Pensadores da Nova Esquerda (Notas do Livro)

Apresentação à Edição Brasileira

Subsídios à Desconfiança — Por Rodrigo Gurgel

Roger Scruton é um desses raros intelectuais que, ao longo de suas vidas, dedicam-se a imenso leque de estudos(filosofo, ensaísta e crítico literário), sem jamais descuidar do rigor e do entusiasmo. Ainda que tenha concentrado sua carreira acadêmica na área da Estética — especificamente arquitetura e música —, em setenta anos de vida escreveu mais de quatro dezenas de livros: Kant, Spinoza, a importância do pessimismo (e o perigo das falsas esperanças), o desejo sexual, vinhos, as instituições inglesas, o desenvolvimento e o declínio do Ocidente, ambientalismo, filosofia política - tudo desperta seu interesse, incluindo criação literária (ele produziu obras de ficção) e composição de peças musicais (para duas delas, escreveu também os libretos).

Essa instigante bibliografia — da qual temos, e m língua portuguesa, raras traduções — não é fruto, entretanto, apenas do trabalho restrito ao magistério e às bibliotecas. Scruton foi, entre as décadas de 1970 e 1980, fervoroso ativista da luta pela liberdade nos países da Europa Oriental, então sob o jugo comunista. E esteve à frente, por 18 anos, de uma das principais publicações conservadoras, a The Salisbury Review, trabalho que lhe valeu processos e perseguições.

No que se refere a estes Pensadores da Nova Esquerda, trata-se de um conjunto de ensaios a respeito de figuras veneradas dentro e fora do mundo acadêmico. Não há exagero no que afirmo: não falo da ausência do necessário distanciamento crítico, mas de real idolatria.

Publicado em 1986 — três anos antes da Queda do Muro de Berlim, da Revolução de Veludo, na antiga República Socialista Tchecoslovaca, e dos movimentos, pacíficos ou não, que se espalharam pelos países do bloco soviético —, este livro é um ataque contundente aos teóricos marxistas cujas especulações referendam ditaduras (o caso cubano é paradigmático) e regimes, como o da Venezuela chavista, que usam eleições aparentemente democráticas para assegurar a perpetuação do despotismo.

De fato, passados quase trinta anos, Pensadores da Nova Esquerda continua atual. Quando Scruton cita os estudantes que, entre os anos 1960 e 1970, " educados inapropriadamente, fragilizados por sua ignorância da história e da cultura de seus ancestrais, estavam ávidos por doutrinação " , é como se falasse da realidade brasileira, em que as promessas de construção imediata de um paraíso terreno continuam seduzindo a juventude.

Capítulo a capítulo, repetem-se, diante do leitor, os lugares-comuns do pensamento marxista: o "autoengano do intelectual animado pelo sentimento de sua própria pureza moral"; a ideia foucaultiana de que "cada episteme é a serva de algum poder ascendente, e teve, como sua função principal, a criação de uma 'verdade' que serve ao interesse do poder"; o "processo hagiográfico permanente, no qual os pensadores de segundo escalão (tais como o próprio Lênin) são apresentados como protótipos de inteligência e sabedoria, cujas palavras são oráculos e cujos feitos são também revelações" (e a consequente conclusão de que esse" intelectual crítico" tem o "direito de legislar" sobre nós, homens que "meramente prejulgamos"); a " fé cega " do radical que luta para "distanciar-se do mundo contaminado que o circunda em busca do puro, mas incognoscível, reino da emancipação humana"; a eterna tentativa da esquerda de, por considerar os "parâmetros constitucionais muito irrelevantes" , construir um "novo tipo de ordem social, não mediada por instituições ", prática que, Scruton lembra, caracterizou o fascismo italiano - e foi recuperada entre nós pelo governo Dilma Roussef e seu Decreto 8 .243 .

Ao analisar, no capítulo dedicado a Gyõrgy Lukács, como as discussões sobre "reificação" nas páginas da New Left Review (porta voz do marxismo na Grã- Bretanha) nada adicionaram à retórica do socialismo, " senão pseudoteoria ", Scruton sintetiza o trabalho dos intelectuais que analisa: " um moroso farejar do intelecto ao redor de um santuário inatingível". Em sua obstinada luta para negar a realidade, um " farejar" , acrescento, verdadeiramente diabólico.

Os deliciosos trechos irônicos — que Scruton chama, com seu humor britânico, de "equívocos dos seus padrões de polidez literária" — completam este livro elaborado na contramão do discurso hoje dominante.

Por essas e outras razões — o leitor inteligente as descobrirá —, Pensadores da Nova Esquerda pode desempenhar, no Brasil, a função de um manual de primeiros socorros, útil para o jovem cuja desconfiança cresce quanto mais os nomes aqui analisados são repetidos com irrefletida euforia por seus professores.

São Paulo, outubro de 2014.


Prefácio

Os capítulos a seguir foram publicados originalmente como ensaios independentes na The Salisbury Review. Eu os corrigi quando necessário, e a eles adicionei uma introdução, uma conclusão e um capítulo (nº 5), cujo texto fora publicado na The Cambridge Review. Espero que este livro seja útil àqueles que, como eu, acharam os escritos da Nova Esquerda ao mesmo tempo desafiadores e irritantes, e que desejam saber que diferença fizeram no meio intelectual.

Tirei grande proveito dos debates com David J. Levy, Zdenek Vasicek, R. A. D. Grant e Václav Belohradsky, e da divergência ardorosa de Andrea Christofidou, que também forneceu uma inestimável contribuição bibliográfica. Dedico o resultado deste trabalho aos amigos que, por viverem em lugares do mundo onde a esquerda ancestral triunfou, não puderam ser nomeados.

Londres

Páscoa de 1985

Roger Scruton


Capítulo 1 — O Que É Esquerda*?

* No original, em inglês, " What is Left?" contém um jogo de palavras que se perde na tradução: "O que sobra? ", ou, ainda, "O que resta? " . (N. T. )

Nenhum pensador político na conjuntura da Europa e da América modernas pode ignorar as mudanças impostas à nossa vida intelectual pelos escritores e ativistas da esquerda. Nosso entendimento dos homens e da sociedade parece ter sido transformado não uma vez ou duas, mas uma centena de vezes, pela análise determinística da história e pelas instituições fundadas em nome da política socialista. Nenhum escritor pode tapar inteiramente seus ouvidos aos argumentos e às exortações que lhe são propalados dos "postos de comando" da economia intelectual e moral e, embora agora seja evidente que aqueles postos foram capitulados sem qualquer disputa e continuam inadequadamente reivindicados, nem sempre se reconhece a importância de recuperá-los.


Capítulo 2 — E . P. Thompson 

Capítulo 3 — Ronald Dworkin

Capítulo 4 — Michel Foucault

Capítulo 5 — R. D. Laing

Capítulo 6 — Raymond Williams

Capítulo 7 — Rudolf Bahro

Capítulo 8 — Antonio Gramsci

Capítulo 9 — Louis Althusser

Capítulo 10 —  lmmanuel Wallerstein

Capítulo 11 —: Jürgen Habermas 

Capítulo 12 — Perry Anderson

Capítulo 13 — Gyõrgy Lukács 

Capítulo 14 — J . K. Galbraith

Capítulo 15 — Jean-Paul Sartre


Capítulo 16 — O Que É Direita?*

* No original, What is right? trocadilho que pode significar "o que é a direita?" ou "o que é certo?".

