Canto XX

Entre deuses, heróis e sangue

Esboço do canto

v.1-3: Aquiles se apronta com as vestes oferecidas por Tétis; os troianos também se preparam

v. 4-74: Zeus convocou à Têmis uma assembleia entre os deuses e os incentiva a participar e a interferir na guerra antes da chegada de Aquiles, pois ele, com sua ira, poderia não cumprir o seu destino e destruir todos os troianos, antes do fim da guerra.

v. 31-74: Conforme a ordem de Zeus, os deuses se dividem em dois grupos: um a favor dos gregos (Zeus, Hera, Poseidon, Atena e Hefesto) e outro a favor dos troianos (Ares, Hermes, Artemis, Leto, Xanto e Afrodite). Os deuses eternos e beatos descem do Olimpo e entram em meio à multidão de gregos e troianos Os gregos alegram-se com o retorno do grande Aquiles após uma longa temporada afastado, enquanto os troianos temem a aproximação do Pelida de pés rápidos e armas luzentes.

v.75-109: Aquiles deseja ardentemente enfrentar Heitor, filho de Príamo e irmão de Páris, causador da guerra. Ares sedento por combate, na forma de Licáone, filho de Príamo, incita Eneias a duelar contra Aquiles.

v. 110-43: Convencido por Febo-Licáone, Eneias avança em direção a Aquiles. Hera percebe a aproximação e reúne os deuses para que eles impeçam a chegada de Eneias ou para que intervenham ao lado de Aquiles. Poseidon, a fim de acalmar Hera, sugere que a luta aconteça entre os homens e que eles apenas observem. Se por ventura algum dos deuses, protetores dos troianos, impedirem a entrada de Aquiles, eles sairão contra eles em resposta.

v. 144-60: Os deuses observam Aquiles e Eneias da muralha de Troia e da Colina Formosa.

v. 161-258: Eneias e Aquiles se aproximam e trocam provocações.

v. 259-90: Eneias arremessa sua lança em direção a Aquiles, assim, começa o grande duelo dos dois. Com pesar pelo destino de Eneias diante de Aquiles, que estava em desvantagem, Poseidon, aconselhado também por Hera, salva o filho de Anquises da morte.

v. 291-341: Poseidon e Hera discutem o destino de Eneias; o deus dos mares aconselha o troiano a jamais enfrentar Aquiles novamente, dizendo-lhe que este grego seria capaz de derrotá-lo. Depois que o Pelida tiver o seu destino cumprido, Eneias poderá lutar nas fileiras da frente, pois não precisa temer a nenhum guerreiro grego. Cabe a Eneias dar continuidade à raça troiana.

v. 364-74: Heitor anima os troianos revelando não temer o Pelida, pois este, luta mais com palavras do que com gestos.

v. 375-80: Apolo, então, exorta Heitor a não confrontar Aquiles.

v. 381-438: Aquiles vai ao encontro dos troianos e logo mata Ifítione, Demoleonte, filho de Antenor, Hipodamante e Polidoro, irmão de Heitor e o filho mais jovem de Príamo. Heitor vê o irmão agonizar no chão e deseja lutar contra Aquiles; os dois discutem

v. 439-54: Heitor investe contra Aquiles, mas Atena intervem e livra o Pelida da lança de Heitor. Aquiles deseja revidar, mas Apolo salva o chefe troiano.

v. 455-98: Aquiles fica furioso com o sumiço de Heitor e mata muitos outros troianos.

v. 499-503: O Pelida vocifera em meio a um cenário sangrento de guerra.

Por Maria Eduarda, Larissa Paiva, Vitória Maria e Liebert Muniz

Têmis (Θέμις) e a assembleia (ἀγορή) [v. 4] – Nas genealogias divinas, Têmis figura entre as primeiras gerações, especificamente a geração dos Titãs; é filha de Urano [Céu] e Gaia [Terra] (Teog. v. 126-36). Seu nome está ligado ao verbo grego τιθέναι (tithénai), “colocar, estabelecer”, donde a ideia de “o que é estabelecido como regra, a lei divina ou moral, a justiça, o direito divino” (Dic.Mit.Et. vol. 2, p. 417). Têmis, assim, é representação da justiça divina. Logo após a Titanomaquia (Teog. v. 617-721), foi a segunda esposa de Zeus (Teog. v. 901-6) – antes o Cronida uniu-se a Métis, a Astúcia, dessa relação engendrou Palas Atena – tendo como filhas as Horas (Eunômia, Dice e Irene) e as três Moiras (Cloto, Láquesis e Átropos); uma variante presente na tragédia Prometeu Acorrentado (v. 8, 209-11, 873-4) de Ésquilo faz de Têmis a mãe de Prometeu; outra variante presente em Ovídio (Met. 1.150, 159, 534) faz de Zeus e Têmis os pais da Virgem (a constelação) Astreia que, na Idade de Ouro, reinava sobre a Terra difundindo entre os homens a justiça e virtude. A degeneração da raça humana fez com que Astreia subisse aos céus e se tornasse a constelação de Virgem.

