Canto XIX

O retorno de Aquiles

Esboço do canto

v. 1-20: Tétis entrega as novas armas de Aquiles, que se encontra ao lado do corpo de Pátroclo; Tétis promete tratar o corpo de Pátroclo até que o filho retornar do combate;

v. 21-275: Convocados por Aquiles, os gregos se reúnem em assembleia; reconciliação entre Aquiles e Agamêmnon:

v. 78-144: discurso de Agamêmnon e excurso do mito de Herácles;

v. 155-83: discurso de Odisseu: os gregos devem comer e descansar, Agamêmnon deve oferecer a Aquiles os presentes prometidos (cf. Il. 9) e jurar que não possuíra Briseide;

v. 199-237: Aquiles deseja voltar o quanto antes ao combate, mas é persuadido por Odisseu;

v. 238-67: Odisseu, atendendo às ordens de Agamêmnon, traz os presentes de Aquiles e os expõe diante de todos; Agamêmnon, acompanhado de Taltíbio, conduz um sacrifício aos deuses e faz o juramento;

v. 282-300: de volta à tenda de Aquiles, Briseide chora intensamente ao se deparar com o corpo de Pátroclo, com quem revela afinidade;

v. 303-39: Aquiles se recusa a comer; o Pelida volta a lamentar a morte do amigo dileto, aflige-se ao lembrar da velhice de seu pai, Peleu, e menciona o filho Neoptolemo, que se encontra em Esciro; os demais lamentam cada um sua desdita;

v. 340-55: Zeus, preocupado com Aquiles, pede que Atena cuide do herói oferecendo-lhe alimento divino, a saber, néctar e ambrosia;

v. 356-424: os gregos saem dos navios para o combate; Aquiles, sedento de vingança, veste e experimenta as novas armas;

v. 392-8: o Pelida apronta seu carro com Automedonte como auriga;

v. 400-3: Aquiles provoca Xanto e Balio; Xanto ganha voz com a ajuda de Hera e responde que Pátroclo teve as armas roubadas por intervenção de Apolo;

v. 408-17: Xanto prediz que a morte do próprio Aquiles está próxima;

Coão Antenórida [v. 53] - Coão foi o filho mais velho de Antenor, daí o patronímico Antenórida. Esse personagem já apareceu em Il. 11.249-61, quando tenta vingar a morte do seu irmão Ifidamante embate com Agamêmnon. Coão fere seriamente o chefe dos gregos com uma lança. Esse ferimento causado por Coão tirou Agamêmnon do combate.

Enturvou-se-lhe a vista

com dor imensa por causa da sorte do irmão que tombara. 250

Sem que o notasse Agamêmnone pôs-se-lhe ao lado e com a lança

próximo do cotovelo o antebraço no meio feriu-lhe

atravessando-o com a ponta aguçada do hastil reluzente.

Estremeceu Agamêmnone nobre pastor de guerreiros

mas não obstante não quis desistir dos combates e lutas. 255

Sim com a lança que os ventos nutriram a Coão se atira

que pelos pés nesse instante o cadáver do irmão agarrara

e procurava arrastá-lo a gritar pelos mais valorosos.

Mas sob o escudo Agamêmnone o fere com a lança quando ele

ia a puxar o cadáver e o mata por cima do próprio 260

Ifidamante cortando-lhe após a donosa cabeça.

Briseide (Βρισηίς) [v. 59, 282-300] - Briseide, Briseida ou ainda Briseis, cujo verdadeiro nome é Hipodamia, é filha de Briseu – este é descrito na mitologia grega ora como o rei dos Léleges, na Cária, como a personagem é conhecida na maioria das vezes segundo Pierre Grimal (2005), ora como um sacerdote de Apolo (deus da poesia e das artes como um todo) na cidade de Lirnesso (cf. Il. 2.688-94), que fora partilhada pelos gregos em tempos da grande Guerra de Tróia. Briseide era esposa de Mines (ou Minês), que fora morto por Aquiles, o que a submetera ao status de espólio de guerra do ínclito guerreiro grego, tornando-se sua escrava mais bem quista e amada afavelmente pelo filho de Tétis. Na Ilíada (19.282-285), a narrativa apresenta Briseide diante do cadáver de Pátroclo estendido à tenda de Aquiles; ela se debruça sobre o corpo desfalecido do herói em um pranto lastimoso:

Logo que a bela Briseide, tão bela quanto a áurea Afrodite,

viu, pelo bronze cruel trespassado, o cadáver de Pátroclo,

a soluçar fundamente sobre ele caiu, lacerando

as pulcras faces, e o peito, e o pescoço elegante e macio.

Briseide ocupa um papel central na desavença entre Aquiles e Agamêmnon. Sua participação na narrativa, no entanto, é bem modesta. Nos versos seguintes (v. 287-300), em um triste e ao mesmo tempo revelador discurso de lamento pela morte de Pátroclo, encontramos as únicas palavras de Briseide em toda a Ilíada.