Escrevendo no The Communist Journal de setembro de 1847, Marx dissociava-se "daqueles comunistas que estão prontos para destruir a liberdade e que querem fazer o mundo transformar-se num grande quartel ou num gigantesco asilo". Ele prometeu retornar à questão da liberdade futuramente, mas nunca o fez. Para nós, voltando a atenção para a história da influência de Marx, há uma sombria lição nesta promessa não cumprida. O gigantesco sistema de controle — diga-se, em quartéis e asilos — que agora domina o mundo em nome de Marx ainda precisa ser compreendido por aqueles que defendem seus objetivos e sua ideologia. Nos escritos da esquerda, o conceito de liberdade importa muito: emancipação é, ao mesmo tempo, o propósito individual e a grande causa social. Contudo, a natureza desta liberdade raramente é analisada, e as instituições necessárias para assegurá-la, ainda mais raramente discutidas. "Relações socialistas de produção" são livres por definição. E se um Estado existe e nele a liberdade não é uma realidade, então por definição ele não pode ser ainda socialista, mesmo quando fundado em teorias, objetivos e métodos que os socialistas defendem.

Poder e Dominação

Esta identificação entre socialismo e liberdade resulta, em parte, de uma obsessão pelo poder, e de uma confusão entre questões de liberdade e questões de poder. Por toda a parte, o radical vê dominação: do homem pelo homem, de um grupo por outro grupo e de uma classe sobre outra classe. Ele tem em vista um futuro sem dominação, no qual não haverá poder para assegurar a obediência dos despossuídos. E ele imagina que esta condição não só é possível, mas também que se trata de um estado de liberdade universal. Em outras palavras, ele vê igualdade e liberdade como profundamente compatíveis, e realizáveis por meio da destruição do poder.

Este anseio por um mundo "sem poderes" — que encontra sua expressão mais eloquente nos escritos de Foucault — é incoerente. A condição da sociedade é essencialmente uma condição de dominação, na qual pessoas estão vinculadas umas às outras por emoções e lealdades, e discernidas por poderes e rivalidades. Não há sociedade que abra mão destas realidades humanas, nem deveríamos ansiar por uma, já que é destes componentes que nossas satisfações mundanas são compostas. Mas onde há lealdade há poder; e onde há rivalidade há necessidade de governo. Como Kenneth Minogue colocou:

[...] o germe da dominação mora no coração do que é humano, e a conclusão que salta à vista é que a tentativa de superar a dominação, tal como esta ideia é metafisicamente entendida na ideologia, é a tentativa de destruir a humanidade.

Nossa preocupação como seres políticos não deveria ser abolir esses poderes que unem a sociedade, mas garantir que eles não serão usados também para dividi-la. Deveríamos visar não a um mundo sem poder, mas a um mundo onde o poder é pacificamente exercido e no qual os conflitos são resolvidos de acordo com uma concepção de justiça aceitável àqueles que se engajaram neles.

O radical é impaciente com esta "justiça natural" que habita silente no intercurso social humano. Ou ele a descarta, como o marxista, como uma ficção de "ideologia burguesa", ou ele a desvia de seu curso natural, insistindo que a prioridade deve ser dada para o oprimido, e os frutos da adjudicação, removidos das mãos do "opressor". Esta segunda postura — ilustrada em sua forma mais sutil na obra de Dworkin — é antirrevolucionária em seus métodos, mas revolucionária em seus objetivos. O americano liberal está tão convencido do mal da dominação quanto está o parisiense gauchiste. Ele só se distingue por reconhecer que as instituições são, no fim, necessárias para seu propósito, e que a ideologia não é um substituto para o trabalho paciente da lei.

Comunidade e Instituições

A Nova Esquerda geralmente não partilhou este admirável respeito pelas instituições. Sua fervorosa denúncia do poder, portanto, não foi acompanhada pela descrição das instituições do futuro. O que se almeja é uma sociedade sem instituições: uma sociedade na qual as pessoas espontaneamente se reúnam em glóbulos de afirmação da vida, e da qual a carapuça da lei, os costumes procedimentais e estabelecidos tenham caído por terra. Este groupe en fusion, como Sartre o chama, é outra versão do fasei o dos primeiros socialistas italianos: uma entidade coletiva na qual as energias individuais se agrupam em um propósito comum e cujas ações são governadas por uma "vontade geral". Quando outros proclamam este ideal, o esquerdista os denuncia (muito corretamente) como fascistas. Contudo, é precisamente seu próprio ideal que o irrita, quando se coloca diante dele como uma doutrina diferente.

Instituições são uma herança necessária da sociedade civilizada. Mas elas são vulneráveis à "doutrina armada" (como Burke a descreveu) do revolucionário, que busca na sociedade não os naturais e imperfeitos confortos do contato humano, mas uma salvação pessoal. Ele busca uma sociedade que será totalmente fraterna, e também totalmente livre. Ele não pode, assim, contentar-se com nenhuma relação meramente negociada com seus semelhantes. Pois as instituições de negociação são também instrumentos de poder.

Na busca por um mundo livre do poder, o esquerdista encontra-se atormentado não só pelas instituições reais, mas também pelos demônios ocultos. O poder está em todo lugar a sua volta, e também dentro dele, implantado pelas ideias estranhas de uma ordem dominante. Como Foucault escreve:

Um déspota estúpido pode coagir seus escravos com correntes de ferro; mas um político verdadeiro os vincula muito mais fortemente com as correntes de suas próprias ideias [...] o laço é ainda mais forte pelo motivo de não sabermos do que é feito.

Uma tal visão insufla as fantasias paranoides de Laing e Esterson, e também as mais sóbrias e metódicas suspeitas de Sartre e Galbraith. Por todo lado, externa e internamente, estão as marcas do poder, e somente um golpe de fé — um salto  à "totalidade" — trará liberdade.

No coração do pensamento da Nova Esquerda reside um paradoxo. O desejo pela comunidade total acompanha um medo dos "outros”, que são a verdadeira fonte do poder social. Ao mesmo tempo, nenhuma sociedade pode ter o caráter "despoderado" que a Nova Esquerda requer. A tentativa de alcançar uma ordem social sem dominação inevitavelmente leva a um novo tipo de dominação, mais sinistro, de longe, que o deposto. As sementes da nova estrutura de poder estão presentes na organização necessária para a violenta superação da antiga. Um estudo da lógica da "práxis revolucionária" deve, acredito, confirmar a celebrada observação de Roberto Michels, segundo a qual uma "lei de ferro da oligarquia" constrange todos os partidos revolucionários ao oposto de seu ideal emancipatório. Já faz três quartos de século desde que Michels — ele mesmo um radical socialista — expressou estes pensamentos, e nenhum socialista realmente se preocupou em respondê-lo. Ele é somente um entre os muitos escritores chocantes e pertinentes que a esquerda em geral — a Nova Esquerda em particular — decidiu ignorar.

