Canto IV

Na Lacônia e a emboscada dos pretendentes

Esboço


v. 1-14: Telêmaco e Pisístrato chegam a Esparta, onde encontram Menelau em sua morada celebrando as núpcias do filho e da filha, esta, desde Troia, prometida a Neoptólemo, filho de Aquiles, é preparada para ir à cidade dos Mirmídones, Ftia. Ao filho, Megapentes (gerado com uma serva), será dada a filha de Aléctor.


v. 15-50: os convidados de Menelau se banqueteavam, um aedo e saltadores alegravam a festa. Eteoneu, criado de Menelau, avista a chegada dos visitantes, comunica ao rei e pergunta se eles devem ser bem recebidos. O Atrida exige que os hóspedes sejam bem acolhidos e participem da celebração; Eteoneu obedece. Os hóspedes admiram a festa, são banhados por servas zelosas e recebem mantos e túnicas confortáveis.


v. 51-67: sentados diante de Menelau, Têlemaco e Pisístrato são acomodados em mesa polida, água lustral para as mãos é ministrada, farto banquete é servido aos hóspedes. Menelau recepciona os hóspedes e espera que eles se fartem.


v. 68-112: Telêmaco, dirigindo-se a Pisístrato, espanta-se com as riquezas e com o ouro das paredes da sala do palácio, comparáveis às da morada de Zeus.



v. 78-89: Em resposta, Menelau explica que suas riquezas são o resultado de oito anos errando pelos mares, por Chipre, Fenícia, Egito, Egito e outros lugares prósperos.


v. 90-103: a riqueza contrasta com a tristeza: Menelau lamenta a morte de Agamêmnone pela trama de Egisto e Clitemnestra; o rei lamenta ainda ter perdido, durante a guerra em Troia, o conforto de seu palácio e a companhia de ilustres companheiro.



v. 104-12: nenhum companheiro lhe causa tanta preocupação como Odisseu: nenhum dos gregos sofreu e suportou tantos e duros trabalhos. O futuro ainda reserva muitas aflições, a maior delas: a longa ausência sem que se saiba se permanece vivo; Menelau lamenta a dor de Laertes, de Penélope e de Telêmaco, a quem Odisseu deixou ainda infante.



v. 113-37: as palavras de Menelau despertam saudades de Odisseu e provocam o choro. O rei percebe a reação de Telêmaco, mas hesita entre deixar que Telêmaco fale do pai ou perguntar acerca do que se passa. Helena surge do tálamo, acompanhada por suas servas, usufruindo dos presentes dados por Pólibo, habitante de Tebas. Helena senta em uma poltrona e se dirige ao marido para se informar.


v. 138-77: Helena se espanta com a aparência de Telêmaco, em tudo semelhante a Odisseu. Menelau tem a mesma impressão. Pisístrato confirma as suspeitas do Atrida e de Helena: Telêmaco veio a sua presença em busca de auxílio, conselhos e informações sobre o Odisseu.


v. 178-218: Menelau não parece acreditar que o filho de Odisseu está diante de si. O rei expressa seu apreço por Odisseu, a quem daria uma cidade em Argos para convivessem quando quisessem até o fim de suas vidas. Telêmaco, Helena, Menelau e Pisístrato caem em choro. Pisístrato recomenda que a tristeza não ocupe a mesa; aos mortais resta prestar as devidas honras. O Nestórida lembra o irmão morto, Antíloco, a quem não conhecera. Menelau segue a recomendação de Pisístrato, e todos voltam a banquetear.


v. 219-33: Helena apresenta outra sugestão: que uma droga, presente de Polidamna, esposa de Tão, de terra egípcia, que provoca esquecimentos dos males seja ministrada nas taças de vinho. Assim é feito.


v. 234-64: Helena descreve uma das façanhas de Odisseu: em plena guerra, o itacense, disfarçado de mendigo, entrou em Troia para colher informações. Ninguém o reconheceu, exceto Helena; ela prometeu segredo até que Odisseu alcançasse os navios. O herói não saiu sem antes matar muitos troianos. Helena, arrependida da loucura provocada por Afrodite, planejava voltar para Esparta, para o marido e para a filha que abandonara.