Por Antonio Mesquita, Flaviana Silva e Liebert Muniz

Briseide chorando Pátroclo na tenda de Aquiles, por Jean Alaux (1815)

Cegueira, Culpa (Ἄτη) e o mito do nascimento de Héracles [v. 88-130] - Do v. 78 ao 144, começa um longo discurso proferido por Agamêmnon. Três podem ser as partes desse discurso: um proêmio em que o general pede o silêncio dos ouvintes (v. 78-84); uma parte central em que ele reconhece os efeitos da Cegueira ou da Culpa sobre ele e sobre o próprio Zeus (v. 85-133); e uma parte final em que Agamêmnon reconhece a liderança de Aquiles e confirma os presentes prometidos no Canto 9. Notáveis são os efeitos retóricos presentes no discurso: o status da matéria (a desavença entre ele e Aquiles) é creditada às intervenções divinas (a situação), numa defesa de si mesmo; a desavença é removida (remotio) a uma força externa, a verdadeira culpada pelo erro. Se dirigindo a Aquiles e aos demais, diz Agamêmnon (v. 85-94):

Frequentemente inculpavam-me os fortes Argivos; contudo, 85

culpa não tenho nenhuma (ἐγὼ δ οὐκ αἴτιός εἰμι), senão, tão-somente, Zeus grande,

a fatal Moira e as Erínias que vagam nas trevas espessas.

Uma cegueira (ἄτη) feroz me ensejaram tais deuses no peito,

a qual me fez no conselho, ao Pelida privar do alto prêmio.

Como pudera eu reagir? São os deuses que tudo dispõem. 90

A Culpa (Ἄτη) é filha de Zeus, deusa excelsa que os homens conturba,

nume funesto de pés muito leves, que a terra não roça,

ao caminhar, mas passeia por sobre a cabeça dos homens,

ocasionando tropeços. Té seres mais altos enleia.


De acordo com Douglas Cairns (Hom.Ency., vol. 1, p. 108), Ἄτη é mais comum na Ilíada do que na Odisseia e, na maior parte das ocorrências, ou é empregada em um discurso de Agamêmnon, ou a ele se refere. Ainda segundo Cairns, ἄτη, em Homero, é a força que leva os heróis a cair em desastre (cf. Il. 8.237, 24.480; Od. 12.372). No geral, a causa e o efeito de uma ἄτη estão simultaneamente presentes nas narrativas. Em algumas passagens, certa ênfase pode recair sobre os aspectos subjetivos em detrimento dos objetivos. Em Il. 9, os aspectos subjetivos da ilusão desastrosa de Agamêmnon (v. 504-5) têm prioridade sobre os aspectos objetivos da recusa de Aquiles das ofertas levadas pela embaixada (v. 9. 512). Assim, ἄτη inclui a cegueira que leva ao desastre e o resultado do desastre, o começo do processo é diagnosticado a partir de seu fim. Na Ilíada é possível perceber uma conexão entre cegueira e arrependimento; quando a cegueira é revelada, o herói imediatamente é tomado por um profundo arrependimento.

Um notável argumento proferido por Agamêmnon em seu discurso é o mito do nascimento de Héracles (Ἡρακλῆς), a quem a tradição latina convencionou chamar de Hércules, certamente o herói clássico mais difundido pelas águas mitológicas nas quais o imaginário ocidental banha-se adredemente. O seu nome, cujo significado seria “a Glória de Hera”, é uma referência mitológica aos famigerados “Doze Trabalhos de Hércules”, que são um ciclo de trabalhos impostos ao herói em glorificação ao nome da deusa, embora, digam alguns mitógrafos, o seu verdadeiro nome seja Alcides, uma derivação do nome de seu avô paterno, chamado de Alceu,que evocaria, em língua grega, a imagem de uma eminente força física. A priori, descrito como filho de Alcmena e Anfitrião, seu verdadeiro pai é Zeus, que assumira a forma física de Anfitrião, conseguindo iludir a esposa deste e unindo-se a ela em uma propositalmente prolongada noite de amor, concebendo o herói a partir de sua genealogia divina. Em uma das variações de seu mito, diz-se que a Héracles foi concedida a imortalidade quando, ainda uma criança, mamou no seio de Hera por meio do auxílio de Hermes, que o colocara junta à deusa enquanto esta estava adormecida. Subitamente desperta, a deusa repeliu a criança, e o leite que escorrera de si produzira um vasto rastro no céu, o qual denominou-se de Via-Láctea. No manhã seguinte à noite em que Zeus unira-se a Alcmena, Anfitrião uniu-se a esposa, fazendo Alcmena conceber outro filho, o irmão gêmeo de Héracles, Íficles, apenas uma noite mais novo. O rancor de Hera, esposa de Zeus, ao filho de Alcmena é famoso na mitologia clássica. Em um episódio que marca uma diferença entre a origem divida de Héracles e a humana de Ifícles, Hera envia duas enormes serpentes, com a missão de assassinar a criança. Os dois animais dirigiram-se para o berço. O ruído de seu rastejar foi o suficiente para despertar o pequeno Héracles, que se ergue no berço. O movimento da criança divina, fez Íficles despertar; a criança humana, ao ver as duas serpentes, começou a gritar. Tendo ouvido os gritos, Alcmena acordou Anfitrião, que se dirigiu rapidamente, com a espada na mão, para o quarto onde dormiam os pequenos, seguido por sua esposa e alguns soldados. A visão foi espantosa: eles viram o pequeno Héracles estrangulando as duas enormes serpentes, que se contraiam em suas mãos. Ao retirem as espadas para matar as serpentes, Héracles joga-as aos pés de Anfitrião, ambas já sem vida.