Apesar de ser da geração do Titãs, Têmis não só habita o Olimpo, como também é respeitada na morada dos deuses; ela representa o estabelecimento das leis divinas, dos ritos e dos oráculos; entre os muitos serviços prestados, foi ela quem exortou Zeus e Poseidon a não possuírem Tétis: a nereide estava destinada a gerar um filho mais poderoso que o pai. Neste canto 20, Têmis, a pedido de Zeus, convoca uma assembleia dos deuses. A participação de Têmis nos primeiros versos parece representar a boa prática legal, a justeza e a solenidade do encontro. Cenas de assembleias ou concílios divinos são comuns aos grandes poemas épicos da cultura clássica; em geral, elas acontecem quando os deuses precisam deliberar sobre algum tema importante no curso da narrativa, por exemplo, os destinos dos heróis, dos combates etc. Em Il. 8.2ss, Zeus ordena que nenhum dos deuses interfira na batalha; a decisão agora é oposta.

Deucalião e Pirra rezando diante da estátua de Têmis. Por Tintoretto (c. 1542)

Edoneu, Hades (Ἅιδης) [v. 61-5] – Hades é o filho de Crono e Reia que governa o mundo dos mortos. Findada a Titanomaquia com a vitória dos Olímpicos, ele divide ordem do orbe com os irmãos Zeus e Poseidon, este governa os mares, aquele os céus. De etimologia incerta, o nome Hades parece estar circunscrito à noção de “terrível”, “medonho”, “violento”, se aproximando do sentido geral de “deus das trevas”. Os antigos, por etimologia popular, interpretavam o nome do deus como “invisível”, “tenebroso” (Dic.Mit.Et. vol. 1, p. 475-7). Quando da referida batalha contra os Titãs, os Ciclopes deram a Hades um capacete que o tornava invisível. O nome do deus (também aplicado aos seus domínios) é raramente proferido em razão do temor de suscitar-lhe a cólera. Alguns eufemismos são usados em substituição ao nome; os mais comuns são Edoneu (Ἀϊδωνεύς) e Plutão (Πλούτων), o primeiro é uma forma poética de Hades (ocorre duas vezes na Il.: 5.190 e 20.61; cf. Teog. v. 913), o segundo atribui ao deus a ideia de “riqueza, abundância”. A ideia de riqueza é não só uma referência “aos hóspedes inumeráveis”, mas também às riquezas vegetais e minerais das entranhas da terra. Outro aspecto interessante na passagem do canto 20 é o receio que Hades tem de Poseidon, o abalador da terra: a ação do deus dos mares pode abrir a terra e escancarar as tenebrosas moradas subtérreas.

Eniálio, Ares (Ἀρης) [v. 69] – Ares é um dos filhos do casamento de Zeus e Hera, tendo por irmãs Hebe e Ilítia. É o deus grego da guerra e da violência; seu nome etimologicamente está relacionado a ἀρή, “desgraça, infortúnio, destruição”. Seu caráter é impressionantemente marcado pela coragem brutal, pelo espírito de luta e pelo desejo por carnificina e sangue. A descrição de sua estatura também impressiona: de porte gigantesco e atlético, coberto por uma pesada armadura de bronze, elmo reluzente, lança e escudo. Em geral, Ares combatia sempre a pé, lançando grito medonhos. Os epítetos mais comuns atribuídos a Ares são “insaciável de batalhas, bebedor de sangue, destruidor de homens, deus das lágrimas”. Nesse sentido, Ares é o deus mais desprezível do Olimpo. Os epítetos, aliás, podem ser relativizados, uma vez que Ares é constantemente vencido por Atena (por exemplo, Il. 21.391-406), por Héracles e ainda é ferido por Diomedes (Il. 5.846-63). Eniálio (Ἐνυάλιος), de etimologia incerta, é o nome de um antigo deus da guerra, nome associado ao grito de guerra. Nos poemas homéricos (cf. Il. 17.211), o termo foi incorporado a Ares (cf. Chantr., 1968, p. 352).