v. 265-89: Menelau confirma as palavras de Helena. Odisseu pode então por termo ao plano do cavalo de madeira. Menelau descreve o momento em que Helena, seguida por Deífobo, rodeou o cavalo de madeira dissimulando as vozes das esposas dos heróis gregos. Foi Odisseu quem conteve os aqueus no interior do cavalo.


v. 290-305: Telêmaco lamenta que tantos feitos do herói não tenham preparado Odisseu a livrar-se da Morte. Telêmaco solicita ao rei a retirada sua e de Pisístrato do banquete para usufruírem do sono. Helena dá ordem às criadas, que aprestam os leitos dos hóspedes. Menelau e Helena também se recolhem.



v. 306-48: ao surgir da Aurora, Menelau questiona a Telêmaco o real motivo de sua ida a Esparta. Em resposta, Telêmaco declara que está em busca notícias de seu pai, seja ela qual for; os pretendentes dilapidam os bens de Odisseu, e Telêmaco não consegue fazer muito. Menelau argumenta que Odisseu, ressurgindo em Ítaca, levaria a morte a todos os pretendentes. O Atrida não ocultará nada.



v. 349-74: O velho marinho, Proteu, e a narrativa do próprio Menelau. Em uma ilha chamada Faro, próxima ao Egito, a frota de Menelau estava retida por vinte dias. A armada do Atrida teria perecido, não fosse a interferência de Idoteia, a filha de Proteu; a deusa vai até Menelau, enquanto seus companheiros buscam alimento. Idoteia pergunta a Menelau por quanto tempo ele, sem plano, na Ilha.



v. 375-93: Menelau explica que sua estadia ali é involuntária, suspeitando que algum dos deuses o castigue. Em resposta, Idoteia revela que apenas Proteu poderá revelar tudo o que ele deseja saber e o necessário para sair de Faro.



v. 394-424: Menelau pede orientações sobre o modo de capturar Proteu. Idoteia assim o faz. A deusa ainda promete auxiliar o Atrida, que deve escolher outros três companheiros. Menelau deve capturar o velho marinho quando ele estiver dormindo em terra; Proteu, para escapar, se metamorfoseará em animais e mesmo em substâncias diversas. Será necessária força. Quando Proteu assumir sua forma primeira, então Menelau deve ceder ao emprego da força, e o velho marinho responderá todas as perguntas.



v. 425-63: tudo se dá conforme as orientações de Idoteia. Proteu se metamorfoseia em leão, draco, pantera, javali, água corrente e árvore. Quando se cansou, o velho marinho começa a falar com Menelau.



v. 464-85: O Atrida deseja saber tudo: qual divindade lhe impede o retorno e como navegar novamente. Proteu revela que Menelau deveria, antes de iniciar a viagem de volta para Lacônia, ter oferecido sacrifícios a Zeus. A única forma de ter aplacar o deus é viajar novamente ao Egito e lá oferecer hecatombes aos deuses.



v. 486-569: Menelau pergunta sobre o destino dos demais aqueus. Proteu conscientiza Menelau do peso de sua resposta. O Atrida ouvirá a descrição das mortes de Agamémnone e Ajaz e do desaparecimento de Odisseu. Ajaz morre em razão de uma blasfêmia, Agamémnone morre covardemente pela trama de Egisto. Quanto a Odisseu, sabe que o pai de Telêmaco se encontra no palácio de Calipso. Por fim, o dialogo entre Menelau e Proteu termina com o vaticínio de um final feliz nos Elísios por sua condição de genro de Zeus.