Héracles estrangulando as serpentes, por Joshua Reynolds (1786-88)

A narrativa presente na canto 19 da Ilíada (v. 100-106) apresenta outro episódio do rancor de Hera. Trata-se da profecia do nascimento de um filho de Zeus que exerceria comando sobre a região da Argólida e regiões vizinhas. A deusa Hera, guiada por ciúmes, não só atrasa o nascimento de Héracles, mas também antecipa o nascimento de Euristeu, filho de Estênelo, logo, neto de Perseu; Héracles teve dez meses de gestação, Euristeu, sete. A ação de Hera obrigou Zeus a reconhecer Euristeu como rei da Argólida em cumprimento da profecia. A Culpa desempenha papel importante no argumento de Agamêmnon e na narrativa do Canto 19; como resultado, foi expulsa do Olimpo por Zeus como forma de castigo.


Por Antonio Mesquita, Flaviana Silva, Milton Nunes e Liebert Muniz

Taltíbio (Ταλθύβιος) [v. 196, 250] - Taltíbio, arauto de Agamêmnon, figura em importantes momentos na guerra de Tróia. Em narrativas que antecedem a guerra, Taltíbio tem notáveis participações. Era ele quem intermediava, como embaixador, os contatos entre os Reis gregos e o Palácio troiano. Quando da passagem da esquadra grega por Áulide, segundo uma variação, ele teria também acompanhado Ifigênia para o sacrifício. Já nos momentos finais da guerra, Taltíbio participar, juntamente com Odisseu, da busca pelo filho de Aquiles, Neoptólemo, e por Filoctetes, sem os quais, os gregos jamais venceriam a Guerra, segundo as palavras do adivinho Heleno. Nas Troianas, de Eurípides, ele conduziu as mulheres troianas, agora na condição de escravas, até seus novos senhores: ele conduz Cassandra a Agamêmnon, Andrômaca a Neoptólemo e Hécuba a Odisseu. Na Ilíada, durante a guerra, Taltíbio atua como espécie de emissário de Agamêmnon. Em Il. 1. 320-27, ele juntamente com Euríbates, foi encarregado de buscar Briseide na tenda de Aquiles; em Il. 7.273-82, ele atua como árbitro do duelo entre Ájax e Heitor; em Il. 19, é o mesmo Taltíbio que vai até a tenda de Agamêmnon, buscar Briseide para devolvê-la ao Pelida. Taltíbio representa a instituição social dos emissários ou embaixadore; em Esparta havia um santuário dedicado a ele como o protetor da livre circulação dos embaixadores.

Por Milton Nunes e Liebert Muniz

v. 357-61 - Símile: um recurso compositivo característico da épica clássica. Um tipo de metáfora marcada com elementos gramaticais (“como”, “assim como”, “do mesmo modo”, “qual”); Nos poemas homéricos, os símiles estabelecem comparações com elementos naturais. Ilíada 5.554-560:

Tal como dois leões nos píncaros das montanhas

são alimentados pela mãe nas brenhas da funda floresta; 555

e ambos arrebatam vacas e robustas ovelhas,

dando cabo dos cercados dos homens, até que eles próprios

são abatidos às mãos dos homens com o bronze afiado —

assim foram estes dois subjugados pelas mãos de Eneias

e tombaram como se fossem altos pinheiros. 560

Nos versos 357-61 do canto 19, o símile cria uma bela imagem construída por Bóreas. Na mitologia, Bóreas, que representa os ventos frios do norte, é filho da Aurora e Astreu. Por consequência, compõe a geração dos Titãs. Tem por irmãos os ventos Zéfiro e Noto (cf. Teogonia de Hesíodo, v. 378-82). No símile, a saída dos guerreiros armados dos navios é comparada à queda de flocos de neve:

Do mesmo modo que flocos de neve por Zeus enviada

caem sob o impulso do sopro de Bóreas que do éter proveio:

tão numerosos assim dos navios recurvos saíam

cascos brilhantes escudos ornados de umbigos sem conta 360

fortes e belas couraças e lanças compridas de freixo.