também mostra que a argumentação também pressupõe o direito de ser o dono de recursos escassos que foram apropriados originalmente. É por essas razões que nenhuma ética socialista (isto é, a agressão institucionalizada ou pública) pode jamais ser justificada argumentativamente, ou seja, não pode ser justificada, pois toda justificação é uma justificação argumentativa (agressão privada, ou seja, crime, obviamente também não pode ser justificada). A ética libertária de cooperação e do respeito pelos corpos dos outros e os recursos apropriados originalmente ou contratualmente é a única ética possível compatível com as normas da argumentação.

Alguns libertários, este que vos fala sinceramente incluído, consideram essa teoria como um desenvolvimento profundamente importante na filosofia política. Rothbard também considerava:

Numa descoberta brilhante para a filosofia política em geral e para o libertarianismo em particular, ele conseguiu transcender a famosa dicotomia entre é/deve ser e entre fato/valor que tem atormentado a filosofia desde a época dos escolásticos e que levou o libertarianismo moderno a um enfadonho beco sem saída. E não apenas isso: Hans Hoppe conseguiu estabelecer o argumento para os direitos anarcocapitalista-Lockeano de uma forma fundamental e sem precedentes e que faz com que a minha própria posição em relação à lei natural e aos direitos naturais pareça fraquíssima na comparação.

Além do material fundamental do capítulo 2, da análise sistemática dos tipos de socialismo nos capítulos 3 a 6 e da nova e radical defesa dos direitos libertários e do capitalismo no capítulo 7, Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo contém uma riqueza de outros insights, muitos dos quais contidos nas detalhadas notas de rodapé. Esses incluem uma crítica ao empirismo-positivismo e aos argumentos socialistas que se baseiam nessas ideias cheias de falhas (capítulo 6) tanto quanto as eviscerações das abordagens econômicas convencionais em relação aos bens públicos e à teoria do monopólio (capítulos 9 e 10) e uma explicação do por quê a “escravidão pública” do socialismo é ainda menos eficiente do que o sistema de escravidão privada (capítulo 4, n. 26). Outro insight profundo é a explicação do professor Hoppe de que a agressão é uma invasão da integridade física da propriedade de outrem; de que não há direitos de propriedade no valor da propriedade (esse insight também explica os problemas com a ideia de propriedade intelectual, argumentos que muitas vezes consideram os direitos de propriedade como valor). E também veja a importante discussão trazida por Hoppe a respeito da distinção entre direitos de propriedade em relação aos corpos e aos recursos escassos externos, e de como eles são adquiridos, o que tem relevância para o debate da autopropriedade e alienabilidade versus a inalienabilidade. E você verá muito mais neste livro.

Este livro é surpreendente; profundamente importante; estimulante; divertido. Prepare-se para um banquete intelectual.

Stephan Kinsella

Houston, TX

Setembro 2012


Agradecimentos

Três instituições me ajudaram enquanto eu escrevia esta obra. No período de 1982 a 1986, quando fui Heisenberg Scholar, desfrutei do mais generoso apoio financeiro da German Science Foundation. Este estudo é o trabalho mais recente concluído nesse período. Recebi também um apoio adicional do Centro Bolonha para Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins, onde passei o ano acadêmico de 1984-1985 trabalhando como professor-visitante. As palestras lá proferidas definiram a essência do que é apresentado neste livro. Por último, durante o ano acadêmico de 1985-1986, quando eu estava em Nova Iorque e a minha investigação assumiu o formato atual, recebi o mais cordial e desburocratizado auxílio do Center for Libertarian Studies.

Minha mulher Margaret deu ao meu trabalho um apoio emocional incansável. Ela também assumiu a tarefa, muitas vezes contra a minha obstinada resistência, de editar meus textos num idioma estrangeiro.

A minha mais profunda gratidão é dedicada ao meu professor e amigo Murray N. Rothbard. Devo mais ao seu exemplo pessoal e de erudito do que eu poderia adequadamente expressar. Ele leu um rascunho inicial deste estudo e me agraciou com seus inestimáveis comentários. As inúmeras discussões que tive com ele foram uma fonte interminável de inspiração e o seu entusiasmo era um incentivo constante.

Meu sincero “muito obrigado” a essas pessoas e instituições.


Capítulo 1 — Introdução

Objetivo:  discutir os problemas centrais da economia política e da filosofia política, ou seja, como organizar a sociedade para promover a produção de riqueza e erradicar a pobreza, e como planejá-la de forma a transformá-la numa ordem social justa.

Tem a pretensão de desenvolver e explicar as ferramentas conceituais e argumentativas, morais e econômicas, necessárias para analisar e avaliar qualquer tipo de sistema político ou social empírico.

Este livro demonstrará que sem uma teoria, a economia política e a filosofia não podem ser consideradas nada mais do que tatear no escuro, produzindo, quando muito, opiniões arbitrárias sobre o que deve ter provocado isso ou aquilo.

Desenvolverei especificamente neste livro uma teoria de propriedade e dos direitos de propriedade. Também demonstrarei que o socialismo não é uma invenção do marxismo no século XIX, mas um fenômeno muito mais antigo que deve ser conceituado como uma intervenção institucionalizada ou uma agressão contra a propriedade privada e contra os direitos de propriedade privada.

O capitalismo, por outro lado, é um sistema social baseado no reconhecimento explícito da propriedade privada e das trocas contratuais entre proprietários privados, sem qualquer tipo de agressão. vários graus e tipos de socialismo e de capitalismo, ou seja, diferentes níveis em que os direitos de propriedade privada são respeitados ou ignorados. 

Quanto mais socialista um país, mais prejudicado será o processo de produção de nova riqueza e a manutenção daquela existente, e mais pobre esse país continuará a sê-lo ou se tornará. 

Analisados em detalhes, os efeitos particulares de ruptura são produzidos: 1) por uma política marxista tradicional de nacionalização e de socialização dos meios de produção ou pela aquisição dos meios de produção dos proprietários privados; 2) por uma política social-democrata revisionista de redistribuição igualitária de renda; 3) por uma política de mentalidade conservadora que tenta preservar o status quo mediante regulações econômicas e do comportamento, além do controle de preços; e 4) por um sistema de mentalidade tecnocraticamente pragmática, uma fragmentada engenharia social e econômica, e intervenções.

A reconstrução da moral da propriedade privada e sua justificação ética leva a uma reavaliação do socialismo e, como se vê, à reavaliação do estado enquanto instituição, dependendo do que este faz para garantir a sua própria existência ao tributar e obrigar as pessoas a serem seus membros (cidadania), como a própria incorporação das ideias socialistas a respeito da propriedade. Sem qualquer fundamentação econômica e moral sólida que justifiquem a sua existência, o socialismo e o estado serão, então, reduzidos a, e explicados como, um fenômeno de relevância meramente sócio-psicológica.


Capítulo 2 — Propriedade, Contrato, Agressão, Capitalismo, Socialismo

Para que surja um conceito de propriedade deve haver uma escassez de bens. Para desenvolver o conceito de propriedade é necessário que os bens sejam escassos, de modo que seja possível surgir conflitos sobre o uso desses bens. É função dos direitos de propriedade evitar esses possíveis conflitos sobre o uso dos recursos escassos através da atribuição de direitos de propriedade exclusiva. 

