Fragmentos arcaicos

Alguns primeiros registros

Em geral, as origens da literatura coincidem com os primeiros documentos da língua. Identificar a origem da literatura latina é uma tarefa complexa, sobretudo quanto ao aspecto do tempo e da sobrevivência fragmentária dos textos. Antes do século 2º a.C., os registros textuais supérstites tinham natureza diversa; o valor de tais registros reside justamente como prova da proximidade do latim com as línguas usadas na península itálica, como o etrusco (ao norte do Lácio) e o grego (ao sul). Seguem alguns registros:

Vetusia inscripitio


Uma das mais antigas inscrições latinas, ca. 670 a.C. Descoberta em uma taça de prata em 1949. Ao que tudo indica um nome próprio. Há duvida quanto à língua da inscrição, se em latim muito antigo, ou em etrusco. Na primeira hipótese, seria um nominativo feminino singular; na segunda, um genitivo singular feminino ou masculino. A ordem da escrita, da direita para a esquerda, é notória.

Fíbula de Preneste


Uma espécie de broche ou fivela de ouro, de datação controversa. Se de fato antiga, teria sido feita por um artífice ítalo-etrusco; data aprox. de 650 ou 600 a.C. Caso contrário pode ser um testemunho forjado. Foi descoberta num túmulo em 1887, em Preneste. Em caracteres gregos, traz a seguinte inscrição: Manios med fhefhaked Numasioi; algo correspondente em latim a Manius me fecit Numerio. Do ponto de vista dos traços linguísticos de um latim mais antigo, destacam-se na inscrição: o nominativo singular masculino em -os (Manios) e o dativo singular masculino em -oi (Numasioi); o redobro - fenômeno típico do perfeito grego - do verbo facio; a falta do rotacismo intervocálico [Numasioi > Numerio].

Lapis niger


Uma pedra funerária de aprox. 510 a.C. Foi descoberta no Fórum Romano, em 1889. Nela parece conter proibições de se transitar nas proximidades; fala-se de um rex, o que parece remontar ao período monárquico. Pensou-se ainda que a palavra aludiria a um rex sacrificulus [um sacerdote que assumia as funções sacrificiais dos reis de Roma quando eles eram depostos]. Outra opinião é que a inscrição estivesse colocada sobre o túmulo lendário de Rômulo, primeiro rei de Roma, protegendo o lugar por proibições particulares.

Lapis satricanus


Inscrição em pedra da segunda metade do séc. 6º, entre 520 ou 500 a.C. Foi descoberta em 1977, em Satricum (Lácio) próximo ao templo de Mater Matuta, construído por volta de 500 a.C. Trata-se de uma das inscrições mais antigas do latim. Apesar do começo comprometido, nela se lê: [med h]ei steterai Popliosio Valesiosio/suodales Mamartei. Em latim clássico: [me h]ic steterunt Publii Valerii sodales Marti ("os companheiros de Públio Valério [aqui me] dedicaram a Marte").

As leis das Doze Tábuas

Um texto particularmente importante para a história da língua e da cultura romana é o Duodecim tabularum leges. Segundo a tradição romana, uma pressão popular levou ao estabelecimento, em 451 a.C., de dez homens (decemuirates, os decênviros) com poder consular (consulare imperium) para compor um estatuto (legibus scribundis) para pôr fim ao monopólio patrício e sacerdotal sobre a lei. Eles compilaram primeiro dez tábuas de leis; em 450 a.C., compilaram mais duas, que traziam a proibição do casamento entre patrícios e plebeus; a proibição foi revogada em 445 a.C. pela Lex Canuleia. Esse registro revela que a lei consuetudinária foi estabelecida como lei básica escrita. Trata-se de um importante registro oficial escrito do latim do séc. 5º e do texto fundador do direito romano.