Poder e Coerção

A obsessão com o poder tem uma consequência importante. O radical é incapaz de ver que o "sistema" que ele busca superar é consensual, enquanto aquele que o seu pensamento almeja não é. A liberdade humana verdadeira é limitada pela circunstância humana, e então não pode ser libertada do "verme da dominação". A liberdade consiste não na ausência da dominação, mas na presença da dominação afável daqueles abarcados por ela. Pensadores da Nova Esquerda sempre confundem poder com coerção: o poder é tão inerentemente odioso para eles (e especialmente o poder "secreto" que controla nossos pensamentos internos) que não conseguem entender como os seres humanos realmente o podem aceitar — a menos que ele seja alguma fraude monstruosa, alguma "falsa consciência", perpetrada pelo próprio poder. E eles não estão sozinhos nesta confusão. Na realidade, esse é um dos legados de Marx mais influentes, e uma derivação natural do "método sociológico”, que nos leva a enxergar sempre, sob a superfície humana, as "estruturas" das quais ela depende.

Considere-se Max Weber. Não precisamos ir tão longe quanto a Great Soviet Encyclopedia, cuja edição de 1951 o descreve como um "sociólogo alemão reacionário [...] e o pior inimigo do marxismo". Mas certamente ficaríamos relutantes em identificar Weber como um "pensador da esquerda", pelo menos porque ele reconheceu que o socialismo requereria mais organização, mais burocracia e mais poder impessoal que o capitalismo que ele propõe suplantar. No entanto, como Marx, Weber desejava olhar sob a superfície da sociedade humana, para suas reais "leis do movimento". E, por uma defeituosa lógica persuasiva, isto o levou a ver "coerção" onde há poder, e poder onde há autoridade.

Assim, para Weber, o Estado é definido como um monopólio da violência ("coerção física"), enquanto "uma norma é uma lei dependente da probabilidade de que o Estado a cumpra agressivamente". Ele conclui, assim, que a lei, bem como o Estado que age através dela, é um sistema de coerção. Mais ainda, ele define a ideia de "observância voluntária" de forma tão ampla, implicando que todas as ordens coercitivas são também voluntariamente aceitas: "dominação implica um mínimo de concordância voluntária, isto é, um interesse [...] na obediência". Disso se segue que qualquer ordem, ainda que tirânica, é voluntariamente obedecida. Pois o que o tirano faz com suas ameaças e torturas, exceto forçar seus sujeitados através de um interesse de obediência?

O resultado do método weberiano é abolir a distinção entre consentimento e coerção. Muitos de nós não são coagidos pela lei, contanto que a lei decrete os procedimentos e princípios da justiça natural. Nós não desejamos estuprar, roubar, matar ou fraudar, e não somos de modo algum coagidos pelas leis que nos proíbem tais ações. Somente o criminoso é coagido, e para ele a lei serve mais como uma retribuição que como um ato prévio de violência. Mas esta característica inerente da sociedade "capitalista " e do sistema legal é imperceptível para Weber, como o é a distinção real de liberdade humana no capitalismo e no socialismo. Ele escreve:

Em uma comunidade socialista, os decretos diretos mandatórios e proibitórios de uma autoridade econômica central, de qualquer modo que possa ser concebida, desempenharia um papel maior que tais ordenações desempenham hoje. No caso de desobediência, a observância será produzida pelos meios de alguma espécie de "coerção", mas não através da disputa de mercado. Qual sistema possuiria uma coerção mais verdadeira e qual possuiria liberdade pessoal mais verdadeira não pode ser decidido, contudo, pela mera análise do sistema legal formalmente concebível e realmente existente.

O socialismo democrático, ele chega a dizer, rejeita a coerção, tanto a de tipo pessoal quanto a de tipo "exercido no mercado através da posse da propriedade privada". Assim, o mercado — um paradigma de relações consensuais — é reduzido a um sistema de coerção, que não difere do tipo de controle exercido — através do trabalho forçado, da compra e do racionamento compulsórios — pelo Estado socialista. O argumento dado por Weber para esta conclusão é o argumento dado por Marx, aquele que se provou irresistível para uma centena de pensadores posteriores: o proprietário dos meios de produção coage o homem que nada possui exceto sua força de trabalho.

Há uma diferença evidente entre escravidão, na qual um homem é forçado a trabalhar para outro, e contrato salarial. Suponha que um comerciante viaje até uma cidade, oferecendo bens que farão a vida mais agradável para os habitantes. Ele coage aqueles que compram dele, só porque eles têm de obter esses bens através de seus termos? Seria um equívoco grosseiro de linguagem afirmar isso. O que impõe uma diferença decisiva, então, para o socialista, é o elemento de necessidade, que supostamente envenena o contrato salarial e remove seu caráter consensual. Mas por que isto muda a situação? Suponha um vendedor que vá a uma cidade onde todos estão morrendo de uma doença que somente o seu tipo de chocolate pode curar. Isto repentinamente o transforma num tirano? E por que deveria o homem que traz trabalho para uma comunidade que está morrendo justamente por falta de trabalho ser tachado como alguém que coage aqueles cujo sofrimento ele alivia? Este homem deveria ir embora, só porque está na posição de lucrar com as necessidades deles?

Perguntar tais coisas não é nem exonerar o capitalismo nem condenar a "alternativa" socialista: é simplesmente definir os termos do debate, ao refutar a descrição socialista equivocada. Sem dúvida, as circunstâncias do contrato salarial são frequentemente cruéis e indignas; e, sem dúvida, o "capitalismo" tradicional ofereceu pouca esperança para aqueles na base da pirâmide. Mas dizer isto não é provar que o capitalismo é uma "escravidão salarial". Nunca deveríamos ignorar a característica moral saliente de nossa ordem política: que suas transações econômicas fundamentais são consensuais. Nem deveríamos ignorar o fato de que, sob o impacto da doutrina socialista, em muitos países esta ordem consensual foi suplantada por um novo tipo de escravidão.

O socialista talvez argumentará que ele culpa não o empregador individual, mas o sistema do qual ele é uma parte e que é a verdadeira fonte de sofrimento humano. Mas o que significa culpar um "sistema"? O sistema pode ser o produto da intenção humana; mas certamente não é a expressão de uma arquitetura humana. Ele surge da "mão invisível", de acordo com um processo que não controlamos realmente, mesmo quando acreditamos fazê-lo.

O radical vai ainda mais longe. Para ele, o "sistema" não é o produto senão o produtor do contrato individual cuja "liberdade" ele outorga. A mão invisível é intocada pelo aperto de mão visível. Mas esta inversão da hipótese de Adam Smith não altera o caso. Não importa o ponto de vista que o socialista adote, ele deve reconhecer que para condenar um sistema é necessário sugerir um melhor, e também mostrar como alcançá-lo: e é precisamente isto que ele reluta tanto em fazer. Não é suficiente enfatizar o fato da necessidade humana, que nos estimula a vender mesmo o que nos é mais caro — nosso trabalho — para o precioso benefício da sobrevivência.

