Canto XXI

Luta junto ao Xanto

Esboço do canto

v. 1-8: A luta chega às proximidades do rio Xanto (Escamandro), e os troianos fogem ante a fúria de Aquiles. Um grupo foge para a cidade, outro foge em direção ao rio.

v. 9-33: O Xanto (Escamandro) se enche de cavalos, soldados, gritos e gemidos. Aquiles mata muitos troianos, e as águas se tingem de sangue. Aquiles seleciona doze jovens troianos vivos para serem imolados em honra a Pátroclo.

v. 34-119: O encontro entre Aquiles e outro filho de Príamo, Licáone, que acaba morto.

v. 35-48: Narrativa do encontro passado em Licáone e o Pelida. Capturado nas terras de Peleu, pai de Aquiles, Licáone foi vendido como escravo em Lemno, onde foi comprado por um dos filhos de Jasão. Na sequência, foi adquirido por Eecião, amigo de Príamo, e levado para Arisba. Não se sabe ao certo, mas Licáone consegue retornar a Troia.

v. 49-63: Aquiles se espanta ao ver Licáone em Troia.

v. 74-96: Licáone, de joelhos, se coloca como suplicante diante de Aquiles e propõe um resgate. Como argumento, Licáone recorre à sua origem diferente da de Heitor: embora seja filho de Príamo, sua mãe é Laótoe, que também é mãe de Polidoro, morto no canto 20.

v. 99-119: Aquiles recusa o resgate, declara seu ódio aos filhos de Príamo e é consciente que sua morte se aproxima. O Pelida mata Licáone.

v. 120-35: Aquiles, em pleno ato de soberba, joga o corpo de Licáone no Xanto (Escamandro). A soberba do Pelida se dirige também contra o próprio rio troiano.

v. 136-99: O rio Xanto (Escamandro) se ofende com as palavras de Aquiles. Irritado com tantas mortes, o rio infunde coração de Asteropeu, perseguido por Aquiles. Os guerreiros travam um combate. Aquiles mata o troiano e espolia as armas.

v. 200-11: Os peixes se aglomeram junto ao corpo de Astropeu. Aquiles, na sequência, mata muitos troianos.

v. 212-71: Xanto (Escamandro) toma a forma humana e se opõe aos atos do Pelida. Este cede ao rio, mas adverte que continuará a matar troianos até encontrar Heitor. Na sequência, Aquiles saltou da margem para o fundo do rio que, furioso, joga grandes ondas contra o Pelida. Os dois entram em combate. Xanto (Escamandro) deseja fazer Aquiles recuar e salvar os troianos. Aquiles tenta sem sucesso sair das correntes do rio.

v. 272-83: Aquiles, sem conseguir sair do Xanto, reclama a ajuda de Zeus; e culpa Tétis pelo engano de que sua morte seria gloriosa junto às muralhas de Troia; o Pelida prefere morrer pelas mãos de Heitor a morrer afogado nas águas no rio.

v. 284-98: Atena e Posido assumem forma humana, aparecem a Aquiles, infundem coragem e prometem ao herói uma morte gloriosa.

v. 299-325: Aquiles, motivado por Atenas, se ergue; Xanto (Escamandro) não recua e chama o Simoente para resistir, auxiliar os troianos e sepultar o Pelida sob a areia do rio.

v. 326-82: Hera, desesperada, pede ajuda a seu filho Hefesto, o deus do fogo. O Xanto (Escamandro) se vê obrigado a recuar e abandonar os troianos:

v. 331-41: Hera reconhece em Hefesto o único deus capaz de conter Xanto (Escamandro); ela promete ao deus coxo o auxílio de Zéfiro e Noto, e ordena que Hefesto abrase tudo em volta.

v. 342-82: Hefesto atende às ordens de Hera; o plaino, os cadáveres troianos, as árvores e os peixes do rio são atingidos pelo fogo abrasante; Xanto (Escamandro) recua diante da força de Hefesto; O rio se dirige a Hera e promete abandonar os troianos à própria sorte. Hera aceita os termos e pede que o filho cesse o fogo. Hefesto obedece.