Na realidade, enquanto uma pessoa age, ou seja, enquanto uma pessoa tenta intencionalmente alterar um estado de coisas que é subjetivamente percebido e avaliado como menos satisfatório para um estado que parece mais recompensador, essa ação envolve necessariamente uma escolha relativa ao uso do corpo desse indivíduo. 

Portanto, por causa da escassez do corpo e do tempo, até mesmo no Jardim do Éden teriam que ser estabelecidas regulamentações de propriedade. Sem elas, e admitindo agora que existe mais de uma pessoa, que o alcance de sua ações se sobrepõem, e que não há uma preestabelecida harmonia e sincronização de interesses entre esses indivíduos, os conflitos sobre o uso do próprio corpo seriam inevitáveis. 

Qual é, então, a posição natural em relação à propriedade contida na maneira natural de se falar sobre corpos? Toda pessoa tem o direito exclusivo de propriedade de seu corpo dentro dos limites de sua superfície. Todo indivíduo pode usar seu corpo para o que ele considera ser o melhor para seus interesses imediatos e de longo prazo, bem-estar ou satisfação, desde que não interfira nos direitos de outra pessoa de controlar o uso de seu próprio corpo. 

Se, por outro lado, uma ação executada indesejadamente invade ou altera a integridade física do corpo de outra pessoa, fazendo um uso dele que não agrada a esta outra pessoa, essa ação, de acordo com a posição natural em relação à propriedade, é chamada de agressão.18 Seria agressão se uma pessoa tentasse satisfazer seus desejos sexuais ou sádicos mediante estupro ou batendo em outra pessoa sem que ela tenha expressamente consentido. 

As ideias do capitalismo e do socialismo devem estar um pouco mais claras neste momento. Mas antes de deixar o Jardim do Éden de uma vez por todas, dever-se-ia olhar para as consequências da introdução, no paraíso, dos elementos da propriedade estabelecida agressivamente, pois isso ajudaria a esclarecer, pura e simplesmente, o problema social e econômico central de cada tipo de socialismo real, ou seja, do socialismo num mundo de completa escassez, cuja análise detalhada é a preocupação dos capítulos seguintes.

Admitamos agora que a propriedade estabelecida agressivamente seja introduzida. Considerando que, antes, cada pessoa era a proprietária exclusiva de seu corpo e poderia decidir se tornar um bêbado ou um filósofo, agora se instituiu um sistema no qual o direito da pessoa de determinar como usar o seu corpo é cerceado ou completamente eliminado, e este direito é, em parte ou totalmente, delegado a outra pessoa que não está naturalmente ligada ao respectivo corpo como seu produtor. Qual seria a consequência disso? 

A segunda consequência deve ser qualificada de social. A introdução da propriedade estabelecida agressivamente significa uma mudança na estrutura social, uma alteração na composição da sociedade em relação à personalidade e aos tipos de comportamento. 

Em resumo, as duas consequências que detalhamos são as razões mais fundamentais de por que o socialismo é um sistema de regime de propriedade economicamente inferior. De fato, ambos os resultados reaparecerão repetidamente no curso das análises seguintes dos regimes políticos socialistas. Tudo o que resta agora é explicar a teoria natural da propriedade no que diz respeito à escassez no mundo real, pois este é o ponto de partida de todas as formas do socialismo real.

Um sistema social baseado nessa posição natural sobre a atribuição dos direitos de propriedade é, e será a partir de agora, chamado de sistema puramente capitalista. E uma vez que suas ideias também podem ser entendidas como as ideias dominantes do direito privado, ou seja, das normas reguladoras das relações entre os privados, também deve ser chamado de sistema puro de lei privada.24 Esse sistema é fundado na ideia de que para ser considerado não-agressivo as reivindicações de propriedade devem estar apoiadas (resguardadas) pelo fato “objetivo” de um ato de apropriação original, de uma propriedade anterior, ou por uma relação contratual mutuamente benéfica. Tal relação tanto pode ser uma cooperação deliberada entre proprietários ou uma transferência intencional de títulos de propriedade de alguém para um terceiro.

Se esse sistema for alterado e substituído por uma política que atribui direitos, ainda que parciais, de controle exclusivo sobre os meios escassos a pessoas ou grupos que não podem ser remetidas a um ato de uso prévio dos recursos em questão, e nem a uma relação contratual com algum usuário-proprietário anterior, então, esse sistema será qualificado como socialismo (parcial).


Capítulo 3 — Socialismo ao Estilo Russo

Definimos socialismo como uma política institucionalizada de redistribuição de títulos de propriedade. De forma mais precisa, socialismo é uma transferência de títulos de propriedade de pessoas que realmente utilizaram recursos escassos de alguma forma ou que os adquiriram contratualmente de pessoas que o fizeram anteriormente para terceiros, que nada fizeram com as coisas em questão e que nem as adquiriram formalmente por contrato.

Neste capítulo, irei concentrar-me na análise daquilo que a maioria das pessoas passaram a ver como o “socialismo por excelência” (se não o único tipo de socialismo que existe), provavelmente o ponto de partida mais adequado para qualquer discussão sobre o socialismo. Este “socialismo por excelência” é um sistema social no qual os meios de produção, ou seja, os recursos escassos usados para produzir bens de consumo, são “nacionalizados” ou “socializados”.

De fato, enquanto Karl Marx, e assim como ele a maioria dos seus contemporâneos intelectuais de esquerda, estava quase exclusivamente preocupado com a análise das falhas econômicas e sociais do capitalismo, e em todos os seus textos fez apenas alguns comentários gerais e vagos sobre o problema estrutural da organização do processo de produção sob o regime socialista, a alternativa supostamente superior ao capitalismo, não pode haver dúvida de que é isso (a socialização dos meios de produção) que ele considera a pedra angular de uma política socialista e a chave para um futuro melhor e mais próspero. Consequentemente, a socialização dos meios de produção tem sido defendida desde então por todos os socialistas da persuasiva ortodoxia marxista. 

Quanto às forças catalisadoras que impulsionam os regimes de socialização, elas são declaradamente igualitárias. Uma vez que se permite a existência de propriedade privada dos meios de produção, permite-se que haja diferenças. Se eu possuo o recurso A, você, então, não o possui, e nossa relação no que se refere a esse recurso é, portanto, diferente. Mediante a abolição da propriedade privada a posição de cada um vis-à-vis os meios de produção é equiparada de um só golpe, ou assim parece. Todos se tornam co-proprietários de tudo, refletindo uma situação de igualdade entre os seres humanos. E a racionalidade econômica desse regime é que ele é supostamente mais eficiente. 

O que significa ter uma economia de zeladores? O que significa, especificamente, modificar uma economia construída sobre a teoria natural da propriedade para uma socializada? 

A segunda observação está intimamente ligada a primeira e diz respeito às supostamente elevadas capacidades de coordenação do socialismo. Novamente, um exame mais detido revela que a diferença é meramente ilusória, criada apenas pela semântica: dizer que uma economia de proprietários privados é suplantada por uma economia nacionalizada cria a impressão de que, em vez de uma variedade de centros de tomada de decisão, passou a haver, subitamente, apenas um.

Tendo isso em mente, quais são as consequências da socialização dos meios de produção? Para começar, quais são as consequências “econômicas”, no sentido coloquial do termo? Existem três consequências intimamente relacionadas. 

Em primeiro lugar (e esta é a consequência geral imediata de todos os tipos de socialismo), há uma queda relativa na taxa de investimento, a taxa de formação de capital. 