Sem necessidade não haveria motivo algum para produção, e sem uma desigualdade fundamental entre as partes — cada uma das quais quer o que a outra oferece — nenhum contrato poderia ser livremente acertado. Mas falar de coerção quando há necessidade é considerar a liberdade inatingível. E num sentido que é precisamente a realização do "socialismo real".

Classe e Ação

O marxista acredita, porém, que ele pode demonstrar que o contrato salarial é coercivo no sentido mais completo do termo. Ele chega a essa conclusão ao substituir o agente individual humano pela classe social da qual ele é membro. A pessoa que oferece emprego para o trabalhador não é, isso é verdade, aquela que primeiro jogou seus ancestrais à miséria. No entanto, quem emprega e quem "originalmente" expropriou são da mesma classe social. (Isto é, creio, uma consequência tautológica da teoria marxista clássica.) Considerando uma situação em "termos de classe", somos tentados a concluir que a classe que expropria é também a classe que emprega. No caso, a classe que nada tem senão seu trabalho é coagida pela classe que possui os meios de produção.

Roubar de um homem o que ele necessita e depois oferecer isso a ele sob determinados termos é, certamente, coagi-lo. Mas suponha que aceitemos a esquemática e, de fato, mito-poética teoria da original "separação dos produtores dos meios de produção". Certamente, não resulta daí que o capitalismo é um sistema de coerção. Pois normalmente, o indivíduo que oferece sustento não é aquele que primeiro o eliminou. Nenhum indivíduo exerce coerção desta forma, que procede em cada ponto através de contratos que são livremente acertados por aqueles que estão vinculados por eles mesmos. Tais contratos podem realmente ser injustos: mas isto não é dizer que eles possam ser descritos como tendo sido forçados.

É neste ponto que surgem os mais importantes e persistentes ofuscamentos teóricos que discuti nos capítulos precedentes: o engano em relação à ação. A despeito dos alertas de Marx quanto ao contrário, o radical é tentado a identificar classes como agentes, para os quais as ações e responsabilidades podem ser atribuídas, e recompensa e punição alocadas. Se as classes são agentes, então é possível dizer que a burguesia enquanto classe coage o proletariado: em outras palavras, a falta de poder do proletariado é também uma falta de liberdade. Mais ainda, agora é possível culpar a burguesia como uma classe, e cada membro dela individualmente, pelos sofrimentos dos despossuídos. Atos de retribuição, expropriação e violência, cometidos pela causa da revolução, tornam-se não somente expedientes, mas também merecidos. A atuação coletiva da classe superior é também uma responsabilidade coletiva, e se este ou aquele burguês é destituído de seus direitos em nome da nova sociedade, isto nada mais é que uma resposta aos sofrimentos que sua classe gerou.

Este padrão de pensamento conduz tão logicamente para o Gulag como a ideologia da raça conduziu a Auschwitz. E, como a ideologia nazista, ele está repleto de confusão intelectual e exorbitância moral. Toda sociedade avançada contém pontos de controle – lugares nas atividades de produção, no mercado e no governo que dão àqueles que os ocupam o controle efetivo sobre decisões. Não está em discussão se concordamos ou não com Marx que o fator crucial é o controle sobre os meios de produção. O que importa é que, para o marxista, a classe dominante é definida como a classe daqueles que ocupam os pontos centrais de controle. Se tais "pontos de controle" não podem ser eliminados, então, logicamente, a classe dominante sempre dominará; pois enquanto este ou aquele homem puder ser deslocado de sua posição de domínio, ele sofre somente como indivíduo. Em sua derrota, ele deixa de ser membro da classe que domina, assim como aquele que se coloca em seu lugar perde seu status de servo. Isto — que poderia ser chamado de a "lei de ferro da dominação" — nada mais é que uma consequência tautológica de duas premissas indisputáveis: que sociedade requer organização, e que organização implica controle. É claro, sociedades variam enormemente no que diz respeito às "oportunidades" oferecidas aos indivíduos. Mas a Nova Esquerda não busca cada vez mais mobilidade, mas uma sociedade da qual o "verme da dominação" foi finalmente removido. Mesmo a completa "liquidação" da classe dominante vigente não promoverá esse resultado, já que seu domínio é o resultado não de uma atuação coletiva, mas de algo mais. A classe dominante não pode fazer nada, seja para sustentar, seja para abrir mão do poder, o qual é tão inseparável desta classe quanto a própria vida.

Coerção e Consentimento

A lei de ferro da dominação implica que nada pode disseminar o poder tão efetivamente quanto a mobilidade social: o dom que o capitalismo oferece em abundância. A esquerda despeja desprezo sobre a mobilidade social, em termos antecipados por Marx: "[...] quanto mais a classe dominante é capaz de assimilar as principais mentes da classe dominada, mais estável e perigoso se torna seu domínio". Mas a menos que consideremos "perigoso" e "estável" como sinônimos (e nisto Marx está grosseiramente longe da verdade), a acusação é inteiramente fraudulenta. Mobilidade social não é uma conspiração da elite, pela qual ela perpetua seu poder, mas uma fraqueza estrutural da elite, por meio da qual ela está sempre mudando.

E haveria modo melhor de aliviar a concentração de poder do que garantir que este poder seja oferecido àqueles que — através da lealdade e das experiências pessoais — mantêm sua simpatia por aqueles que não o possuem? Observe os mundos do "capitalismo real" e do "socialismo real" e pergunte-se qual responde mais às necessidades e aspirações dos despossuídos. Você verá, então, que uma monstruosa fraude foi perpetrada sobre os trabalhadores pela teoria marxista de classe. Não somente o partido de vanguarda, em seu vigilante esforço de excluir todos, exceto os fiéis e os covardes, de suas fileiras, fechou as vias da melhoria social: os despossuídos tornaram-se cada vez mais desamparados, distantes de qualquer recompensa, salvo aquela que é oferecida aos de cima. Em tal situação, os despossuídos realmente são as vítimas da coerção, e a dominação é efetivamente uma ameaça.

Ao afirmar que a ordem pela qual estamos rodeados é consensual, não quero dizer que ela é consentida; pois se uma coisa é clara nos textos que examinei é isto: a magnitude e veemência da oposição à sociedade ocidental. Quero dizer, na verdade, que esta sociedade, ainda que não seja objeto de consentimento, é, no entanto, produto de consentimento, alcançado por mão invisível a partir de incontáveis negociações, acordos, votos e compromissos que compõem o corpo político. Filósofos do "contrato social" tentam traduzir esta ordem consensual em uma ordem consentida: tornar o resultado de nossos contratos o primeiro objeto deles. Nesta tentativa, contudo, reside um erro profundo e duradouro: o erro de supor que poderíamos entender o resultado da interação social antes de havermos nos engajado nela, e que poderíamos concordar agora sobre a ordem social que advém de escolhas que não podemos agora vislumbrar.

Da mesma forma, ao dizer que a sociedade do "socialismo real" é coerciva, não quero dizer que ela é imposta. O partido dominante não imagina o resultado e depois busca por todos os meios o estabelecer. Pelo contrário, o resultado é tão desanimador que o partido proíbe seus sujeitos de descrevê-lo, ou mesmo de pensar sobre ele, exceto por meio de eufemismos cuidadosamente medidos, que parodiam as vozes ancestrais da igreja marxista. O partido não escolhe a ordem coercitiva mais do que o cidadão escolhe a ordem consensual. Também advém da "mão invisível", de transações que não são, em si mesmas, devotadas a tal fim. Se a ordem é coercitiva, é porque essas transações são coercitivas.

