Canto XVIII

As armas de Aquiles

As novas armas de Aquiles são obra do mais puro lavor do deus ferreiro, Hefesto. A própria mãe do Pelida, Tétis, intercede junto ao deus para que novas armas sejam feitas, uma vez que Heitor espoliou o cadáver de Patróclo que, no trágico fim de sua aristia (Il. 16.818-67), vestia as antigas armas de Aquiles. Bronze, estanho, ouro e prata são a matéria-prima das novas armas (Il. 18.474-5). Ao começar pelo escudo e por toda a riqueza de detalhes das imagens que parecem ter vida, o poeta nos oferece uma das mais antigos exemplos de uma écfrase (Para uma definição mais ampla, confira aqui o verbete de Susana P. Medina 'Ecphrasis ou ekphrasis' (2010) no E-Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia).

O escudo

v. 478. "Grande e maciço, primeiro, fabrica o admirável escudo (σάκος)". Muito diferente de outros escudos que já apareceram na Il. (cf. o escudo de Agamêmnon, Il. 11.32-37), o de Aquiles é enigmático: em um momento crucial da guerra, o novo escudo representa diferentes esferas da existência humana.

1) v. 483-9: Hefesto primeiro insculpiu a ampla terra, o mar vasto, o firmamento, o sol, a lua, as numerosas estrelas. Hefesto representa as Plêiades, o Órion, as Híades e a Ursa. As primeiras representações feitas pelo deus ferreiro possuem um forte traço cosmogônico.

    • as Plêiades (Πληίαδες, cf. Hesíodo, Op. 383): sete irmãs divinizadas e transformadas nas sete estrelas da constelação das plêiades. Eram filhas de Atlas e Plêione; seus nomes são Taígete, Electra, Alcíone, Astérope, Celeno, Maia e Mérope. Conforme registra Pierre Grimal (2005, p. 379), outra tradição (presente em um fragmento de Calímaco) propõe como mãe das Plêiades, iniciadoras dos coros de dança e festas noturnas, uma rainha das Amazonas. Segundo essa versão, os nomes seriam: Cocimo, Gláucia, Prótis, Parténia, Maia, Estoníquia e Lâmpado. Por vezes, Calipso e Dione figuram entre as Plêiades.
    • Órion (Ὠρίων): um gigante filho de Euríale e de Posídon ou de Hirieu. Famoso por sua grande beleza e prodigiosa força. Desposou primeiro Side, de tal modo bela e orgulhosa que ousou rivalizar com Hera. A deusa lançou a desafiante no Tártaro. Sem esposa, Órion vai a Quios, atendendo a um chamado de Enópion para por fim a animais ferozes que devastavam a ilha; lá se apaixona por Mérope, filha de Enópion, que lhe nega a filha. Há duas versões para a narrativa: 1) Órion, embriagado, quis violentar Mérope; 2) o próprio Enópion o embriagou, levando-o a intentar o crime. Seja como for, Enópion cegou-o enquanto ele dormia. Depois de recuperar a visão olhando para o Sol nascente, Órion desperta a paixão de Aurora, que o leva para Delos. Uma versão do mito diz que Ártemis o matou por tentar desafiá-lo no arremesso de dardo ou por tentar violar uma das servas da deusa; outra versão mais difundida diz que Órion teria tentado violentar a própria Ártemis, que, como castigo, enviou um escorpião para lhe morder o calcanhar. Em recompensa, o escorpião foi transformado em constelação; Órion teve a mesma sorte.
    • as Híades (῾Υάδες): vizinhas às Plêiades, as Híades são estrelas cujo aparecimento coincide com as chuvas da primavera. Eram filhas de Atlas e de uma Oceânide, de nome Etra ou Plêione. Em algumas versões, o pai delas é Melisseu, rei de Creta, ou ainda Hias, ou Erecteu, ou até mesmo Cadmo. O número é incerto, ora duas, ora sete. Em geral seus nomes são: Ambrosia, Eudora, Ésile ou Fésile, Corônis, Dione, Pólixo e Féio. Antes de se transformarem em constelação, as Híades foram amas de Dioniso, sob a designação de Ninfas do Nisa.
    • Ursa (Ἀρκτος): a constelação da Ursa Maior (Ἀρκτος μεγάλη), também chamada de Carro (ἅμαξα). Na Il. 18, é gravada no escudo de Aquiles; na Od. 5.273, faz parte das orientações dadas por Calipso a Odisseu.