v. 383-520: Os deuses olímpicos entram em combate:

v. 392-433: Ares, lembrado de que Diomedes tentara feri-lo por incentivo da Tritogênia (Il. 5), enfrenta Atena; a deusa de olhos glaucos atinge Ares com uma pedra; Afrodite auxilia Ares, Hera pede que Atena se dirija contra eles; Atena atinge Afrodite.

v. 434-96: Posido investe contra Apolo; Febo recua. Ártemis reprova o irmão. Hera investe contra Ártemis e lhe acoita com o carcás; Ártemis foge deixando arco e flechas caírem.

v. 497-520: Hermes evita enfrentar Leto. A deusa recolhe as setas deixadas pela filha. Ártemis chega ao Olimpo e busca o amparo do pai. Apolo dirige-se ao recinto sagrado de Troia, enquanto as demais divindades retornam ao Olimpo.

v. 521-43: Aquiles continua com a matança a perseguição aos troianos. Do alto da torre da cidade, Príamo observa o Pelida; o monarca lamenta, desce aos muros e ordena que os portões sejam abertos para refugiar os fugitivos.

v. 544-98: Apolo infunde coragem no peito de Agenor, filho de Antenor. Apolo se mantém próximo. Agenor, no entanto, diante da aproximação de Aquiles, fica indeciso, se foge com os outros troianos, se foge pelos bosques ou se enfrenta o Pelida. Agenor decide combater. Ele arremessa a lança, que vai bater nas grevas de Aquiles sem feri-lo. Ao investir contra Agenor, Apolo salva o filho de Antenor lançando densa neblina.

v. 599-611: Apolo, assumindo a forma de Agenor, engana Aquiles: o Pelida persegue o deus até um campo de trigo enquanto os demais troianos se refugiam dentro da cidade.

Campos de batalha imaginários de Homero vistos de um ponto acima de Imbro, olhando para o sul (Frederico Lourenço, 2005, p. 101)
Mapa da Trôade (Frederico Lourenço, 2005, p. 102)

Xanto (Ξάνθος) ou Escamandro (Σκάμανδρος): é o principal rio da hidrografia troiana, fluindo do monte Ida para o mar (cf. Il. 12.19-23), onde se une a outro importante rio, o Simoente. Na narrativa homérica, ambos são rios e deuses; primeiro participa diretamente da batalha neste canto 21; o segundo é apenas mencionado no poema. Na mitologia grega, vários deuses-rios, figuram como filhos do grande do Oceano (cf. KALID¹, 2014, p. 10), como se vê na própria Il. 14.245-6 e na Teogonia de Hesíodo, v. 337-45:

Tétis gerou de Oceano os rios rodopiantes:

Nilo, Alfeu, Erídano de rodopios profundos,

Estrímon, Meandro, Istro de belo fluir,

Fase, Reso, Aquelôo de rodopios de prata, 340

Nesso, Ródio, Haliácmon, Sete-bocas,

Granico, Esepo, Simoente divino,

Peneu, Hermo, Caico bem-fluente,

Sangário grande, Ládon, Partênio,

Eveno, Ardesco e Escamandro divino. 345

Em Homero, o Xanto (Escamandro) também figura como filho de Zeus (cf. Il. 14.433-4, 21.1-2, 24.692-3). Essa variação mítica pode destacar o papel de Zeus como provedor da chuva (cf. Il. 21.326: "as foscas ondas do rio que as chuvas de Zeus alimenta."; ver ainda MACKIE, C. J. in Hom.Ency., vol. 3, p. 807). Como veremos, Xanto desempenha um papel importante na luta contra Aquiles: ele, assumindo forma humana, luta pelos troianos e tenta frear o ímpeto mortal do Pelida; por determinado tempo, Xanto é bem sucedido, mas, após intervenção de Hera, Hefesto, que luta pelos gregos, aparece para livrar Aquiles das correntes do rio. É justamente nesse encontro das forças naturais representadas por Xanto e Hefesto que Kalid (2014, p. 10) nos diz algo muito interessante:

Na cena narrada, podem-se analisar duas importantes metáforas aqui importantes (sic). A primeira delas é a metáfora do rio, que se revela bastante representativa do devir, bem como do perigo causado pelos deslimites humanos e pela negação do caráter contraditório da vida.