Sociedade Civil e Estado

Subjacentes à visão de sociedade da Nova Esquerda, portanto, surgem duas formulações muito profundas e contestáveis: primeiro, que se há poder, há coerção; segundo, que classes não são o produto de interação social, mas os agentes que a controlam. Essas duas formulações advêm de um tipo de impaciência moral, de uma necessidade, diante do oceano da miséria humana, para descobrir o culpado que abriu a torneira primeiro. Da mesma impaciência advém a ciência política da Nova Esquerda, que dispensa ou ignora os conceitos necessários para a defesa da sociedade "capitalista" e que, ao objetivar sempre a explicação "profunda" , esquece a superfície (e a verdade) da ação social.

Considere a distinção entre sociedade civil e Estado. Foi Hegel quem primeiro tornou esta distinção corrente, e foi o ataque de Marx contra Hegel que primeiro ameaçou superá-la. Na teoria da hegemonia de Gramsci (e na ideia derivada de Althusser do "aparato estatal ideológico"), a empresa marxista obtém expressão canônica. Todos os poderes dentro da sociedade — mesmo que exercidos pela livre associação, por instituições autônomas e por corporações limitadas por lei – são atribuídos ao Estado (e à "classe dominante", que o controla). Para o seguidor de Gramsci, eles são parte do Estado, tanto quanto o exército, o judiciário, a polícia e o parlamento.

Alguém que aceita esta teoria não pode mais perceber a destruição de instituições autônomas pelo Estado como algo radical e inovador. Para a Nova Esquerda, não há diferença significativa entre o controle exercido por um triunfante partido comunista e aquele exercido através da "hegemonia" de uma "classe dominante". Mais uma vez, então, uma verdadeira realização da política "capitalista " — a efetiva separação da sociedade e do Estado — é imperceptível, ao passo que a realidade da ditadura totalitária é obnubilada por eufemismo e apologia. Para alguém educado pela teoria gramsciana, o esforço do Solidariedade polonês – descrito por seus principais protagonistas precisamente como o esforço para estabelecer a sociedade (spofeczenstwo) fora do controle do Estado (wtada) — é ou a restauração da velha luta "comunista " ou mais um autoengano grosseiro. Em outras palavras, aqueles que mais ferozmente se opõem ao comunismo e estão preparados a pagar o preço supremo por sua destruição são vistos como os que lutam para instalá-lo, de uma forma "verdadeira" e "realizada".

Isto não quer dizer que a distinção entre Estado e sociedade seja fácil de caracterizar ou de defender. Na realidade, um dos problemas mais duradouros da filosofia política é estabelecer a melhor maneira de relacionar os dois. Deveríamos entender sua relação ideal nos termos de uma analogia humana. A pessoa humana não é nem idêntica a seu corpo, nem distinta dele, mas unida a ele em um nó metafísico que os filósofos trabalham infrutiferamente para desatar. Quando tratamos alguém como uma pessoa, dirigimo-nos à sua parte racional e decisória: quando a tratamos como um corpo (quando ela está doente ou incapacitada), estudamos as funções anatômicas alheias à sua vontade. A sociedade civil é como o corpo humano: é a substância que compõe o Estado, mas cujos movimento e funções advêm de uma "mão invisível" . E o Estado é como a pessoa humana: é o supremo fórum do processo decisório, no qual a razão e a responsabilidade são os únicos guias com autoridade. Estado e sociedade são inseparáveis, mas, no entanto, distintos, e a tentativa de absorver um no outro é o caminho certo para um corpo político atrofiado, aleijado e dolorido.

É improvável que seja uma falha distintiva da Nova Esquerda que ela tenha confiado tão fortemente em sua falível retórica para discutir este problema. O mesmo se aplica àqueles pensadores que são somente pura persuasão, e que não oferecem nenhuma teoria — da análise "dialética" de Hegel à concepção de "ordem espontânea" de Hayek — que faça justiça à extrema complexidade das realidades políticas. No entanto, é característico da Nova Esquerda estar facilmente satisfeita com teorias que insuflam seu sentimento de raiva. Quando tanto está em jogo, esta "suspensão da crença" está longe de ser inocente.

É difícil avaliar as consequências práticas de teorias políticas. No entanto, não é irracional sugerir que a Nova Esquerda, ao atribuir atuação para aqueles que não a possuem (a classe e a sociedade), tenha sido conivente com a remoção da responsabilidade daqueles que efetivamente a têm — o Estado e o partido. O mundo do comunismo é um mundo de domínio impessoal, onde todo poder reside num partido que nunca pode responder por suas ações. Este estado de coisas não é um correlato acidental de uma filosofia dominante que encoraja o mito da atuação de classe, e que vê toda instituição moderada, incluindo a própria lei, como um crime elaborado.

É precisamente ao situar a ação em entidades que não respondem por nada, que o comunismo criou uma tal ação, e colocou-a na cúpula do poder. Ao identificar-se com uma "classe", o partido apropria-se ao mesmo tempo da ação que sua teoria erroneamente atribui ao proletariado e da irresponsabilidade que verdadeiramente caracteriza toda classe social. Isso, acredito, é a fonte de seu crime. Por sua própria natureza autoconfessa, o Partido Comunista é um agente — mesmo, uma vasta conspiração — cujas decisões coletivas não estão sujeitas à lei, nem respondem a nenhum propósito humano que não o seu próprio.

Esquerda e Direita

Se chegássemos a definir a direita como a força que se inclina da esquerda em direção oposta, então teríamos sucumbido à mais perigosa característica da retórica de esquerda. Poderíamos também estar vendo a política como uma "luta" entre forças opostas ("ou/ou"), equilibrada entre dois objetivos igualmente absolutos e finais. No entanto, os rótulos "esquerda" e "direita" são inevitavelmente forçados, e devemos arriscar uma descrição — ainda que parcial e breve — da atitude da " ala direita", agora mais prontamente disponível. É em referência ao comunismo, creio, que esta perspectiva é mais bem definida. A Nova Direita (se eu puder apropriar-me do rótulo) acredita mais em governo responsável do que em governo impessoal; na autonomia e personalidade das instituições, e no Estado de direito. Ela reconhece uma distinção entre Estado e sociedade civil, e acredita que o segundo deve advir, em geral, da interação livre de indivíduos contratantes, mediados pelos costumes, a tradição e o respeito por autoridade e pela lei. Poder, para a Nova Direita, é um mal somente quando abusado. Pois o poder surge naturalmente na interação humana, e é meramente a consequência irrepreensível de um acordo cujas virtudes estão por toda parte.

Personalidade Corporativa

Talvez o modo mais simples de indicar a base teórica e o efeito prático desta política da "ala direita " seja através de uma ideia que von Gierke e Maitland disseram ser essencial para o entendimento da política europeia: a ideia de personalidade corporativa.