2) v. 490-540: Hefesto grava duas belíssimas cidades.

    • Na primeira (v. 491-508), há bodas, música, dança, convivência, comércio, contenda, julgamento, grupos partidários.
    • Na segunda (v. 509-540), há exércitos inimigos, armaduras, partilha do butim, emboscada, mulheres, crianças e velhos tomando parte dos combates, Ares e Atena, assalto, batalha, a Discórdia, o Tumulto, a Parca.

3) v. 541-9: Um terreno próprio para lavoura: largo, lavrado três vezes, lavradores inúmeros e juntas de bois aram o terreno, um homem servia aos lavradores um copo de mosto sempre que uma volta no terreno era dada; a representação da terra era de coloração preta, apesar do material dourado, parecendo uma terra revolta.

4) v. 550-60: Um campo real: a messe é representada, além dos segadores com foices afiadas na mão; molhos caíam sem pausa, feixes amarrados com juncos; um rei alegre segurando um cetro áureo; sob um carvalho, os arautos imolam um boi corpulento para o banquete; as mulheres preparam o almoço dos segadores, cobrindo os assados com farinha branca.

5) v. 561-72: Hefesto representa uma vinha carregada e belíssima: de ouro era a cepa e de cor negra os cachos, sustentados com estacas de pratas; de aço era o fosso e a cerca de estanho; os vinhateiros percorrem o caminho para a vindima; moços e moças carregam cestos de uvas; um mancebo toca com a lira o hino de Lino (Λίνος).

  • Segundo Junito Brandão (1991, vol. II, p. 63), os mitos em torno de Lino convergem para a figura de um herói que torna cantor ou em objeto de uma canção. Numa versão, ele seria filho de Apolo e de Psâmate, filha de Crotopo, rei Argos; a princesa expôs a criança, que foi acolhida pelos pastores, mas foi dilacerada pelos cães; Psâmate relatou ao pai as aventuras amorosas com Apolo e o terrível destino de Lino; não acreditando que a criança era filho de um deus, Crotopo condenou a própria filha à morte; Apolo, irritado com a morte de sua amante de seu filho, condena Argos a uma grande fome; o rei foi exilado e, depois de sua morte, foi lançado por Apolo nas profundezas do Tártaro. Para cultuar a memória de Lino e Psâmate, entoava-se em Argos um θρῆνος (thrénos), um canto fúnebre, durante o qual se sacrificavam todos os cães que se encontrassem nas ruas e praças da cidade. Na versão beócia do mito, Lino seria filho de Anfímero e umas das musas (Urânia,Calíope ou Terpsícore). Cantor habilidoso, desafio Apolo para um certame; o deus, irado, o matou a flechadas. A Lino se atribui a invenção do ritmo e da melodia. Diz-se ainda que recebeu de Cadmo o alfabeto fenício e lhe conferiu os caracteres definitivos e o nome de cada letra; ele teria sido o primeiro professor de letras e de música de Héracles.

6) v. 573-86: uma manada vistosa de bois de chifres eretos; quatro pastores conduzem o rebanho, por nove cães protegido; dois leões acometem o rebanho, um touro é morto apesar dos esforços dos pastores e dos cães.

7) v. 587-9: um grande prado em vale ameno com ovelhas luzentes.

8) v. 590-606: um recinto de dança onde mancebos e virgens dançam; elas vestiam linho, eles túnicas; grinaldas enfeitavam as fontes das virgens, espadas de ouro pendentes de bálteos de prata, os rapazes; cantava entre todos o aedo divino ao som da cítara, ao mesmo tempo dois saltadores cabriolavam seguindo o compasso no meio da turba.

v. 607-8: Hefesto termina o escudo gravando a corrente do oceano que a Terra circunda.

As demais armas

Hefesto termina (v. 610-18) com a feitura da couraça, do elmo e das grevas.

Representação do Escudo de Aquiles

Fonte: FINKELBERG, M. (Ed.) The Homer Encyclopedia. Vol. 3. Oxford: Wiley-Blackwell, 2011, p. 795.