Héracles em Troia [v. 144-8] – Famosas são as expedições do filho de Alcmena. A expedição a Troia foi uma das primeiras e encontra menções em outros passos da Ilíada: 7.452-3, 20.144-8, 21.441-57. A passagem de Héracles por Troia se relaciona às gerações anteriores a de Príamo. Retornando do país das Amazonas, Héracles passa por Troia, que tinha por rei o filho de Ilo, Laomedonte, este o pai de Lampo, Títono, Podarce (Príamo), Clício e Icetáone.

O contexto da passagem de Héracles é o seguinte: os troianos estavam de luto pelas mortes decorrentes da cólera de Apolo e Poseidon, que construíram fortificações ao redor da cidade com a ajuda de Éaco. As causas para isso não ficam claras, talvez ela tenha sido imposta por Zeus como castigo de um ano de trabalho em razão de uma possível rebelião desses deuses contra o Cronida, ou ainda porque os deuses queriam testar Laomedonte (um princípio que encontra abrigo em Od. 17.485-7). Fato é que Laomedonte se recusou a pagar o soldo acordado. Apolo enviou uma peste, Poseidon, um monstro marinho que devorava os troianos. Um oráculo revelou que a ira dos deuses seria aplacada se Laomedonte oferecesse sua filha Hesíone para ser devorada pelo monstro. Quando Hesíone se encontrava acorrentada a um rochedo para o sacrifício, Herácles chegou em Troia. O filho de Alcmena procurou Laomedonte para matar o monstro e lhe salvar a filha e a cidade, cobrando por paga as éguas que Zeus dera a Trós, pai de Ilo, em compensação pelo rapto de Ganimedes. O rei concordou, e Héracles matou o monstro. O mau-caratismo de Laomedonte mais um vez foi nefasto: o pagamento acordado não foi efetuado, e Héracles parte de Troia sob ameaças de um dia invadir e tomar a cidade. Isso se realizou anos depois, depois que o herói concluiu seus Doze Trabalhos e a cumpriu os anos como escravo na casa de Ônfale, rainha da Lídia. Héracles, então, reuniu um contingente de voluntários - entre eles Peleu e Telamon - formado por dezoito navios e cinquenta remadores. O herói aportou em Troia, deixou a Ecles os cuidados das embarcações e atacou a cidade. Laomedonte, então, armou uma emboscada às naves e matou Ecles. Alguns companheiros de Héracles foram em socorro da pequena guarnição e conseguiram fazer Laomedonte recuar. Junto aos muros de Troia, Telamon, um fiel companheiro de Héracles conseguiu transpor as muralhas e invadir a cidade; o filho de Alcmena foi o segundo. Um fato curioso do orgulho de Héracles, que fora superado por um companheiro, se revela quando o herói vai furiosamente em direção a Telamon com intenção de matá-lo. Telamon, nesse momento, se abaixa e começa coletar pedras; sem entender bem a reação do companheiro, Héracles pergunta-lhe o que ele fazia, e Telamon respondeu que ele erguia um altar a “Héracles Vencedor”. Diante de tal atitude, Héracles poupa a vida do fiel companheiro. Voltando à invasão, a conquista de Troia foi rápida; Héracles matou Laomedonte e seus filhos, exceto Podarce, a flechadas, concedeu Hesíone como esposa de Telamon e fez com que ela escolhesse um dos prisioneiros como escravo. Ela escolhe seu irmão Podarce. Héracles, no entanto, estabeleceu a condição de que Podarce deveria primeiro servir como escravo e só depois poderia ser resgatado dessa condição. Hesíone aceita os termos e, posteriormente, compra a liberdade do irmão, que então passou a ser chamado de Príamo, etimologicamente próximo ao verbo grego πρίαμαι, príamai, “comprar”.

Cáucones (Καύκονες) [v. 329] - Embora não tenham notável destaque durante a Ilíada e sua origem não esteja tão clara, segundo Estrabão, os cáucones foram citados por Calistenes (FGrHist. 124 F 53) como tribos que habitavam as terras ao norte da Anatólia (região banhada pelo mar Negro e atual Turquia) e adicionados ao catálogo dos troianos (Il. 2.850-5) após o contingente dos paflagônios (cf. Ian Rutherford, Hom.Ency., 2011, vol. 2, p. 434). De acordo com os textos clássicos, os cáucones lutavam ao lado dos troianos, aparecendo por duas vezes durante a obra: a primeira no canto 10, v. 429, e a segunda no canto 20, v. 329. Eles são descritos como aqueles que permanecem junto ao mar (v. 328, no “lado extremo do campo”) e, neste canto 20, se preparam para entrar em batalha vestindo “as armas de guerra os intrépidos Cáucones”.

Por Vitória Maria, Larissa Paiva e Maria Eduarda