Em segundo lugar, uma política de socialização dos meios de produção resultará num desperdício desses meios, ou seja, um uso no qual, na melhor das hipótese, satisfaz necessidades secundárias, e, na pior, não satisfaz de modo algum as necessidades, além de, exclusivamente, elevar os custos.  A razão para isso é a existência e a inevitabilidade da mudança!

Em terceiro lugar, socializar os meios de produção provoca empobrecimento relativo, ou seja, uma queda no padrão geral de vida, levando a uma superutilização de um dado fator de produção. 

A experiência também corrobora o que tem sido dito sobre o outro lado da moeda: a superutilização dos meios de produção de propriedade coletiva. Na Alemanha Ocidental esses bens públicos também existem e, como seria de esperar, estão relativamente em mau estado. Mas na Alemanha Oriental é algo realmente desmedido, e não é diferente, e na verdade é até pior, nos países da União Soviética, onde todos os fatores de produção, o maquinário e as construções são de propriedade coletiva, mantidos de forma insuficiente, se deteriorando, sem reparos, enferrujando e até mesmo alvo de vandalismo. Além disso, a crise ecológica é muito mais dramática na parte Oriental, apesar do estado relativamente subdesenvolvido da economia em geral, do que na parte Ocidental. E tudo isso não é, como o caso da Alemanha demonstra de forma clara e suficiente, porque há diferenças na inclinação natural das pessoas para cuidar e ter cuidado.

Finalmente, no que se refere às mudanças teoricamente previstas na estrutura social e na personalidade, as queixas sobre os superiores são, naturalmente, um fenômeno bastante comum em qualquer parte. Mas nos países socialistas do tipo russo, onde a atribuição de posições na hierarquia dos zeladores é, e deve ser, uma questão inteiramente política, essas reclamações sobre os superiores hierárquicos manifestamente incompetentes, desqualificados e grotescos são mais frequentes, severas e melhor fundamentadas, e, em consequência disso, pessoas decentes são mais frequentemente levadas ao desespero ou ao cinismo. E uma vez que poucas pessoas da Alemanha Oriental ainda vão para a Alemanha Ocidental numa idade em que ainda podem integrar a força de trabalho, alguns como fugitivos, mas com mais frequência mediante o pagamento de uma espécie de resgate, também existe material suficiente para ilustrar a conclusão de que no longo prazo uma economia socializada reduzirá as capacidades produtivas das pessoas. Entre aqueles que se mudam para a parte Ocidental há um número significante de indivíduos que leva uma vida produtiva bastante normal na parte Oriental, mas que, apesar da ausência de quaisquer barreiras linguísticas e culturais, mostra ser incapaz de se adaptar à sociedade Ocidental com sua demanda crescente por habilidades e espíritos competitivos e produtivos.


Capítulo 4 — Socialismo ao Estilo Social-Democrata

O socialismo ao estilo russo e o socialismo ao estilo social-democrata provêm das mesmas fontes ideológicas. Ambos são igualitários na motivação, pelo menos em teoria, e ambos têm, essencialmente, o mesmo objetivo final: a extinção do capitalismo enquanto sistema social baseado na propriedade privada e na fundação de uma nova sociedade caracterizada pela irmandade solidária e pela erradicação da escassez; uma sociedade na qual todo mundo é pago “de acordo com as suas necessidades”. 

Desde os primórdios do movimento socialista em meados do século XIX, porém, havia ideias conflitantes sobre os métodos mais adequados para atingir esses objetivos. Embora geralmente houvesse um acordo sobre a necessidade de socialização dos meios de produção, sempre houve opiniões divergentes sobre como proceder. De um lado, dentro do movimento socialista, havia os defensores de um rumo de ação revolucionária. Eles defendiam uma derrubada violenta dos governos existentes, a completa expropriação, num só golpe, de toda a propriedade dos capitalistas, e uma temporária ditadura do proletariado (como fora prometido, até que a escassez fosse, de fato, erradicada), ou seja, exercida por aqueles que não eram capitalistas, mas tiveram que negociar a sua força laboral com a finalidade de instituir a nova ordem. 

Do outro lado, havia os reformistas que defendiam uma mudança gradual. Eles argumentavam que, a partir da ampliação dos direitos, e em última instância, com um sistema de sufrágio universal, a vitória do socialismo poderia ser obtida mediante uma ação democrática e parlamentar. E seria assim porque o capitalismo, segundo a doutrina socialista vulgar, criaria uma tendência rumo à proletarização da sociedade, ou seja, uma inclinação para menos indivíduos serem autônomos e para mais pessoas se tornarem empregados. 

E de acordo com as crenças socialistas ordinárias, essa tendência iria, por sua vez, construir uma consciência de classe proletária cada vez mais uniforme que depois levaria a uma expansão de votos dos eleitores no partido socialista. E, assim argumentavam, enquanto essa estratégia estava muito mais alinhada com a opinião pública (mais sedutora para a maioria dos pacatos trabalhadores e ao mesmo tempo menos assustadora para os capitalistas), ao adotá-la, o sucesso do socialismo estaria mais assegurado.

Diante da efetiva experiência da revolução Russa (a violência, o derramamento de sangue, o exercício da expropriação descontrolada, o fato de que milhares de novos líderes, em muitos casos de reputação questionável ou simplesmente duvidosa, do pior caráter, foram sendo arrastados para o comando político), os socialdemocratas, na tentativa de ganhar apoio público, perceberam que teriam que abandonar a sua imagem revolucionária e se tornar, não apenas na prática, mas também na teoria, um partido resolutamente democrático e reformista.

Quais são as características centrais do socialismo estilo socialdemocrata? Há basicamente duas características. 

Em primeiro lugar, num contraste positivo em relação ao tradicional socialismo marxista, o socialismo social-democrata não proíbe legalmente a propriedade privada dos meios de produção e até aceita a ideia de que todos eles sejam privados – com a única exceção da educação, tráfego e comunicação, banco central, polícia e justiça.

Em segundo lugar, nenhum proprietário dos meios de produção possui legalmente todos os rendimentos que podem resultar do uso desses meios de produção, e nenhum proprietário é livre para decidir quanto da renda total da produção deve ser alocada para consumo e investimento. Em vez disso, parte da renda da produção que legalmente pertence à sociedade deve ser entregue a esta e em seguida, redistribuída para seus membros individuais, de acordo com as ideias de igualitarismo ou justiça distributiva. 

Significa que por mais reduzido que seja o grau de expropriação atualmente estabelecido, seus esforços produtivos são realizados sob uma ameaça sempre presente de que no futuro a parcela da renda que deve ser entregue à sociedade será aumentada de forma unilateral. Não é preciso observar muito para verificar como isto aumenta o risco ou o custo de produção, e, consequentemente, reduz a taxa de investimento.

Quais são as consequências econômicas, no sentido coloquial do termo, de se adotar um sistema socialista social-democrata? 

Entretanto, na medida em que o socialismo social-democrata se contenta com a expropriação parcial e com a redistribuição das rendas produzidas, alguns dos efeitos do empobrecimento, como resultado de uma política de completa socialização dos meios de produção, podem ser contornados.  Além disso, o problema da superutilização é, pelo menos, reduzido. 

Contudo, em hipótese alguma, podem ser evitadas todas as consequências do empobrecimento. O socialismo estilo social-democrata, por melhor que possa parecer em comparação com o socialismo do tipo russo, ainda leva, necessariamente, a uma redução do investimento e, portanto, da riqueza futura, quando comparado ao sistema capitalista.

