Canto IV

Sobre Ilíada 4.141-7:

Como se dá quando serva da Meônia, ou da Cária, de púrpura

tinge o marfim, que vai pôr, como enfeite, nas cambas de um freio,

que deixa exposto na sala a acender a cobiça de muitos

equitadores – a um rei, entretanto, é que está destinado,

para adornar-lhe o cavalo e acender o entusiasmo do auriga:

desta maneira as tuas coxas, ó herói Menelau, se tingiram

de vivo sangue, que às pernas desceu e depois aos maléolos.

Trad.de Carlos Alberto Nunes.


Meônia (cf. Ian C. Rutherford, ‘Maeonians (Μῄονες)’, in Hom.Enc., Vol. 2, p. 494): região ao nordeste da Anatólia, próxima ao Monte Tmolo. No catálogo das naus, Il. 2.864-66, na parte correspondente aos troianos, os meônios são liderados por Ántifo e Mestle, filhos de Talamenes e da ninfa Gigeia; na tradução de Carlos Alberto Nunes:

Ántifo e Mestle guerreiros o mando dos Meônios dividem.

De Talamenes provinham, bem como da ninfa Gigeia.

Esses, os chefes dos Meônios oriundos da fralda[1] do Tmolo.

Recentemente se sugeriu que o termo Maionia pode derivar de uma antiga raiz anatólia que também aparece em textos da Idade de Bronze. O rio Maiandros, Meandro, parece derivar da mesma raiz. O pai de Homero – dizem algumas fontes – teria sido certo Maion (a ilha de Quios, lugar tradicional do nascimento de Homero, fica próxima à Meônia). O símile no canto IV da Il. faz referência a uma “serva da Meônia” que trabalha o marfim para produzir uma peça do freio dos cavalos. Rutherford evoca o comentário de G. S. Kirk, segundo o qual esse detalhe pode ser uma observação pessoal do poeta.

Cária (cf. Ian C. Rutherford, ‘Carians (Κᾶρες)’, in Hom.Enc., Vol. 1, p. 149-50): região ao sudoeste, próxima a Mileto e Meônia, na Ásia Menor, onde uma língua anatólia relacionada ao hitita era falada até o séc. 4 a.C. Os cários, liderados por Nastes e Anfímaco, lutaram ao lado de Príamo; no catálogo troiano, Il. 2.867-8, eles aparecem logo após a descrição dos meônios:

Nastes os Cários comanda, guerreiros de bárbara língua,

homens de Ftiro e Mileto, região montanhosa e de matas;

os da corrente do Meandro e os dos picos do monte Micale,

sob o comando chegaram de Anfímaco e Nastes guerreiros,

Nastes e Anfímaco, os filhos preclaros, do grande Momíone.

Apenas os cários são descritos como os aliados troianos “de bárbara língua”, βαρβαροφώνοι, barbarophónoi.

Marfim (gr. ἐλέφας, eléphas, lat. ebur) – artigo valioso entre os antigos; derivado da presa do elefante asiático ou africano, ou ainda do dente do hipopótamo. Podendo ser utilizado para esculpir em relevo ou não, para adornar e embutir, o marfim foi um artigo de múltiplos fins. Durante a Idade de bronze, floresceram verdadeiras escolas de trabalho com o marfim, embora poucas peças com o marfim do período micênico tenham sobrevivido; em todos os períodos, no entanto, placas e broches de marfim adornavam o mobiliário antigo. Nas estátuas cultuais, os corpos dos deuses eram talhados em marfim (cf. J. Boardman & M. Vickers ‘ivory’, in OCD). Segundo G. S. Kirk (2001, p. 346), o marfim é mencionado apenas duas vezes na Il., na passagem supra e em 5.583, nas duas ocorrências no contexto de equitação; na Od. o marfim é mencionado oito vezes em diferentes contextos. Ainda de acordo com G. S. Kirk (ibidem), nada é sabido especificamente sobre o trabalho com o marfim por parte de mulheres, servas, da Meônia e Cária; o estudioso, então, menciona a possibilidade da familiaridade de Homero com a região. De modo similar ao catálogo troiano, novamente aparecem juntas.

O símile – antes de falar sobre o marfim, G. S. Kirk (op. cit., p. 345-6) dedica um pouco de sua atenção ao símile propriamente dito. Comenta o estudioso:

Menelaos’ thighs and legs become stained with blood as an ivory cheek-piece for a horse is stained with purple by an Asiatic craftswoman: one of the most striking and unusual of Iliadic similes. The bare facts of the comparison are briefly stated in the first two verses, then the next three expand on the desirability of the finished royal possession. This is partly development of the simile-situation for its own sake, but partly, too, it reflects on the subject of the comparison, here by implying the unique value of Menelaos to the Achaeans. (destaques nossos)

Para ele, trata-se de um dos símiles mais surpreendentes e incomuns da Il. Nos dois primeiros versos, os aspectos diretos da comparação são rapidamente colocados; então, nos três versos seguintes ela se estende e termina, de forma um tanto abrupta (na tradução de Carlos Alberto Nunes marcada pela partícula “entretanto”), com um desejo régio. O desenvolvimento do símile por si só parece destacar o outro objeto da comparação, a saber, Menelau, deixando sugerido seu valor para os demais Aqueus. Os versos após o símile, os que enaltecem as coxas de Menelau, segundo G. S. Kirk (op. cit. p. 347), reforçam a ênfase sobre o valor do herói para os gregos.

Não há no comentário de G. S. Kirk nenhuma explicação sobre a possível impressão de os maléolos imitarem as cambas e o sangue que escorre pelas pernas do herói as rédeas do freio. Esse inusitado símile, decerto, tem como argumento principal o valor de Menelau, corroborando Kirk; as imagens que ele desperta em nós leitores são múltiplas e enaltecem o poder da poesia; cabe, ademais, uma pergunta: em que medida essa possível imagem não operaria como um recurso composicional do aedo, ou seja, o poeta inserido numa cultura oral?


Referências:


FINKELBERG, M. (Ed.). The Homer Encyclopedia. 3 Vols. Blackwell: Wiley-Blackwell, 2011. [Abrev. Hom.Enc.]

HORNBLOWER, S; SPAWFORTH, A.; EIDINOW, E. (Eds.). The Oxford Classical Dictionary. 4th ed. Oxford: University Press, 2012. [Abrev. OCD]

KIRK, G. S. (Ed.) The Iliad: a commentary. Vol. 1: books 1-4. Cambridge: University Press, 2001.

[1] Cf. Dicionário Houaiss, ‘fralda’ 4ª acepção: “a base (de monte, serra etc.); aba, falda, sopé.”