O Direito Romano, o Genossensrecht da Alemanha medieval, o Direito Inglês de empresas e corporações – todos estes sistemas legais reconhecem que as características dos seres humanos individuais, pelas quais somos levados a louvá-los ou culpá-los, a atribuir-lhes direitos e responsabilidades, a nos opor a eles e a nos aliar a eles, podem ser apresentadas por entidades coletivas. Tais sistemas também reconhecem que a atuação coletiva é um perigo, até que seja posta diante da lei como uma pessoa composta, igual ao indivíduo que ela ameaça oprimir. Uma universidade, uma companhia de comércio, um clube, uma instituição, mesmo o Estado: tudo pode ser dotado de "personalidade legal" e assim tornado responsável diante da lei. (Por isso, a existência de "associações sem personalidade jurídica" é considerada um problema legal.) Uma empresa comercial pode realizar ações que não são creditáveis a quaisquer indivíduos. Ela tem razões para o que faz. Ela pode comportar-se racionalmente e irracionalmente em busca de seus objetivos. Ela tem direitos na lei: direitos de propriedade, comércio e ação; direitos de passagem, luz e ar; direitos de usufruto e lucro. Ela também tem deveres e responsabilidades: deveres de acordo com a lei do contrato, delito e crime. A fábrica que polui um rio pode, então, ser compelida a indenizar aqueles que sofreram. Ela pode ser acusada por um crime e multada ao ponto de falir. (Não deveríamos nos surpreender, portanto, que problemas de poluição ambiental sejam muito piores no mundo pouco produtivo dos governos comunistas do que no mundo superprodutivo da empresa privada.)

Por este dispositivo de responsabilidade corporativa, o mundo "capitalista " assegurou que, onde houver atuação, haverá também responsabilidade. Uma tal máxima não se sustenta no mundo do comunismo. O Partido Comunista é o agente supremo. Mas ele não pode ser responsável por seus crimes, por sua espoliação ou por seus massivos abusos dos direitos e dos privilégios de todos que estão sob seu jugo. Como argumentei, esta diferença entre governo comunista e "capitalista" é ignorada por teóricos da convergência: Wallerstein e Galbraith, e, igualmente, Thompson, Foucault e Habermas. E, no entanto, ela é muito mais importante que qualquer similaridade. Na verdade, ela oferece uma das maiores justificativas para a sociedade "capitalista" que os marxistas condenam tão fortemente.

O Estado de Direito

A abolição da verdadeira responsabilidade corporativa significa a abolição da lei efetiva. Embora haja leis do mesmo tipo em países comunistas, e embora nominalmente se apliquem às instituições "coletivas" e oficiais, elas não podem ser aplicadas ao Partido Comunista. Contudo, o Partido Comunista é a maior fonte de ação coletiva, e age através de todas as instituições subordinadas sem participar de suas responsabilidades. Esta circunstância é um resultado direto da ideologia "classista" do comunismo, uma ideologia que é partilhada pela esquerda como um todo. Convencido do absoluto mal da dominação, o esquerdista vê como sua tarefa a abolição do poder. Ele é assim impaciente com aquelas instituições que têm a limitação, mais que a abolição, do poder como seu objeto primário. Porque estas instituições estão no caminho do poder, e porque a violenta derrubada da velha ordem requer um poder maior que aquele sobre o qual ela se assenta, o esquerdista inevitavelmente sanciona a destruição de instituições limitantes. E uma vez destruídas, elas nunca ressurgem, exceto como instrumento de opressão. Elas nunca se voltam contra o poder que o esquerdista instalou, mas somente contra o poder de seu inimigo ancestral, o "burguês", que por alguma razão continua sobrevivendo nas fendas escondidas da nova ordem social.

O caso de Foucault mostra claramente como a hostilidade do radical ao poder leva à hostilidade à lei e, assim, a uma percepção completamente equivocada das instituições judiciais. Esta hostilidade é também alimentada pela teoria marxista da história, com sua distinção entre superestrutura política e base econômica. A distinção é insustentável, mas de imensa importância teológica: eis o interesse da Nova Esquerda em Gramsci e Althusser, os quais oferecem a linguagem pela qual a refutação da teoria de Marx pode ser apresentada, embora sejam, na realidade, uma prova dela. A teoria conduz a uma desvalorização da política e da lei, a uma recusa a julgá-las por seu próprios critérios cuidadosamente elaborados, e a uma espúria invocação da "luta de classes" como o maior fato político. A independência judicial não é mais vista pelo que ela é —, um meio de distanciar-se do conflito humano e esforçar-se em tomar um ponto de vista imparcial —, mas como outro instrumento de dominação, outro dispositivo funcional, no qual o poder da velha classe dominante é embelezado com licenças e meticulosamente preservado.

O resultado das duas ideias – a ideia de "ação de classe" e a (estritamente incompatível) ideia de uma distinção entre superestrutura política e base econômica — é uma fundamental ignorância política. O governo comunista — no qual o judiciário realmente age como parte do poder dominante, e no qual o poder dominante realmente é um agente — não é mais visto como a perversão da política, mas como a política de um tipo novo e promissor. Nossos sistemas europeus de direito, pacientemente construídos sobre os resultados do Direito Romano, do Direito Canônico e das common laws das nações europeias incorporam séculos de reflexão atenta sobre as realidades do conflito humano. Tais sistemas legais tentaram definir e limitar as atividades de todo poder social importante, e instalar no coração da ordem "capitalista" um princípio de responsabilidade do qual nenhum agente pode escapar. O Estado de direito não é uma realização simples, para ser pesada contra os benefícios de algum esquema social rival e renunciado em seu favor. Pelo contrário, ele define nossa condição social e representa o ponto alto da realização política europeia.

Há um Estado de direito, contudo, somente onde todo poder, ainda que amplo, esteja sujeito à lei e limitado por ela. É precisamente esta limitação de si mesmo pela lei que o Partido Comunista não pode tolerar. Ao apoiar a ideologia na qual a lei pode ser desprezada e posta de lado, a Nova Esquerda deixa de ser um observador inocente dos crimes cometidos em nome dessa mesma ideologia.

Ideologia e Oposição

Tampouco poderíamos dissociar a Nova Esquerda da atitude que o comunismo toma diante de seus oponentes. Os escritos de Bahro, Gramsci, Lukács e Althusser mostram abundantemente que o pensamento totalitário está implícito nas categorias da análise social que eles empregam. Para tais pensadores, o oponente nunca é algo mais que um oportunista. O que ele fala não é racional, mas pura "ideologia" (no sentido peculiar marxista do termo). Seu clamor pela verdade é automaticamente tomado pelo interesse de classe que se expressa através dele. E porque ele é oposto às ideias socialistas do proletariado — como representado em sua vanguarda intelectual — ele fala somente pela burguesia. A ideia de Gramsci da "hegemonia de classe" novamente prova sua utilidade, ao explicar como as vozes da reação podem circular por toda sociedade, impedindo o movimento do progresso histórico e colocando no coração do proletariado o cancro da falsa consciência. Sempre que se encontra oposição, encontra-se o inimigo de classe, mesmo que ele esteja vestindo algum disfarce astuto. Não se deve argumentar com este inimigo, pois ele não pode alcançar a verdade; ainda menos deve ser ele o objeto de algum compromisso. Somente depois de sua eliminação definitiva da ordem social a verdade será percebida por todos.