Qual é o resultado econômico da introdução de tributos sobre a renda ou sobre as vendas onde antes não havia tributação, ou do aumento para um novo patamar do nível de tributação já existente?

Devemos recordar que o efeito do socialismo russo na formação dos tipos de personalidade era duplo: reduzia o incentivo para desenvolver habilidades produtivas e, ao mesmo tempo, favorecia o desenvolvimento dos talentos políticos. Estas também são, precisamente, as consequências do socialismo social-democrata. Como o socialismo social-democrata favorece as funções improdutivas tanto quanto as produtivas que não são de conhecimento público, e que por isso não podem ser atingidas pela tributação, consequentemente, o caráter da população muda. Este processo pode ser lento, mas, tanto quanto perdure a peculiar estrutura de incentivo estabelecida pelas políticas redistributivas, será constantemente operante.

A diferença entre ambos os tipos de socialismo reside (somente) no seguinte aspecto: sob o socialismo russo, o controle da sociedade sobre os meios de produção, e, consequentemente, sobre a renda produzida com eles, é completo, e, até o momento, não parece mais haver espaço para se engajar no debate político a respeito do grau adequado de politização da sociedade. A questão é resolvida sob um capitalismo puro (como estabelecido na outra extremidade do espectro), onde não há espaço para a política e todas as relações são exclusivamente contratuais. Por outro lado, sob o socialismo social-democrata, o controle social sobre a renda produzida de forma privada é, na verdade, apenas parcial, e um controle maior ou total só existe como um direito da sociedade que ainda não foi atualizado e que consiste numa ameaça potencial que paira sobre as cabeças dos produtores privados.


Capítulo 5 — O Socialismo do Conservadorismo

Este capítulo mostrará que o mesmo se dá com o conservadorismo, que é também uma forma de socialismo. O conservadorismo também gera empobrecimento e tanto mais quanto mais decididamente for aplicado. Mas antes de iniciar uma análise econômica sistemática e detalhada das formas peculiares pelas quais o conservadorismo produz esse resultado, seria adequado dar uma breve olhada na história para compreender melhor por que o conservadorismo é, de fato, socialismo, e como isto está relacionado com as duas formas igualitárias de socialismo discutidas anteriormente.

Não foi até o final do século XIX e início do século XX que o feudalismo foi alvo de um ataque realmente pesado. Dessa vez, o ataque era mais severo porque não era mais simplesmente a tentativa do homem prático (os mercadores) de garantir esferas de relativa liberdade com a finalidade de exercer o seu negócio. Era cada vez mais uma batalha ideológica contra o feudalismo. A reflexão intelectual sobre as causas da ascensão e queda do comércio e da indústria, e um estudo mais profundo sobre o Direito Romano e, particularmente, sobre o Direito Natural, que tinham sido redescobertos no curso da luta dos mercadores para desenvolver um direito internacional mercantil e justificá-lo contra as reivindicações concorrentes da lei feudal, levaram a uma compreensão mais sólida do conceito de liberdade, e da liberdade como um pré-requisito para a prosperidade econômica. Enquanto essas ideias se difundiam e ocupavam as mentes de um círculo de pessoas em constante expansão, culminando em trabalhos como os “Dois Tratados do Governo Civil” (1688), de John Locke, e a “Riqueza das Nações” (1776), de Adam Smith, a ordem antiga perdia a sua legitimidade. A velha maneira de pensar segundo vínculos feudais gradualmente deu lugar à ideia de uma sociedade contratual. Finalmente, como expressões exteriores dessa mudança conjuntural da opinião pública veio junto a Revolução Gloriosa de 1688 na Inglaterra, a Revolução Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789; e nada mais foi o mesmo após a ocorrência dessas revoluções. Elas provaram, de uma vez por todas, que a antiga ordem não era invencível e espalharam uma nova esperança para o progresso futuro no caminho rumo à liberdade e à prosperidade.

É com esse fundo histórico (um pouco simplificado, é claro, da forma como acabou de ser exposto) que o fenômeno do conservadorismo como uma forma de socialismo e a sua relação com as duas versões de socialismo originadas no marxismo deve ser visto e compreendido. Todas as formas de socialismo são respostas ideológicas ao desafio proposto pelo avanço do liberalismo; mas a posição adotada contra o liberalismo e contra o feudalismo – a antiga ordem que o liberalismo ajudou a destruir – difere consideravelmente. O desenvolvimento do liberalismo estimulou a mudança social, até certo ponto, num ritmo e variações jamais vistos até aquele momento. A liberalização da sociedade fez com que cada vez mais pessoas pudessem manter uma determinada posição social após adquiri-la e que poderiam fazê-lo através da produção mais eficiente para atender as necessidades mais urgentes dos consumidores voluntários, com o menor custo possível, e exclusivamente através de relações contratuais no que se refere à contratação de fatores de produção e, em particular, do trabalho. Os impérios mantidos unicamente pela força foram desmoronando diante dessa pressão. E como a demanda do consumidor, para quem a estrutura de produção tinha que cada vez mais se adaptar (e não o contrário), estava mudando constantemente e o surgimento de novos empreendimentos era cada vez menos regulado (na medida em que eram o resultado da apropriação original e/ou por contrato), nenhuma posição relativa na hierarquia da renda e da riqueza estava mais assegurada. Em vez disso, a mobilidade social para cima e para baixo aumentou significativamente, pois nem os proprietários privados dos fatores de produção nem os proprietários dos serviços de trabalho privados estavam mais protegidos das respectivas mudanças na demanda. Eles já não mais tinham garantidos preços e renda estáveis.

O antigo socialismo marxista e a nova social-democracia são as respostas igualitárias e progressistas a esse desafio da mudança, da incerteza e da mobilidade. A exemplo do liberalismo, eles celebraram a destruição do feudalismo e o avanço do capitalismo. Pensaram que foi o capitalismo que libertou o povo dos vínculos da exploração feudal e produziu enormes melhorias na economia; e compreenderam que o capitalismo, responsável pelo desenvolvimento das forças produtivas, era um passo evolutivo necessário e positivo no caminho rumo ao socialismo. O socialismo, da forma como eles concebiam, compartilhava com o liberalismo os mesmos objetivos: liberdade e prosperidade. Mas o socialismo supostamente melhoraria as conquistas do liberalismo pela superação do capitalismo – a anarquia de produção dos concorrentes privados que gerava as já mencionadas mudança, mobilidade, incerteza e a inquietação no tecido social – em seu estágio mais elevado de desenvolvimento mediante a implantação de uma economia racionalmente planejada e coordenada que evitaria que as inseguranças oriundas dessa mudança fossem sentidas a nível individual. Infelizmente, como ficou suficientemente demonstrado nos dois últimos capítulos, essa é uma ideia muito confusa. É precisamente por tornar os indivíduos insensíveis à mudança através de medidas redistributivas que se remove o incentivo para se adaptar rapidamente a qualquer mudança futura, e, por isso, em termos de avaliação do consumidor, o valor do que foi produzido será menor. E é precisamente porque um plano é substituído por muitos outros aparentemente descoordenados que a liberdade individual é reduzida e, mutatis mutandis, aumenta o governo de um homem sobre o outro. 

Por outro lado, o conservadorismo é a resposta anti-igualitária e reacionária às mudanças dinâmicas que são desencadeadas por uma sociedade liberalizada; é antiliberal e, em vez de reconhecer as conquistas do liberalismo, tende a idealizar e glorificar o antigo sistema feudal como ordeiro e estável.