O rio como metáfora para a passagem do tempo (tempus fugit) é, desde a retórica antiga e clássica, uma imagem bastante tradicional. (...) A outra metáfora inferida na passagem narrada é a metáfora do fogo, presente na Ilíada quando da interferência de Hefesto na batalha. Tal metáfora também remete a Heráclito e sua filosofia da mudança; para ele, o fogo era o elemento mais fundamental entre todos, justamente por melhor representar o devir contínuo.

O canto destaca o grande poder dos rios e seu importante papel na guerra como elementos da natureza (o rio [água] e mesmo o fogo) que reagem aos cenários assustadores da guerra. Esses mesmos rios já foram objeto de culto por parte dos Troianos (Il. 21.130-2) e devido a isso, os rios em forma de deuses assumem como uma espécie de reconhecimento aos devotos (21.136-8).

Por trás da explanação mitológica, o cantoênfase à harmonia natural dos elementos da natureza e a poluição ambiental que a guerra traz. De acordo com Kalid (2014, p.15):

(...) pode-se refletir que a metáfora do rio, na obra de Homero, sugere uma integração necessária e intransponível entre homem e natureza na antiguidade grega, representada na Ilíada por meio do temor às forças naturais. Simbolizadas nos deuses do Olimpo, essas forças não cessam de mostrar ao homem os limites de sua própria vontade; é o que o rio Xanto faz, por exemplo, ao atacar Aquiles e quase levá-lo à morte.


¹Referência citada: KALID, Lorena. 'A metáfora do rio na Ilíada e na poesia de Viviane Mosé'. Litteraonline, v. 5, n. 7, 2014.

Por Rita de Cássia, Ingryd Brito e Liebert Muniz

Demônio (δαίμων) v. 19 – uma das primeiras acepções da palavra grega é “deus ou deusa”; a acepção mais comum é a de “poder divino”, “poder”, “força”, podendo significar também “destino” ou “sorte”. Em Homero, seu uso principal é de “ação mais ou menos esperada de um deus sobre a vida humana”; por vezes no plural, os δαίμονες correspondem a um poder sobrenatural em suas manifestações inexplicáveis, anônimas e terríveis. Em razão disso, δαίμων carrega uma forte acepção de “fado”, “destino”. Hesíodo, em Os trabalhos e os dias, oferece um novo sentido: a queda da Idade de Ouro foi o resultado dos “δαίμονες doadores de bens”, eles operam como espíritos guardiões ou protetores; daí essa palavra vir associada à noção de felicidade ou εὐδαιμονία, ou seja, aquele que recebe um bom destino e é protegido pelos deuses seria considerado um εὐδαίμων; o desditoso seria um κακοδαίμων.

Licáone (Λυκάων) – na Il. Aparecem dois guerreiros com esse nome. Um é pai de Pândaro (cf. Il. 2.826), a quem Apolo dera um arco de presente; desconsiderando os conselhos de Licáone, Pândaro foi lutar em Troia sem seus cavalos e carros, deixando-os em Zeleia com seu pai. O outro é filho de Príamo e Laótoe; ele foi raptado por Aquiles e vendido como escravo em Lemnos (cf. Il. 21.40, 23.746) e resgatado por Eecião, amigo-hóspede de Príamo, e enviado para Arisba, donde retornou a Troia (21.42-44). Doze dias depois de seu retorno, ele foi morto pelas mãos de Aquiles; ele foi morto despido de suas armas e emergindo do Xanto (Escamandro), brutalmente morto mesmo suplicando desesperadamente pela vida (Il. 21.74-98).