Notas

v. 10 – Aléctor (Ἀλέκτωρ): segundo escólios antigos, um insigne ancestral mitológico, filho de Pélops e Hegesandra, filha de Amiclas (cf. HEUBECK, A.; WEST, S.; HAINSWORTH, J. B., 1988, p. 194).

v. 13 – Hermíone (Ἑρμιόνη): é a única filha nascida da relação entre Menelau e Helena. Na Odisseia, se registra uma antiga lenda épica segundo a qual Hermíone fora prometida a Neoptólemo, filho de Aquiles. Menelau celebra as núpcias em Esparta, essa celebração é o justo momento em que Telêmaco e seu amigo Pisístrato chegam na Lacedemônia. Uma versão diferente é oferecida pelos tragediógrafos (uma tragédia perdida de Sófocles de título Hermíone). Hermíone fora prometida a Orestes antes da guerra em Ílio. Quando do rapto de Helena, Hermíone tinha apenas nove anos. Durante a guerra, por uma conveniente aliança com o filho de Aquiles, Menelau desfaz sua promessa e concede a filha a Neoptólemo. Orestes, segundo algumas versões, já convivia com Hermíone como esposa. Contava que esse casamento fora celebrado às escondidas de Menelau por Tíndaro. A filha de Helena é o ponto de rivalidade entre o filho de Agamémnone e o filho de Aquiles; Virgílio, em Eneida 3.328-35, registra, na palavras de Andrômaca, outros detalhes dessa rivalidade:

Perdida a pátria nas chamas, levada por mares sem conta,

a dor sofri de parir como escrava, a serviço da imensa

brutalidade do filho de Aquiles, que, havendo corrido 330

atrás de Hermíone, neta de Leda, elegeu uma esposa

lacedemônia e a Heleno seu servo me deu como escrava.

Porém furioso por ver que lhe roubam a noiva extremada,

e pelas Fúrias Orestes tomado, caiu de inopino

sobre o ímpio filho de Aquiles; ao lado das Aras o mata. 335

v. 126 – Pólibo (Πόλυβος): em Od. 4.125-32, rico habitante de Tebas egípcia (cf. ‘Polybos’ in Hom.Ency., 2011, vol. 2, p. 683-4) que dá a Menelau opulentos presentes: duas banheiras de prata, duas trípodes e dez talentos de ouro; Alcandra, esposa de Pólibo, presenteia Helena com uma roca de ouro e um cesto de prata servido com rodas.

v. 198 – “os cabelos cortarmos”: ritual típico do mundo homérico. Está presente no canto 23 da Ilíada, no funeral de Pátroclo; em Il.23.43-53, Aquiles se recusa a seguir as recomendações de Agamémnone de fazer a higiene corporal, e a resposta do Pelida foi a seguinte:

Nunca, por Zeus, que é o melhor e o mais forte dos deuses,

há de, contrário aos costumes, molhar-me a cabeça algum banho,

antes de a Pátroclo pôr na fogueira, erigir-lhe o sepulcro 45

e a cabeleira cortar, porque dor tão profunda como esta

o coração jamais há de angustiar-me, por mais que ainda viva.

Versos à frente, v. 144-53 Aquiles faz menção do prática ritual envolvendo seu pai, Peleu. Aquiles lamenta não poder depositar os cabelos no funeral do pai:

Em vão, divino Esperqueio, meu pai fez o voto fervente

de que ao voltar para a terra de meu nascimento, eu teria 145

de em teu louvor os cabelos cortar e hecatombe sagrada

oferecer em tuas fontes, de ovelhas cinquenta, onde luco

possuis sagrado, no qual foi construído altar odoroso.

Essa, a vontade do ancião; tu, porém, não lhe ouviste o pedido.

E ora que Ftia não devo rever, vou cortar os cabelos 150

e oferecê-los a Pátroclo, para que os leve consigo.”

