O Arquipélago Gulag (Notas de Livro)

O Arquipélago Gulag

Aleksandr Soljenítsin

 

Traduzido do russo por: Antônio Pescada

Prefácio: Natália Soljenítsin

1.a edição em papel: março de 2017


Aleksandr Soljenítsin 1918-2008 combateu na Segunda Guerra Mundial e esteve preso e internado em campos de trabalho forçado de 1945 a 1953, após críticas privadas a Estaline. Ilibado na sequência da «abertura» criada pelo famoso discurso de Krutchev denunciando os crimes estalinistas, foi professor e iniciou o seu percurso de escritor nos anos 50. Um dia na vida de Ivan Deníssovitch, classificado por Aleksandr Tvardovski, seu editor na revista Novy Mir, em 1962, como um «clássico», teve a sua publicação expressamente autorizada por Krutchev e foi estudado nas escolas. Mas a vida de escritor de Soljenítsin viria a ser atribulada e reprimida na sequência da recusa pela União dos Escritores da publicação de Pavilhão de cancerosos e da atribuição do Prêmio Nobel da Literatura em 1970. Foi expulso da União Soviética em 1974, vivendo na Suíça, em França e nos Estados Unidos até à queda do Muro de Berlim, após o que regressou a Moscou, em 1994, sendo recebido triunfalmente. As suas obras marcaram indelevelmente a literatura russa do século XX, inserindo-se na grande tradição narrativa de nomes como Tchekov, Tolstoi e Dostoievski.

Introdução

Nunca na minha vida trabalhei como durante esses 146 dias no Esconderijo; era até como se não fosse eu, era arrastado, a minha mão escrevia e eu era apenas uma mola preparada, comprimida durante meio século e agora solta… 

E anuncia que prescinde dos seus honorários pelo Arquipélago: «irão para a perpetuação da memória dos mortos e para ajuda às famílias dos presos políticos da União Soviética». 

Este livro fala da elevação do Espírito humano, do seu combate singular com o mal. Por isso, ao fechá-lo, o leitor, para além da mágoa e da raiva, sente um afluxo de força e de luz.

O Arquipélago está já traduzido em dezenas de línguas, foi reeditado muitas vezes, debatido em centenas de artigos — mas na URSS, por tê-lo lido clandestinamente em cópias de má qualidade, quase ilegíveis, pode-se ir parar à prisão. 

«Ao ler O Arquipélago Gulag um pouco mais de quinze anos após a desintegração da URSS, o que impressiona não é o facto de haver no livro alguns erros factuais, mas o facto de que estes sejam tão poucos, considerando que o autor não tinha acesso aos arquivos, nem aos documentos oficiais… 

Primeira Parte  —  A Indústria Prisional 

Capítulo 1   A Detenção 

Como se chega a esse Arquipélago misterioso? A todas as horas voam para lá aviões, navegam barcos, atroam comboios — mas não há neles uma única inscrição que indique o lugar de destino.

Os que vão guardar o Arquipélago, são convocados através dos centros de recrutamento militar. Mas aqueles que vão para lá morrer, como eu e você, leitor, têm de passar forçosa e unicamente através da detenção.

A detenção é uma transição instantânea, surpreendente, uma trasladação, uma transmutação de um estado para outro.

E no meio do seu desespero cintilará ainda uma lua de circo, de brinquedo: «Isto é um erro! Tudo se esclarecerá!»

«Não é preciso levar nada. Lá dão comida. Lá está calor.» (Tudo mentira. E dão pressa, para atemorizar, meter mais medo.)

Em linguagem intelectual tudo isto demora muito tempo a descrever, mas o povo diz acerca das buscas: buscam o que ninguém lá pôs.

As detenções noturnas têm ainda a vantagem de que nem os prédios vizinhos, nem as ruas da cidade veem quantos foram levados durante a noite. É como se não tivesse acontecida nada.

A ciência da detenção é um capítulo importante do curso geral de gestão das prisões. 

Por vezes as detenções até parecem um jogo — há nelas tanta inventiva supérflua, tanta energia, quando mesmo sem isso a vítima não ofereceria resistência.

Durante várias décadas, as detenções políticas no nosso país distinguiam-se por serem detidas pessoas que não eram culpadas de nada e por isso não estavam preparadas para qualquer resistência.

Se tu estás inocente, por que te vão prender? Isto é um erro! Já te arrastam pelo colarinho e tu continuas a exorcizar para contigo: «Isto é um erro! Quando tudo se esclarecer, soltam-me!» 

As coisas que se passam na alma de um recém-detido! Só isto valeria um livro.

Mas eu — estou calado ainda por outro motivo: porque aqueles moscovitas que ocupam os degraus de duas escadas rolantes são em todo o caso poucos para mim — poucos! O meu grito será ouvido aqui por duzentas, ou duas vezes duzentas pessoas — e quanto aos outros duzentos milhões?… Tenho o pressentimento confuso de que algum dia gritarei para duzentos milhões

A minha detenção foi por certo do género mais fácil que se possa imaginar. Não me arrancou aos braços da família, não me separou da vida doméstica que nos é tão grata. Num insípido mês de fevereiro europeu, ela arrancou-me da nossa faixa de terra que avançava para o mar Báltico, onde não era muito claro se nós cercávamos os alemães ou se eles nos cercavam a nós — e privou-me apenas da divisão a que estava habituado e do espetáculo dos três últimos meses da guerra.

Capítulo 2   História de nossa Canalização 

Na Primavera de 1922, a Comissão Extraordinária de combate à contrarrevolução e à especulação, cujo nome acabava de ser mudado para GPU*, decidiu intervir nos assuntos da igreja. Era preciso fazer também a «revolução eclesiástica» — substituir a direção por outra que escutasse o céu apenas com um ouvido, e com o outro escutasse a Lubianka.

Os eclesiásticos eram sempre parte obrigatória da captura diária, as suas cabeças grisalhas surgiam em cada cela,

Podes livremente rezar,

Mas… só Deus pode escutar.

(Por estes versos apanhou dez anos.) Uma pessoa que acredite que possui uma verdade espiritual, deve ocultá-la… aos seus filhos!! Todos os religiosos apanhavam dez anos, que era então a pena de prisão máxima.

— E nunca seja o primeiro a parar de aplaudir!

(Mas que fazer? Como havemos de parar?…)

Esse parágrafo era em si mesmo tão vasto e inclusivo que não necessitava de mais alargamento. Sabia e não disse — é como se tivesse cometido!