Para realizar esses objetivos, o conservadorismo deve defender, e de fato defende, a legitimidade dos meios não-contratuais de aquisição e conservação da propriedade e da renda que dela deriva, uma vez que foi exatamente a confiança exclusiva sobre as relações contratuais que causaram a própria permanência das mudanças na distribuição relativa da renda e da riqueza. 


Capítulo 6 — O Socialismo de Engenharia Social e os Fundamentos da Análise Econômica

Até aqui os argumentos apresentados pelo socialismo provaram que a verdade era o oposto disso. Estes mostraram que o socialismo do tipo russo, caracterizado pela nacionalização ou socialização dos meios de produção, envolvia necessariamente desperdício econômico, uma vez que não existiriam preços para os fatores de produção (porque não era permitido comprar ou vender os meios de produção) e, consequentemente, não se poderia fazer a contabilidade de custos (que é um meio para direcionar os recursos escassos com usos alternativos para uma linha produção de maior valor produtivo). Em relação à social-democracia e ao socialismo conservador, foi demonstrado que, em qualquer caso, ambos resultam em aumento de custos de produção e, mutatis mutandis, num declínio dos custos em comparação à sua alternativa, ou seja, a não-produção e a produção no mercado-negro, o que, portanto, levaria a uma redução relativa na produção de riqueza uma vez que ambas as versões do socialismo criam uma estrutura de incentivos que (comparada ao sistema capitalista) favorece relativamente os não-produtores e os não-contratantes em detrimento dos produtores e dos contratantes de bens, produtos e serviços.

No entanto, o socialismo está muito vivo e muito bem, mesmo no Ocidente, onde o socialismo social-democrata e o conservadorismo permaneceram como ideologias poderosas. Como isso pôde acontecer? Um fator importante é que seus partidários abandonaram a ideia original de superioridade econômica do socialismo e recorreram a um argumento completamente diferente: o socialismo pode não ser economicamente superior, mas é moralmente preferível. Essa afirmação será estudada no capítulo 7. Mas, certamente, este não é o fim da história. O socialismo readquiriu força até mesmo na esfera econômica. Isso se tornou possível porque o socialismo combinou suas forças com a ideologia do empirismo, que, tradicionalmente, tem tido peso no mundo Anglo-Saxão e que, particularmente através da influência do chamado Círculo de Viena de filósofos positivistas, tornou-se a filosofia-epistemologia-metodologia dominante do século XX, não somente no campo das ciências naturais, mas também nas ciências sociais e econômicas. Isso se aplica não só aos filósofos e metodologistas dessas ciências (que desde então se libertaram do feitiço do empirismo e do positivismo), mas provavelmente até mais aos profissionais (que ainda estão sob sua forte influência). Ao combinar sua própria força com o empirismo ou com o positivismo, que para o nosso propósito inclui o racionalismo crítico de K. R. Popper e de seus seguidores, o socialismo se desenvolveu naquilo que será chamado daqui em diante de “socialismo de engenharia social”. É uma forma de socialismo muito diferente em seu estilo de raciocínio do marxismo tradicional, que era muito mais racionalista e dedutivo – aquele que Marx adotou provinha do economista clássico David Ricardo, a mais importante fonte dos seus escritos econômicos. Mas parece ser justamente por causa dessa diferença de estilo que o socialismo de engenharia social tem sido capaz de obter cada vez mais apoio dos grupos tradicionais de social-democratas e conservadores-socialistas. Na Alemanha Ocidental, por exemplo, a ideologia da “engenharia social gradativa”, como K. R. Popper chamou sua filosofia social, tornou-se algo como o denominador comum dos “moderados” em todos os partidos políticos e só os doutrinários de ambos os lados não a aprovariam. Inclusive, o ex-chanceler Helmut Schmidt, do SPD (Sozialdemokratische Partei Deutschlands, Partido Social-Democrata Alemão), defendeu publicamente o popperianismo como sendo a sua própria filosofia. Contudo, é provavelmente nos Estados Unidos que essa filosofia está mais profundamente enraizada como se tivesse sido criada quase sob medida para a forma de pensar dos americanos no que se refere aos problemas práticos e métodos pragmáticos e a busca de soluções. Como o empirismo-positivismo poderia ajudar a salvar o socialismo? Num grau altamente abstrato, a resposta deveria ser clara. O empirismo-positivismo precisa ser capaz de apresentar as razões pelas quais todos os argumentos apresentados até agora não conseguiram ser decisivos; deve tentar provar como se pode evitar tirar as conclusões que eu tirei e ainda alegar estar sendo racional e operando de acordo com as regras da investigação científica. Mas como, detalhadamente, isso pode ser realizado? Sobre isso, a filosofia do empirismo e do positivismo oferece dois argumentos aparentemente plausíveis. O primeiro e, certamente, o mais central de seus princípios é esse: o conhecimento sobre a realidade, que é chamado de conhecimento empírico, deve ser verificável ou, pelo menos, falseável pela experiência; e a experiência é sempre de um tipo que poderia, em princípio, ter sido outra daquela que realmente foi, de modo que ninguém poderia saber de antemão, ou seja, antes de efetivamente ter tido uma experiência em particular, se o resultado aconteceria de uma forma ou de outra. Se, mutatis mutandis, o conhecimento não é verificável ou falseável pela experiência, não é, então, conhecimento sobre nada que seja real – isto é, conhecimento empírico –, mas simplesmente conhecimento sobre as palavras, sobre o uso dos termos, sobre os sinais e as regras transformacionais – ou conhecimento analítico. E é altamente duvidoso que o conhecimento analítico deve ser classificado, sob qualquer condição, como “conhecimento”. 

De fato, qualquer que seja a evidência empírica que se apresente contra o socialismo tão logo se adote a filosofia empírica-positivista, ou seja, tão logo a ideia de formular um argumento baseado em princípios tanto a favor quanto contra o socialismo é derrubada como sendo vã e mal concebida, e que em vez disso só se admite, é claro, que possa ter havido algum erro no que se refere aos detalhes de um plano político socialista que, depois, seria suficientemente flexível para corrigir certos pontos da sua própria política sempre que o resultado não tenha sido satisfatório, o socialismo é assim imunizado de qualquer crítica decisiva, porque qualquer falha pode sempre ser atribuída a alguma variável interveniente que ainda não foi controlada.

Deve-se observar que nem mesmo o experimento mais perfeitamente controlado e conduzido poderia alterar um pouco essa situação. Assim, não importa quais acusações são levantadas contra o socialismo, na medida em que são baseadas em evidências empíricas, o empirismo-socialista poderia argumentar que não há maneira de conhecer antecipadamente quais serão os resultados de um determinado regime  político sem realmente adotá-lo e deixar que a experiência fale por si mesma. E quaisquer que sejam os resultados, a ideia socialista original – o “núcleo duro” do próprio “programa de pesquisa”, como o teria chamado o filósofo neopopperiano Lakatos – pode ser sempre e facilmente recuperada apontando para as variáveis negligenciadas mais ou menos plausíveis cuja falta de controle é a hipótese considerada como responsável pelo resultado negativo, com as hipóteses novamente revisadas devendo ser testadas indefinidamente, ad infinitum.