A cabeleira, depois de falar, entre as mãos deposita

do companheiro, fazendo aumentar nos presentes o choro.

v. 232 – Peone (Παίων ou Παιάν): outras traduções Péon ou Péan. Como se verifica nos poemas homéricos, um deus independente a quem se atribuíam os dons de cura. A habilidade do deus está associada ao uso de certas plantas medicinais. Com o passar do tempo, Peone foi assimilado no culto a Apolo como um epíteto do deus olímpico. Posteriormente Peone foi substituído por Asclépio. Péan também é uma exclamação ritual (ἰέ Παιάν) ou ainda o nome de um canto coral dirigido aos deuses da cura.

v. 276 – Deífobo (Δηίφοβος): é um dos filhos de Príamo e Hécuba e irmão preferido de Heitor. Durante o combate entre Heitor e Aquiles, foi sob a forma de Deífobo que Atena enganou o primeiro e o incitou a resistir, o que causou a sua perdição. Deífobo também reconheceu Páris-Alexandre quando dos jogos fúnebres em que venceu os seus irmãos. Depois de Páris morrer pelas mãos de Filoctetes, Deífobo obteve a mão de Helena, em competição com seu irmão Heleno, um irmão mais velho que ele.

v. 335-40 - Símile: um recurso compositivo característico da épica clássica. Um tipo de metáfora marcada com elementos gramaticais (“como”, “assim como”, “do mesmo modo”, “qual”); Nos poemas homéricos, os símiles estabelecem comparações com elementos naturais. Ilíada 5.554-560:

Tal como dois leões nos píncaros das montanhas

são alimentados pela mãe nas brenhas da funda floresta; 555

e ambos arrebatam vacas e robustas ovelhas,

dando cabo dos cercados dos homens, até que eles próprios

são abatidos às mãos dos homens com o bronze afiado —

assim foram estes dois subjugados pelas mãos de Eneias

e tombaram como se fossem altos pinheiros. 560

Nos versos 335-340, Odisseu é comparado a um leão assustador que trará a morte (vingança) a uma corça e seus filhotes:

Bem como quando, no espesso do bosque, onde um leão formidando 335

leito fizera, uma corça aí deixara seus ternos filhinhos,

para sair a pastar pelos cerros e vales ervosos;

mas o leão para o pouso retorna, passados momentos,

e, logo ali, ambos eles com Morte horrorosa extermina:

do mesmo modo Odisseu a eles todos dará Morte horrível. 340

v. 343 - Filomelida (Φιλομηλείδης): Lendário rei de Lesbos famoso por desafiar todos os transeuntes que passassem pela ilha a lutar contra ele, matando todos os vencidos. O fim dessa lenda se deu quando do encontro com Odisseu (segundo outra versão ele foi morto por Diomedes) quando a armada grega passava por Lesbos rumo a Troia. (GRIMAL, 2005, p. 173)

v. 349 - O velho marinho, Proteu (Πρωτέυς): há duas identificações dessa personagem. Em uma delas, Proteu é um rei egípcio contemporâneo de Menelau (cf. Heródoto, 2.112-15); seu reinado localizava-se em Mênfis: sendo Helena e Páris arrastados por uma tempestade para a costa do Egito, Proteu decide que Páris siga viagem para Troia e Helena e os tesouros espartanos fiquem sob seus cuidados. A despeito das tentativas de Príamo, os gregos não acreditaram nessa versão e resolveram atacar Ílio. Terminada a guerra, perceberam que Helena de fato não estava em Troia, mas foram encontrá-la no Egito. Eurípides, na peça Helena, retoma versão parecida: Proteu, rei em Faro, acolhe e protege Helena e manda para Ílio com Páris um simulacro de Helena modelado por Hera. A segunda identificação é a conhecida em Homero. Proteu é o pai de Idoteia, e uma divindade marinha; um pastor de focas que habitava uma região marítima próxima a Faro; entre suas habilidades, estão o dom da metamorfose e o da profecia. Essa versão do mito é seguida por Virgílio nas Geórgicas 4.387-527: nela, Aristeu, filho da ninfa Cirene, perdeu sua colmeia de abelhas; por orientação da mãe ele deve procurar o velho marinho para descobrir a causa da perda e a possível restauração da colmeia. Proteu revela que a causa está relacionada à morte de Eurídice, amada de Orfeu. Apenas um ritual, a chamada bougonia, pode desfazer o erro de Aristeu e restaurar sua colmeia.

Por Liebert Muniz