Carmina antigos

À semelhança do texto das Leis das doze tábuas, de natureza oficial, textos religiosos são fontes importantes da história do latim e da cultura romana. Vale esclarecer desde já que a vida religiosa na Roma antiga não estava separada da vida civil e militar. Dois documentos supérstites do campo religioso são testemunhos exemplares: o Carmen Saliare e o Carmen Fratrum Arualium. Antes de partir para os detalhes desses textos, é fundamental compreender a acepção antigo do termo carmen. Abaixo as variações dessa acepção de carmen no Oxford Latin Dictionary:

          • 1. uma sentença solene ou ritual usualmente cantado em forma métrica; a. um hino religioso; b. canto mágico, palavra mágica ou encantamento; c. um oráculo, profecia ou enigma; (...) e. fórmula ou pronunciamento legal ou cerimonial.

A estrutura composicional dos carmina caracterizava-se pela linguagem metrificada, como na poesia. Ora, carme remete a um momento em que a figura do sacerdote, profeta ou adivinho, se confundia com a do poeta, e vice-versa, o poeta como profeta ou adivinho. Outro termo latino que congrega os dois campos, poético e religioso, é uates (o vate); o termo rememora a figura do "bardo" ou "rapsodo" na poesia grega homérica e hesiódica: a poesia como um "canto" e o poeta como um "vidente" ou "profeta", portador de saber e tradição respeitáveis sob uma espécie de inspiração divina.

O latim, posteriormente, registra o emprego de carmen com sentido estritamente poético, ou seja, como "poema, poesia ou canção". Feitos esses esclarecimentos, vejamos mais detalhes dos carmina:

Carmen Saliare

O carmen Saliare (ca. séc. 4º a.C.) sobreviveu em três fragmentos transmitidos por Varrão e pelos gramáticos contemporâneos Terêncio Escauro e Vélio Longo (séc. 2º d.C.). O texto fazia parte da liturgia dos doze sacerdotes Salii, um para cada ancilia, ou seja, os escudos de Marte que os sacerdotes transportavam dançando em procissão. Reza a lenda que um escudo caíra do céu como prova da proteção perpétua de Marte, pai de Rômulo e Remo, sobre as armas romanas. Sob ordens de Numa Pompílio, o artesão Mamúrio Vetúrio teria fabricado outros onze, exatamente idênticos para o original não fosse roubado.

Fr. 1:

diuum +empta+ cante, diuum deo supplicate

Fr. 2:

cume tonas, Leucesie, prae tet tremonti

+quot+ ibet etinei de is cum tonarem

Fr. 3

cozeulodorieso. omnia uero adpatula coemisse.

ian cusianes duonus ceruses dunus Ianusue

uet pom melios eum recum


Carmen Fratrum Arualium

O carme dos irmãos arvais fazia parte das cerimônias arválicas, cultos de origem agreste (aruum, que dá origem ao nome, significa "campo" em latim) celebrados por doze sacerdotes. Esses cultos foram restaurados por César Augusto com todas as suas fórmulas arcaicas. Essas fórmulas foram descobertas sucessiva e fragmentariamente em bases e estátuas de mármore de 1570 até nossos dias. O carme do rito propriamente dito, na forma que chegou até nós - caracterizado por um latim de difícil compreensão e anterior ao rotacismo -, contém os atos de uma cerimônia celebrada no séc. 3º a.C. (ano 218 a.C.), ou seja, num momento em que não seria mais compreendido pelos sacerdotes que o entoavam. Segue o carme:

Enos Lases iuuate

Enos Lases iuuate

Enos Lases iuuate

Neue lue rue Marmar sins incurrere in pleoris

5

Neue lue rue Marmar sins incurrere in pleoris

Neue lue rue Marmar sins incurrere in pleoris

Satur fu, fere Mars, limen sali, sta berber

Satur fu, fere Mars, limen sali, sta berber

Satur fu, fere Mars, limen sali, sta berber

10

Semunis alterni aduocapit conctos

Semunis alterni aduocapit conctos

Semunis alterni aduocapit conctos

Enos Marmor iuuato

Enos Marmor iuuato

15

Enos Marmor iuuato

Triumpe

Triumpe

Triumpe

Triumpe

20

Triumpe

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enos = nosLases = LaresMarmar/Marmor = Marssins = sinas (?)pleores = plureslue = luemrue = ruemSemunis = Semonesadvocapit = advocabite (imp. fut.)conctos = cunctos