Para compreender esta questão é necessário apenas voltar ao raciocínio econômico correto; perceber a natureza epistemológica singular da economia como uma ciência apriorística da ação humana que se assenta em fundamentos cuja própria negação deve pressupor a sua validade; e reconhecer, por sua vez, que uma ciência da ação fundada numa metodologia empírica-positivista é tão infundada quanto a afirmação de que “se pode ter e comer o bolo ao mesmo tempo”.


Capítulo 7 — A Justificativa Ética do Capitalismo e Por que o Socialismo é Moralmente Indefensável

Os quatro capítulos anteriores forneceram razões sistemáticas e evidências empíricas para a tese de que o socialismo como um sistema social que não é inteiramente baseado na “teoria natural da propriedade” (a regra do primeiro-que-usa é o primeiro-que-possui) que caracteriza o capitalismo deve ser necessariamente, e de fato é, um sistema inferior no que se refere à produção de riqueza e ao padrão de vida médio.

Essa alegação será estudada detalhadamente neste capítulo. E ao fazê-lo, serão analisadas duas afirmações separadas, mas correlacionadas: (1) a afirmação feita particularmente por socialistas marxistas e socialdemocratas, e, em menor grau, pelos conservadores socialistas, de que é possível formular um argumento a favor do socialismo baseado em princípios por causa do valor moral de seus princípios e, mutatis mutandis, que o capitalismo não pode ser moralmente defendido; e (2) a afirmação do socialismo empírico de que as afirmações normativas (“deveria” ou “tem que”) – uma vez que não se relacionam unicamente aos fatos, nem simplesmente declaram uma definição verbal, e, portanto, não são afirmações analíticas nem empíricas – não são realmente afirmações, pelo menos não afirmações que possam ser chamadas de “cognitivas” num sentido mais amplo, mas meras “expressões verbais” usadas para expressar ou despertar sentimentos (tais como “Opa!” ou “Rrrrrr”).

Consequentemente, somos obrigados a concluir que a ética socialista é um fracasso completo. Em todas as suas versões práticas, não é melhor do que uma regra que defenda coisas como “eu posso bater em você, mas você não pode bater em mim”, que, inclusive, não passa no teste da universalização. E se adotar regras universais, o que basicamente significaria dizer que “todo mundo pode bater em todo mundo”, essas regras não poderiam ser afirmadas, de forma concebível, como universalmente aceitáveis por conta de suas próprias especificações materiais. Simplesmente afirmar e argumentar dessa forma deve pressupor os direitos de propriedade de alguém sobre o seu próprio corpo. Portanto, só a ética do capitalismo do primeiro-que-chega é o primeiro-que-possui pode ser efetivamente defendida como estando implícita na argumentação. E nenhuma outra ética poderia ser justificada dessa forma, enquanto que justificar algo no curso da argumentação significa pressupor a validade dessa ética da teoria natural da propriedade.


Capítulo 8 — Os Fundamentos Sócio-Psicológicos do Socialismo ou a Teoria do Estado

Nos capítulos anteriores foi demonstrado que o socialismo enquanto sistema social que resulta em redistribuição de títulos de propriedade dos proprietários-usuários e contratantes para os proprietários não-usuários e não-contratantes, acarretam necessariamente uma redução na produção de riqueza uma vez que o uso e a contratação de recursos são atividades onerosas cujo desenvolvimento é ainda mais oneroso se comparado com as alternativas disponíveis para os agentes. Em segundo lugar, tal sistema não pode ser defendido como uma ordem social justa ou correta sob o ponto de vista moral porque para argumentar dessa forma, na verdade, para argumentar sob qualquer condição, a favor ou contra qualquer coisa, seja uma posição moral, amoral, empírica ou lógico-analítica, se pressupõe necessariamente a validade da regra do primeiro-que-usa é o primeiro-que-possui da teoria natural da propriedade e do capitalismo, pois de outra forma ninguém poderia sobreviver e depois dizer, ou possivelmente concordar com, qualquer coisa como sendo uma unidade física independente.

Se não pode ser formulado um argumento moral nem econômico para o socialismo, o socialismo é então reduzido a uma questão de significado meramente social-psicológico. Portanto, quais são os fundamentos sócio-psicológicos nos quais se assenta o socialismo? Ou, uma vez que o socialismo foi definido como uma política institucionalizada de redistribuição de títulos de propriedade à revelia dos proprietários-usuários e contratantes, como é possível uma instituição que implementa a expropriação mais ou menos total dos proprietários naturais?

Se uma instituição existente é autorizada a adquirir os títulos de propriedade de outra forma que não pela apropriação original ou por contrato, deve supostamente prejudicar outras pessoas que se consideram proprietárias naturais dessas mesmas coisas.

Ao assegurar e provavelmente aumentar sua renda monetária e/ou não-monetária, se reduz a de outras pessoas – algo categoricamente diferente de uma situação que existe quando há uma relação contratual entre pessoas na qual ninguém ganha às custas dos outros, mas todos lucram, se não, simplesmente não haveria qualquer troca. Neste caso, se pode esperar uma resistência ao exercício dessa política. Essa inclinação para resistir pode, é claro, ser mais ou menos intensa, e pode mudar ao longo do tempo e se tornar mais ou menos evidente, além de apresentar uma maior ou menor ameaça à instituição que implementar a política de redistribuição. Mas contanto que isso exista, a instituição deve avaliá-la. Particularmente, deve avaliar com isso se considera que as pessoas que representam essa instituição são pessoas comuns que, como todo mundo, tem interesse não apenas de estabelecer a sua renda atual, renda esta que são capazes de assegurar por si próprias em suas funções como representantes de sua instituição, mas também aumentar tanto quanto possível essa renda. Como, e este é precisamente o problema, elas podem estabelecer e possivelmente aumentar a sua renda a partir de trocas não-contratuais, embora isso necessariamente produza vítimas e, ao longo do tempo, aumente o número de vítimas, ou de vítimas que serão cada vez mais prejudicadas?

A resposta pode ser dividida em três partes que serão discutidas uma de cada vez: (1) pela violência agressiva; (2) corrompendo as pessoas ao deixá-las ou, melhor, uma parte delas, usufruir das receitas coercivamente expropriadas dos proprietários naturais das coisas; e (3) corrompendo as pessoas ao deixá-las, ou uma parte delas, participar de uma política específica de expropriação a ser adotada.


Capítulo 9 — Produção Capitalista e o Problema do Monopólio

Os capítulos anteriores demonstraram que não pode ser formulado um argumento econômico nem um argumento moral a favor do socialismo. O socialismo é economicamente e moralmente inferior ao capitalismo. O capítulo 8 investigou a razão pela qual o socialismo, contudo, é um sistema social viável e analisou as características sócio-psicológicas do estado – a instituição que corporifica o socialismo. Sua existência, estabilidade e crescimento se assentam na agressão e no apoio público de sua agressão, que o estado administra com eficiência. Por um lado, isso é feito através de uma política de discriminação popular; isto é, uma política que suborna algumas pessoas dentro de uma tolerada e apoiada exploração contínua de terceiros pela concessão de benefícios; em segundo lugar, mediante uma política de participação popular na formulação da política, ou seja, corrompendo e persuadindo a população a entrar no jogo da agressão pela concessão aos potenciais detentores do poder a oportunidade consoladora de adotar seus esquemas específicos de exploração em uma das mudanças políticas subsequentes.