É precisamente esta filosofia, que oferece o poder para os intelectuais, aquela que constitui a maior ameaça à liberdade intelectual. Uma vez no poder, o intelectual "expropria os meios de comunicação" (até então nas mãos da "burguesia"), e dissolve a instituição da democracia "burguesa" em nome da causa proletária. O resultado universal é a eliminação da oposição efetiva.

Esta falta de oposição é a característica decisiva do governo comunista. É claro, há pessoas que discordam da linha do partido, e pessoas que se opõem a ela. Mas o processo político em um Estado comunista não dá espaço para elas. E, a fim de apagar a permanente voz da oposição, o partido dominante recorre à ideologia – conjunto de doutrinas, na maioria das vezes de uma estupidez atroz, feito para fechar as vias da investigação intelectual. O propósito desta ideologia não é que as pessoas deveriam acreditar nela. Pelo contrário, o propósito é tornar a crença irrelevante, livrar o mundo da discussão racional em todas as áreas em que o partido postula o que pensa. A ideia de uma "ditadura do proletariado" não é para descrever uma realidade: é para levar as investigações ao fim, de forma que a realidade não possa mais ser percebida. Esta característica da ideologia é muito clara, e a obra de Kolakowski, Aron e Besançon não nos deixaram em dúvida sobre o ancestral intelectual destas estranhas encantações, que fala, às vezes, das vitrines das lojas vazias da Europa Oriental, outras vezes, dos textos sagrados da sociologia ocidental.

A ideologia do marxismo moderno não é simplesmente um instrumento de controle social: é um componente-chave do pensamento de esquerda. A mesma "expropriação da verdade" que pode ser testemunhada na terrível linguagem do Partido Comunista pode ser vista também nos escritos de Sartre, Lukács e Althusser e, numa extensão menor, nos de Anderson, Wallerstein e Williams.

Esta ideologia tampouco é uma excentricidade inofensiva — um conveniente substituto para a religião em mentes tão orgulhosas para reconhecer a virtude da expiação. É uma arma perigosa, que ameaça exatamente a estrutura do pensamento e da ação racional. O primeiro efeito da ideologia no poder é marcar áreas onde a discussão está cerrada e onde existe uma brecha para o homem comum se aventurar. Porque estas são as áreas nas quais a oposição poderia se enraizar - as áreas da escolha política fundamental —; a ideologia é um instrumento importante na guerra contra a oposição. Ela elimina o elemento da escolha racional das decisões políticas, pois remove a linguagem na qual os princípios poderiam se assentar. Fundamentos não podem mais ser questionados, não porque foram aceitos, mas porque são tabus.

A incapacidade de discutir com oponentes, de abrir a mente para a dúvida e para a hesitação é uma característica enraizada na Nova Esquerda. Todas as discussões são travadas com aqueles que partilham as mesmas ilusões fundamentais, e – por mais acalorados que possam ser os "argumentos dentro do marxismo", tais como os de Anderson, Thompson e Williams — elas permanecem como argumentos dentro do marxismo, nunca fora dele. Exatamente a mesma incapacidade é demonstrada pelo governo comunista, que faz escolhas fundamentais sem o benefício da dúvida e sem medidas corretivas. Um tal governo não pode estar comprometido por obrigações, já que não pode ouvir a voz que se esforça para torná-lo responsável por algo diferente de si mesmo. Por isso, ele busca constantemente incrementar seu poder, para que a oposição nunca cresça tanto a ponto de acusá-lo. Ele se posiciona acima de qualquer lei e considera todas as pessoas apenas como um meio para o supremo objetivo revolucionário da " justiça social". Seus líderes (a menos que tenham sido canonizados como Heróis Revolucionários ) são esquecidos assim que deixam o cargo, e não existe procedimento nem para elegê-los nem para removê-los. O poder é a única mercadoria, e é um poder que está além de toda avaliação racional. O avanço impessoal do poder não é de responsabilidade de ninguém, já que nenhum indivíduo pode criticar os feitos do poder ou sentir-se pessoalmente responsável por eles, quando serve como o canal através do qual eles escoam.

Não deveríamos tampouco ignorar as consequências para nós, que até agora escapamos do jugo do comunismo, deste poder que a Nova Esquerda nos encoraja a ver como o mal somente no sentido de que todo poder é mal, sendo o nosso próprio poder o maior de todos. O efeito da ideologia marxista é precisamente colocar o Estado comunista no caminho da dominação. Ninguém acredita que ele deveria dominar, muito menos aqueles que se desculpam por seus "erros" e " desvios". Nem qualquer cidadão de um Estado comunista deseja aumentar seu poder de forma tão alarmante. Mas ninguém sabe como pará-lo, já que nenhuma razão para pará-lo pode ser proferida sem penalidade instantânea. (Considere o destino dos movimentos "pacíficos" embrionários no Leste, e compare com o de seus equivalentes ocidentais.) A ideologia do comunismo sustenta que a obra do comunismo será finalizada quando o comunismo tiver triunfado em todos os lugares. Embora não se possa crer nisso, é o que acontece na prática: o propósito da ideologia é precisamente fazer a crença irrelevante para a ação, cerrar os lugares nos quais a discussão racionalizada poderia entrar, e alçar toda ação para um objetivo único. A máquina de Estado do comunismo não está somente fora de controle e acima de toda reprovação: está também atada a um objetivo impessoal de proporções monumentais, do qual ela pode ser demovida somente pela força. A força necessária para opor-se é sempre maior, e a vontade para tentar é sempre menor.

As pessoas, assim, estão tentadas a ver os Estados comunistas como eles veem os nossos. Como Thompson e Galbraith, elas buscam por desculpas que nos farão parecer igualmente culpáveis pelas tensões presentes, sem perceber que a nossa exata capacidade de aceitar e responder à culpa é o que oferece nossa exoneração.

Política da Direita

A estrutura totalitária do governo comunista não é uma consequência inevitável das concepções marxistas. No entanto, sob sua justificada vigilância, o compromisso, a Constituição e as instituições da sociedade civil foram firmemente degenerados ou abolidos. A forma resultante de governo, à qual faltam os dispositivos corretivos de liberdade de expressão, independência judicial e oposição parlamentar, está cerrada em um curso que, ainda que irracional, não pode ser pacificamente alterado. É contra a realidade do governo comunista, creio, que nossas próprias leis e instituições possam ser julgadas, e o ponto de vista (correto) da direita, defendido. O problema poderia ser colocado assim: nossas formas herdadas de governo, fundadas na representação, na lei e nas instituições autônomas que medeiam o indivíduo e o Estado, são também formas de governo pessoal. O Estado como nós o conhecemos não é uma coisa, mas uma pessoa. Isto é verdadeiro não somente no sentido legal, mas em um sentido mais profundo, uma vez capturado na instituição da monarquia, mas apresentado mais amplamente e mais discretamente através do Estado de direito. Como toda pessoa, o Estado é responsável perante outras pessoas: o sujeito individual, as corporações e outros Estados.

