Escultura & Texto

Figura 01: Nossa Senhora das Dores em vista frontal

Fonte: https://www.maedasdoresjuazeiro.com/basilica-menor/a-santa-das-dores-e-do-joaseiro/ Acesso em 03/02/2022.


Figura 02: Nossa Senhora das Dores (detalhe)

Foto: Jadilson Pimentel, 2021


Figura 03: Detalhe do retábulo-mor com imagem de Nossa Senhora das Dores atada por um cíngulo.

Foto: Jadilson Pimentel, 2021



VIRGEM MÃE DAS DORES,

A VIRGEM DOLOROSA DO JUAZEIRO DO

“PADIM CIÇO”, CE


Escultura: Nossa Senhora das Dores

Autoria/atribuição: Oficina Francesa – La Maison Raffl et Cie

Técnica: Papier mâché ou gesso moldado e policromado

Dimensão aproximada: 1,65 cm altura

Origem: Paris, França

Procedência: Basílica Santuário Nossa Senhora da Dores,

Juazeiro do Norte, CE

Época: Segunda metade do século XIX


A escolha da imagem, Nossa Senhora Dolorosa (Figura 01), padroeira do Juazeiro do Norte, para integrar o Projeto Singularidades, nasceu do interesse em abordar acerca da cultura material do/no Ceará, produção tão rica e expressiva, conquanto bastante esquecida.

Nesse sentido, falar sobre essa peça singular, a imagem joia do Vale do Cariri1, é trazer à baila, um catolicismo de resistência, onde romeiros, beatos e retirantes, revivem um “cristianismo das origens” calcado na obediência, trabalho e oração. A Mater Dolorosa que aqui se evidencia, apresenta-se transida de pungente dor e, ao mesmo tempo, serena. Ela é o espelho do sertanejo tão espoliado pelos poderes vigentes. Nela, o peregrino se enxerga e se irmana.

Foi em torno do culto à Senhora das Dores que Juazeiro do Norte se formou. Provavelmente, essa devoção arregimenta-se pelos idos de 1827, quando o Brigadeiro Leandro Bezerra Monteiro, fundador da localidade Tabuleiro Grande (atual Juazeiro), ergueu a pequena capela que foi consagrada a Nossa Senhora das Dores, cuja imagem2 primeva foi encomendada em Portugal.

Cerca de 39 anos depois, quando o Padre Cícero chegou a esta localidade para exercer seu ministério, em 11 de abril de 1872, contava o povoado com cerca de 35 casebres formados em torno da ermida. Iniciado no seu mister religioso, a povoação passou a se desenvolver, e, com isso, houve a disposição de Cícero em coordenar uma nova obra: substituir a pequena e deteriorada capela por uma igreja maior e mais compatível com o número de fiéis.

Continuava como padroeira da nova edificação a pequena e antiga imagem de nossa Senhora das Dores, sendo esta substituída pela escultura atual que se encontra no altar-mor da Basílica Menor do Juazeiro do Norte. Benzida em 18 de setembro de 1887, Cícero Romão Batista fez a entronização do novo orago com muita festividade. Adquirida pelo padre em Paris, apresenta tamanho natural, confeccionada em (papel machê) ou gesso moldado e policromado em azul e bordô, possui manto com barras decorativas em arabescos que imitam tecidos diversos: brocados, tafetás, adamascados, dentre outros.

A Virgem Mãe das Dores, aqui retratada, repercute em sua face uma expressão de dor e altivez diante do sofrimento. Os fiéis são concordantes em afirmar que seu olhar tão vivo inspira, paulatinamente, a devoção de quem a contempla. É uma imagem bastante realista, e, mesmo sofrendo influência do estilo saint-suplicien apresenta características iconográficas mais livres: junção das mãos muito abaixo do peito onde contém o coração imaculado ferido por sete espadas, expressão de serenidade diante da dor, dentre outras.

É a imagem símbolo dos romeiros do Padre Cícero, a peça sacra que o religioso deixou como referencial. Foi diante dela que ocorreram inúmeros fatos, em 1889, os quais vieram a servir como divisor de águas entre o catolicismo oficial e o popular. Um deles ficou conhecido como “Milagre da Hóstia do Juazeiro”; quando o padre Cícero, ao dar a comunhão à beata Maria de Araújo, por cerca de quarenta e sete vezes, as várias eucaristias teriam se transformado em sangue. A igreja da época, tomada pela vigilância e pela disciplina do movimento ultramontano, suspendeu as ordens sacerdotais do padre, em 1894, por causa do suposto milagre que se repetiu durante as missas celebradas.