Devemos voltar agora à economia e analisar o funcionamento de um sistema de produção capitalista – uma economia de mercado – como alternativa ao socialismo, trazendo desse modo e de maneira construtiva o meu argumento contra o socialismo e assim fechar o círculo. Enquanto o capítulo final será dedicado à questão de como o capitalismo resolve o problema da produção dos chamados “bens públicos”, este capítulo irá explicar o que poderia ser denominado de funcionamento normal da produção capitalista e diferenciá-lo do funcionamento normal de um sistema de produção estatal ou social. Nós, portanto, voltaremos aquilo que é geralmente considerado como um problema supostamente especial que mostra uma deficiência econômica peculiar num sistema puro de produção capitalista: o suposto problema da produção monopolística.

Ignorando por enquanto os problemas especiais do monopólio e da produção de bens públicos, iremos demonstrar por que o capitalismo é economicamente superior quando comparado à sua alternativa por três razões estruturais. A primeira é que só o capitalismo pode alocar racionalmente, ou seja, de acordo com as avaliações dos consumidores, os meios de produção; a segunda é que só o capitalismo pode assegurar que, com a qualidade das pessoas e a alocação dos recursos que estão sendo dadas, a qualidade da produção realizada atinja seu nível ótimo na medida em que é novamente julgado segundo as avaliações dos consumidores; e a terceira é que, considerando uma determinada alocação dos fatores de produção e a qualidade da produção, e mais uma vez julgado de acordo com as avaliações dos consumidores, só o sistema de mercado pode garantir que o valor dos fatores de produção seja conservado de forma eficiente ao longo do tempo.

Qual é a definição de “preço monopolístico” e, em contraste, de “preço competitivo”, de acordo com a ortodoxia econômica (que, na questão sob investigação, inclui a Escola Austríaca de economia representada por Ludwig von Mises)? A seguinte definição é típica:

O monopólio é um pré-requisito para o aparecimento de preços monopolísticos, mas não é o único pré-requisito. É necessário atender a uma condição adicional, qual seja, certa conformação da curva da demanda. A mera existência de monopólio não significa que essa condição esteja atendida. O editor de um livro do qual detenha os direitos de publicação é um monopolista. Mas pode ser que não consiga vender uma única cópia, por menor que seja o preço solicitado. O preço pelo qual o monopolista vende sua mercadoria nem sempre é um preço monopolístico. Preços monopolísticos são apenas os preços pelos quais é mais vantajoso para o monopolista restringir a quantidade a ser vendida do que expandir suas vendas até o limite que o mercado competitivo permitiria.

Nem da perspectiva do próprio monopolista nem da de qualquer observador externo a ação restritiva poderia ser conceitualmente diferenciada das realocações normais que apenas acompanham as mudanças antecipadas na demanda. Toda vez que o monopolista se envolve em atividades restritivas que são acompanhadas por preços mais altos, ele deve, por definição, utilizar os fatores liberados para outros fins muito mais valorizados, o que significa que ele se adequa às mudanças na demanda relativa. Segundo M. Rothbard,

Não podemos usar a “restrição da produção” como o teste do preço monopolístico vs. preço competitivo. Um movimento de um preço subcompetitivo para um preço competitivo também envolve uma restrição da produção desse bem associado, é claro, a uma expansão da produção em outros ramos de atividades pelos fatores que foram liberados. Não há nenhuma maneira de distinguir essa restrição da expansão, que é a consequência natural da suposta situação de “preço monopolístico”. Se a restrição é acompanhada por um aumento de lazer para o proprietário do fator trabalho em vez do aumento da produção de algum outro bem no mercado, ainda se trata da expansão do rendimento de um bem de consumo – o lazer. Ainda não há uma forma de determinar se a “restrição” resultou num preço “monopolístico” ou num preço “competitivo”, ou em que medida a causa estava envolvida no aumento do lazer. Definir um preço monopolístico como um preço alcançado pela venda de uma quantidade menor de um produto por um preço mais alto, por essa razão, não tem qualquer sentido, uma vez que a mesma definição se aplica ao preço “competitivo” quando comparado ao preço subcompetitivo.

A análise da questão do monopólio não fornece qualquer razão para modificar a descrição feita anteriormente sobre a forma como a economia de puro mercado normalmente funciona e a sua superioridade sobre qualquer tipo de sistema de produção socialista ou estatista. Não é apenas altamente improvável, tanto empiricamente quanto teoricamente, ocorrer um processo de monopolização mas, mesmo que ocorresse, seria inofensivo do ponto de vista dos consumidores. No âmbito de um sistema de mercado, um preço monopolístico restritivo não poderia ser distinguido do aumento do preço normal decorrente de uma demanda mais elevada e de alterações nos preços relativos. E como toda ação restritiva é simultaneamente expansionista é simplesmente absurdo afirmar que a redução da produção em um ramo de produção associado a um aumento na receita total significa uma má-distribuição dos fatores de produção e uma exploração dos consumidores. O equívoco presente nesse raciocínio foi corretamente demonstrado no seguinte trecho de um dos trabalhos tardios de L. v. Mises no qual ele refuta implicitamente a sua própria posição ortodoxa já mencionada em relação ao problema monopólio-preço. Mises afirma:

Um empreendedor que tem 100 unidades de capital à sua disposição emprega, por exemplo, 50 unidades para a produção de p e 50 unidades para a produção de q. Se ambas são lucrativas, é estranho culpá-lo por não ter empregado mais, por exemplo, 75 unidades para a produção de p. Ele poderia aumentar a produção de p apenas pela redução correspondente da produção de q. Mas, no que se refere à q, a mesma falha poderia ser encontrada entre os descontentes. Se o empreendedor é responsabilizado por não ter produzido mais p, deve-se responsabilizá-lo também por não ter produzido mais q. Isso significa que se responsabiliza o empreendedor pelo fato de que há uma escassez dos fatores de produção e que a Terra não é a de Cockaigne.

Não existe o problema do monopólio como um problema especial dos mercados que exige uma ação estatal para ser resolvido. De fato, só quando o estado entra em cena é que surge um problema real, não ilusório, do monopólio e dos preços monopolísticos. O estado é a única empresa cujos preços e práticas empresariais podem ser conceitualmente diferenciadas de todos os outros preços e práticas, e cujos preços e práticas podem ser classificados como “muito altos” ou “exploração” de uma maneira completamente objetiva e não arbitrária. São preços e práticas que os consumidores não desejam voluntariamente aceitar e pagar, mas que são forçados a fazê-los mediante ameaças de violência. E só de uma instituição tão privilegiada quanto o estado também é normal esperar e constatar um processo permanente de aumento da monopolização e da concentração. Na comparação com outras empresas, que estão sujeitas ao controle dos consumidores compradores ou não-compradores voluntários, a empresa “estado” é uma organização que pode tributar as pessoas e não precisa aguardar que elas aceitem o imposto, e pode impor regulações sobre o uso que as pessoas fazem de sua propriedade sem que seja preciso obter o seu consentimento. Isso, evidentemente, dá ao estado uma enorme vantagem na competição pelos recursos escassos na comparação com outras instituições. Se apenas se considera que os representantes do estado são igualmente impulsionados pelo lucro como qualquer outra pessoa, deduz-se dessa posição privilegiada que a organização “estado” deva ter uma tendência relativamente mais evidente para o crescimento do que qualquer outra organização. E, realmente, enquanto não havia evidência para a tese de que o sistema de mercado provocaria uma tendência para o crescimento do monopólio, a tese de que um sistema estatista a produziria é amplamente apoiada pela experiência histórica.