É também responsável perante a lei. Tem direitos contra o indivíduo e deveres em relação a ele; é tutor e companheiro da sociedade, o alvo de nossas piadas e o recipiente de nossa raiva. Ele estabelece conosco uma relação humana, e esta relação está sustentada e justificada pela lei, diante da qual ele se porta como uma pessoa como as outras, em pé de igualdade com seus sujeitos. Um tal Estado pode comprometer-se e barganhar. Está disposto a reconhecer que ele deve respeitar as pessoas, não apenas como meios, mas também como fins em si mesmas. Ele não tenta liquidar a oposição, mas acomodá-la. O socialista também pode tentar influenciar este Estado, e desde que ele reconheça que nenhuma mudança, nem mesmo a seu favor, é ou pode ser "irreversível", ele não apresenta ameaça para sua durabilidade. A imensa realização humana representada por um tal Estado não é nem respeitada nem percebida pelo radical da Nova Esquerda. Curvado sobre o trabalho da destruição, ele vê por trás da máscara de toda instituição a hedionda maquinaria do poder. Para ele não há, no fim, diferença real entre o poder impessoal e abstrato do comunismo e o poder pessoal, mediado e concreto, das "democracias burguesas". Ao rebaixar a lei e a política a epifenômenos, e ao ver todos os Estados como "sistemas" baseados em estruturas de organização e controle econômicos, o radical da Nova Esquerda efetivamente remove de sua percepção todas as distinções reais entre o mundo do governo representativo e o mundo do comunismo, e, ao fazer isso, torna-se conivente com a destruição comunista da lei e do compromisso. Ele vê, não a face pessoal do governo ocidental, mas o esqueleto sob a pele. Ele compara as sociedades como um anatomista compara corpos: reconhecendo similaridades em funções e estruturas, e deixando de ver as pessoas, cujos direitos, deveres, razões e motivos são os verdadeiros objetos de nossa preocupação. O corpo do Estado comunista pode ser como o corpo da democracia ocidental: antes de tudo, em cada caso, o ingrediente central – o povo – é o mesmo. Mas um corpo é animado por uma pessoa, enquanto o outro não é mais que um cadáver, cujos membros sem vida são movidos pelo mestre de fantoches assustador, o Partido Comunista.

Conclusão

A política desumana do comunismo é a realização objetiva da visão marxista da sociedade, que vê a verdadeira política como nada mais que uma cobertura mentirosa posta sobre as realidades do poder. Para uma tal visão, os sistemas políticos não podem mais ser julgados como pessoas - por suas virtudes e vícios e pelo movimento de sua vida intrínseca —, mas somente por seus objetivos. As desculpas dadas à União Soviética originaram-se não de um amor pela tirania, mas da incapacidade de perceber a tirania quando seu objetivo é o mesmo de alguém. Não importam os "erros" cometidos em nome do comunismo, supõe-se que eles foram obras de indivíduos, tais como Stálin, que desviaram o sistema de seu propósito verdadeiro e humano. (É um fato importante sobre religião — ilustrado pela história de Boccaccio sobre Giannotto e Abraão — que, para o crente, ela não é refutada, mas, antes, confirmada pelas ações dos seus maus praticantes).

A despeito de tal devoção por objetivos — uma devoção que está em si mesma em desacordo com o espírito do direito e do governo, o radical é extremamente relutante em contar-nos o que ele almeja. Assim que a questão da "Nova Sociedade" surge, ele desvia nossa atenção de volta ao mundo real, de forma a renovar a energia do ódio. Em um momento de dúvida sobre o registro socialista, E. J. Hobsbawm escreve:

Se a esquerda tiver de pensar mais seriamente sobre a nova sociedade, isto não a faz nem um pouco menos desejável ou necessária, ou o caso contra o atual menos urgente.

Eis, em poucas palavras, o resumo do compromisso da Nova Esquerda. Não sabemos nada do futuro socialista, salvo que ele é necessário e desejável. Nossa preocupação é com o caso "urgente" contra o presente, que nos leva a destruir o que não sabemos como substituir. Uma fé cega arrasta o radical de "luta" em "luta", confirmando-lhe que tudo feito em nome da "justiça social" é bem feito e que toda destruição do poder existente o levará na direção de seu objetivo. Ele deseja distanciar-se do mundo contaminado que o circunda em busca do puro, mas incognoscível, reino da emancipação humana. Este salto para o Reino dos Fins é um salto do pensamento, que nunca pode ser espelhado na realidade. A "práxis revolucionária" confina-se, então, à obra da destruição, não tendo nem o poder nem o desejo de perceber, em termos concretos, o fim em busca do qual ela trabalha. Por uma inevitável transição, então, a "doutrina armada" do revolucionário, lançada em busca da liberdade ideal, produz um mundo de real escravidão, cujos acordos brutais são incongruentemente descritos na linguagem da emancipação: "libertação", "democracia", "igualdade", "progresso" e "paz" — palavras que nenhum prisioneiro do "socialismo real" agora pode ouvir proferidas sem um sorriso triste e sarcástico.

Muito disso é óbvio para aqueles que não sucumbiram à tentação ideológica da esquerda. Mas as consequências não são sempre aceitas. A "direita" (que neste contexto significa aqueles que defendem governo pessoal, instituições autônomas e o Estado de direito) não carrega, antes de tudo, o ônus da justificação. Não nos cabe defender uma realidade que, apesar de todas as suas falhas, tem o inegável mérito da existência. Nem nos cabe mostrar que a política consensual do governo ocidental está de algum modo mais próxima da natureza humana e contribui mais com a realização do homem do que o mundo ideal da emancipação socialista. No entanto, nada é mais impressionante para um leitor da Nova Esquerda do que o constante pressuposto de que é a "direita " carrega o fardo e que é suficiente adotar os objetivos do socialismo para ter virtude ao lado de alguém.

Este pressuposto de uma correção a priori, somada a uma prosa túrgida e à completa incompetência intelectual de muitos escritos da Nova Esquerda, apresenta um formidável desafio para a paciência do leitor. Sem dúvida, frequentemente fui levado, em minha exasperação, a me equivocar em tais padrões da polidez literária. Mas e daí? Polidez é nada mais que uma virtude "burguesa", um pálido reflexo do "Estado de direito" que é a garantia da dominação burguesa. Ao engajar-se com a esquerda, alguém se engaja não com um oponente mas com um inimigo autodeclarado. Ninguém percebeu mais claramente quanto o totalitário reformado Platão que o argumento muda seu caráter quando o ônus é transferido do homem que transformaria as coisas para o homem que deveria assegurá-las:

Como alguém discute em nome da existência de deuses sem paixão alguma? Pois necessariamente devemos ser virulentos e revoltosos com os homens que foram, e seguem sendo, responsáveis por deitar sobre nós o fardo da discussão.

Tal como o sábio ateniense Platão, tentei devolver o fardo àqueles que o criaram.


SCRUTON, Roger. Pensadores da Nova Esquerda. Tradução de Felipe Garrafiel Pimentel. São Paulo: É Realizações Editora, 2014.

Título original: Thinkers of the New Left // Copyright © 2011 by Roger Scruton.