Asteropeu (Ἀστεροπαῖος) v. 140: Um dos muitos guerreiros menores presentes na Ilíada. É filho de Pelagão - filho de Áxio - e Peribeia, líder e principal combatente dos Peônios (cf. Il. 17.351-2). Neste canto 21, demonstra notável habilidade ambidestra no arremesso de duas lanças (v. 162); demonstra também muita coragem (inflada pelo Xanto) por encarar Aquiles, que fica levemente ferido pelo arremesso de Asteropeu (v. 166-8). O aliado troiano, no entanto, numa cena de notável desespero, é morto por Aquiles à espada e tem suas armas espoliadas (v. 179-83). A descrição do que acontece ao seu corpo é impressionante: a água escura da margem cobre-lhe o corpo e peixes e enguias vorazes devoram a gordura que à volta dos rins. No canto 23, nos jogos fúnebres em honra a Pátroclo, as armas de Astropeu são distribuídas por Aquilies com recompensas: a couraça de bronze é dada a Eumelo (Il. 23.560-2) e a espada de prata, o boldrié e a bainha a Diomedes.

Áxio (Ἀξιός) v. 158: o deus-rio da Peônia. É descrito por Homero como "o mais belo dos rios que, ufanos, se alargam na terra" (Il. 2.850). Com Peribeia, a filha mais velha de Acessámeno, gerou Asteropeu. O Áxio é nos dias de hoje o rio Vardar, que deságua no mar próximo à Tessalônica.

v. 257-64: Um símil vivaz por seus efeitos paradoxais: os cenas assustadoras de violência e morte são contrastadas com a pintura pacífica do jardineiro. Uma oposição anotada nos escólios homéricos: o estilo poderoso e bélico dá lugar ao plano (humilde, baixo) e florido. O símile dividiu a crítica antiga: Duris de Samos (c. 340-260 a.C.) censurou o símile com um trecho inapropriado para a cena; Demétrio de Falero (c. 350 a.C., Sobre o estilo, 209), por sua vez, destaca o passo contrastivo como um exemplo singular de força e a vivacidade (ἐνάργεια) por sua precisa e detalhada (cf. KIRK & RICHARDSON, 2001, vol. 6, p. 74).

Hefesto (Ἥφαιστος) - é o deus do fogo, filho de Zeus e Hera, muito embora acredita-se que Hera tenha gerado Hefesto sozinha, como uma espécie de vingança por Zeus ter concebido sozinho a deusa Atena. Hefesto era o deus da tecnologia, dos metais, metalurgia e vulcões. Tem uma característica marcante, uma de suas pernas coxa e uma das explicações para esse problema é que em uma determinada briga entre Hera e Zeus Hefesto tenha tomado partido à favor da mãe, e Zeus, por sua vez, se irritou e então atirou Hefesto Olimpo abaixo. O mesmo caiu um dia inteiro e ao chegar ao chão, quase sem vida, machucou a perna tornando-se assim, coxo. Uma outra explicação é que, ao nascer com seu problema na perna, sua mãe Hera, envergonhada de sua aparência o jogou no oceano onde ele foi resgatado por Tétis e Eurínome, que o criaram até os 9 anos de idade em uma gruta embaixo do mar. Para vingar-se de sua mãe, Hefesto esculpiu um trono de ouro com vários cadeados que prendiam qualquer pessoa que nele sentasse, e Hera nele se sentou e ficou presa, tendo então que pedir ajuda ao filho coxo. Mesmo não sendo belo como os outros deuses, Hefesto teve romances com belas mulheres. Na Ilíada, lhe atribuem Cáris, a mais jovem das cárites, mas também é muito conhecido por seu relacionamento com Afrodite. Hefesto nasceu fraco, mas cresceu e tornou-se grande e forte, fazendo jus por ser o deus do fogo.

Por Karízia Sales e Ana Cláudia Coriolano