Capítulo 10 — Produção Capitalista e o Problema dos Bens Públicos

Tentamos demolir o socialismo tanto no campo econômico quanto na esfera moral. Tendo reduzido-o a um fenômeno de significado exclusivamente sócio-psicológico, ou seja, um fenômeno cuja existência exclui tanto a boa economia quanto a boa moral, suas raízes foram explicadas em termos de agressão e da influência corruptora que uma política de divide et impera exerce na opinião pública. O último capítulo retorna à economia para desferir os golpes finais no socialismo ocupando-se da tarefa construtiva de explicar o funcionamento de uma ordem social capitalista como a rival economicamente superior do socialismo e pronta para ser adotada a qualquer momento. Em termos de avaliações dos consumidores, o capitalismo foi indicado como sendo superior no que tange à alocação dos fatores de produção, à qualidade da fabricação dos bens produzidos e à preservação dos valores incorporados ao capital ao longo do tempo. Foi, de fato, demonstrado que não constitui, de modo algum, qualquer problema especial o problema do monopólio supostamente associado ao sistema de puro mercado. Em vez disso, tudo o que foi dito sobre o funcionamento normalmente mais eficiente do capitalismo também é verdade no que se refere aos produtores monopolistas, na medida em que eles estão realmente sujeitos ao controle das aquisições voluntárias ou das abstenções voluntárias ocorridas nas compras realizadas pelos consumidores.

Este último capítulo analisará um argumento especial cada vez mais citado e que supostamente exige algumas alterações na tese da superioridade econômica do capitalismo: o argumento da produção dos chamados bens públicos, particularmente, a provisão de segurança. Se o que foi dito no capítulo anterior sobre o funcionamento de uma economia de mercado é verdade, e se os monopólios são completamente inofensivos para os consumidores, uma vez que os consumidores têm o direito de boicotá-los e entrar livremente no mercado de produtores que competem entre si, se deve então chegar à conclusão de que tanto por razões morais quanto por razões econômicas a produção de todos os bens e serviços deveria ser deixada nas mãos da iniciativa privada. E, particularmente, deduz-se que mesmo a produção da lei e da ordem, da justiça e da paz – aquelas coisas que se pensa como sendo os candidatos mais prováveis de bens fornecidos pelo estado pelas razões explicadas no capítulo 8 –, deveriam ser fornecidas privadamente por um mercado competitivo. Essa é, de fato, a conclusão formulada por G. de Molinari, um renomado economista belga, no início de 1849 – numa época em que o liberalismo clássico ainda era a força ideológica dominante e “economista” e “socialista” eram geralmente considerados (e legitimamente) como sendo antônimos:

Se existe uma verdade bem estabelecida na economia política, é esta:

Que em todos os casos, para todas as mercadorias que servem à provisão das necessidades tangíveis ou intangíveis do consumidor, é do maior interesse dele que o trabalho e o comércio permaneçam livres, porque a liberdade do trabalho e do comércio tem, como resultado necessário e permanente, a redução máxima do preço.

E esta:

Que os interesses do consumidor de qualquer mercadoria devem sempre prevalecer sobre os interesses do produtor. 

Assim, ao seguirmos esses princípios, chegamos a esta rigorosa conclusão:

Que a produção de segurança deveria, nos interesses dos consumidores desta mercadoria intangível, permanecer sujeita à lei da livre competição.

De onde se segue:

Que nenhum governo deveria ter o direito de impedir que outro governo entrasse em competição com ele ou que requeresse que os consumidores adquirissem exclusivamente seus serviços.

E Molinari comenta esse argumento dizendo o seguinte: “Ou isso é tão lógico quanto verdadeiro ou então os princípios em que se baseia a ciência econômica são inválidos”.

Aparentemente, só há uma saída para essa conclusão desagradável (ou seja, para todos os socialistas): argumentar que há bens particulares sobre os quais não se aplica o raciocínio econômico anterior devido a algumas razões especiais. É isso o que os chamados teóricos dos bens públicos estão determinados a provar. Porém, demonstraremos que, na verdade, não existem bens especiais nem razões especiais e que, em particular, a produção de segurança não apresenta qualquer problema diferente do da produção de qualquer outro bem ou serviço, seja casa, queijo ou seguro. Apesar de seus muitos seguidores, toda a teoria dos bens públicos é construída sob um raciocínio defeituoso e superficial, é dominada por inconsistências internas e por falácias lógicas nas quais a conclusão do argumento desrespeita a premissa inicial (non sequitur), além de apelar ao, e jogar com, os preconceitos e as crenças populares, e sem qualquer mérito científico.184 Com o que se parece, então, a “rota de fuga” que os economistas socialistas encontraram para evitar a conclusão de Molinari? Desde a época de Molinari, tornou-se cada vez mais comum responder a questão sobre se há bens nos quais se aplicam diferentes tipos de análise econômica de maneira afirmativa. Na verdade, hoje em dia é quase impossível encontrar um único livro-texto de economia que não estabeleça ou enfatize a importância vital da distinção entre bens privados, pelos quais a verdade da superioridade econômica de uma ordem capitalista de produção é geralmente reconhecida, e os bens públicos, pelos quais essa superioridade é geralmente negada.185 Diz-se que determinados bens e serviços, e entre eles a segurança, têm uma característica especial, ou seja, o acesso para usufruí-los não pode estar restrito às pessoas que realmente financiaram a sua produção. Pelo contrário, as pessoas que não os financiaram também podem aproveitar os seus benefícios. Esses bens são chamados de bens ou serviços públicos (em oposição aos bens ou serviços privados, que beneficiam exclusivamente as pessoas que realmente pagaram por elas). Argumenta-se que é devido a essa característica especial que os bens públicos não podem ser produzidos pelos mercados ou, pelo menos, não em quantidade ou qualidade suficientes, e, portanto, exige-se uma ação estatal compensatória. Os exemplos apresentados por diferentes autores para os supostos bens públicos variam de forma ampla. Eles muitas vezes classificam os mesmos bens e serviços de forma diferente, não deixando de discutir quase nenhuma classificação de um bem específico. Isso prenuncia claramente o caráter ilusório de toda a distinção. Contudo, alguns exemplos de bens públicos que desfrutam particularmente de um status popular são os bombeiros que impedem o incêndio na casa do vizinho, o que permite que ele lucre com a ação do meu corpo de bombeiros mesmo que não contribua com nada para financiá-lo; ou a polícia, que ao fazer a ronda nos arredores da minha propriedade também assusta os ladrões em potencial da propriedade do meu vizinho, mesmo que ele não ajude a financiá-la; ou o farol, um exemplo particularmente caro aos economistas, que ajuda as embarcações a encontrar a sua rota, mesmo que seus proprietários não contribuam com um centavo para a sua construção ou manutenção.

Em todo caso, implementar um sistema social puramente capitalista com produtores privados de segurança – um sistema que permitisse a liberdade de escolha – seria necessariamente melhor do que aquele que temos atualmente. Mesmo que essa ordem entrasse em colapso por causa da grande quantidade de pessoas que ainda estivessem comprometidas com uma política de agressão e exploração de outras pessoas, a humanidade teria pelo menos experimentado um glorioso interlúdio. E caso essa ordem sobrevivesse, o que parece ser o resultado mais provável, seria o começo de um sistema de justiça e de prosperidade econômica jamais vistos na história.



 

HOPPE, Hans-Hermann. Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo. Tradução de Bruno Garschagen. 2.ª, São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2013.