Repercutidas as notícias sobre o sangramento da hóstia, a cidade passou a ser centro de peregrinação e o padre tornou-se um santo popular venerado pelos nordestinos. “A devoção por esse espaço era tamanha que os romeiros se recusavam a entrar na cidade caso soubessem que a igreja estava fechada, por ser esta, por obrigação, o primeiro lugar que deveriam visitar”. (PAZ, 2014, p. 139) Com a morte de Cícero em junho de 1934, o número de seguidores aumentou significativamente. Em frente à matriz era recorrente a presença dos Caceteiros ou Cerca-Igrejas3 e dos beatos que pregavam e propagandeavam os ensinamentos aprendidos com o Patriarca do Juazeiro.

Nesse ínterim, como a paróquia estava vacante, desde 1925, ocupou o cargo o Monsenhor Pedro Esmeraldo, que em seus sermões insurgia-se contra os ateus e comunistas dizendo sempre sobre uma possível destruição da igreja por parte destes. Em setembro de 1934, Padre Esmeraldo sofreu um mal súbito em meio a sua pregação, vindo, depois, a óbito. Tal episódio foi o estopim para que os protetores da Igreja das Dores se aglutinassem, no adro da Matriz, armados com enxadas, bastões, facões, foices, dentre outros, temendo as profecias do Monsenhor.

Padre Juvenal, o novo sacerdote, que ficou como encarregado da paróquia, foi violentamente agredido pelos revoltosos que se amotinaram no interior do templo. Insuflados por boatos de transferência da imagem de Nossa Senhora das Dores para a freguesia do Crato, os caceteiros traçaram estratégias de modo que um grupo seleto protegeria e circundaria a imagem com um rosário e cordas, dentro da igreja, e outros ficariam como sentinelas, nas portas, controlando a entrada das pessoas. “Para desocupar a igreja houve intervenção violenta da polícia, a quem resistiram usando os mesmos bordões, foices e pedras empregadas contra o Padre Juvenal. Essas querelas resultaram em seis mortes e inúmeros feridos. O Santíssimo foi retirado para a freguesia do Crato, com indescritível pesar dos fiéis, e a igreja ficou fechada até dezembro de 1934”. (BARROSO, 2005, p. 18)

Na voz dos romeiros e dos trovadores, o clero local nunca aceitou a crença popular do sertanejo, tratando-a, sempre, pelo prisma das práticas supersticiosas. Como o culto à Mae das Dores cresceu substancialmente após a morte de Cícero, constata-se que as autoridades religiosas queriam retirar a imagem da padroeira porque os romeiros continuavam afluindo até o altar para venerar a relíquia sagrada deixada pelo padre: a imagem de Nossa Senhora das Dores.

Após a década de 1934, a escultura receberia um elemento novo, o qual faria parte de sua visualidade: o cíngulo que a envolve e forma cordas; item logo abaixo do coração trespassado por espadas (Figuras 02 e 03). O símbolo que aí se observa foi presente das senhoras da época. Referência imprescindível na vida dos romeiros; representação que conta acerca da permanência da imagem em sua casa. Um novo elemento iconográfico da Dolorosa do Juazeiro? Ou um elemento marco referencial das memórias e devoções populares que fazem do Juazeiro do Norte um dos maiores centros religiosos do planeta?

Jadilson Pimentel dos Santos

Tucano, 14 de fevereiro de 2022.


Notas:


1 Situado no sul cearense, é um vasto arco de verdes serras e vales férteis; um oásis encravado no árido chão nordestino.

2 Trazida de Portugal por vontade do Brigadeiro Leandro Bezerra, foi venerada enquanto padroeira por cerca de sessenta anos e encontra-se hoje sob os cuidados do reitor da Basílica. Chamada pelo povo de Caritá, é uma peça em madeira policromada, medindo setenta e cinco centímetros de altura, sendo uma imagem de feição barroca.

3 Outro acontecimento histórico que ocorreu diante da imagem, e ainda pouco discutido, foi a chamada Noite dos Caceteiros ou Revolta dos Caceteiros. Os caceteiros ou “Cerca-igrejas” eram pessoas simples, camponeses do Cariri, que tinham fama de manusear com habilidade extraordinária um bastão de madeira em ardilosos combates corpo a corpo.

Referências Recomendadas:


BARROSO, F. de Andrade. Igrejas do Ceará. Fortaleza: Premius, 2008.

PAZ, Marinho. Cultura, política e identidades: Ceará em perspectiva. Volume 1. IPHAN-CE, Fortaleza, 2014.



Autor(a):

Jadilson Pimentel dos Santos

pimenteljadilson@gmail.com

https://orcid.org/0000-0002-7515-961X

http://lattes.cnpq.br/6253213323147662

Data de recebimento: 15/02/2022

Data de aprovação: 16/02/2022