Escultura & Texto

Figura 01: : Esculturas de Menino Deus atribuídas a Veiga Valle

Fonte: Quadro elaborado pela autora, 2021.


Figura 02: : Cânone infantil - Stephen R. Peck (1951)

Fonte: PECK, 1951, p. 216.


Figura 03: Cânone infantil - Juan del Arphe y Villafañe (1585)

Fonte: NUNES, 1767, p. 40.



MENINO DEUS DE

VEIGA VALLE:

ANÁLISES DE CÂNONE INFANTIL


Escultura: Menino Deus

Autoria/atribuição: José Joaquim da Veiga Valle (1806-1874)

Técnica: Escultura em madeira dourada e policromada

Dimensão aproximada: variação de 14 a 30cm de altura

Origem: GO

Procedência: Museu de Arte Sacra da Boa Morte/GO

Época: século XIX


As representações de Jesus Menino são bastante comuns na imaginária sacra desde o período colonial até os dias de hoje. Aparecem como atributo de outras imagens como por exemplo, o popular Santo Antônio, as diversas representações da Virgem Maria com o Menino, ou mesmo nos grupos escultóricos chamados Sagrada Família e nos presépios.

Acredita-se que o culto à representação do Menino como peça principal tenha chegado ao Brasil por meio de irmandades religiosas femininas portuguesas. Essa devoção fez com que a produção de esculturas sacras de Menino Jesus se expandisse para regiões não só do litoral brasileiro, mas também pelo interior do país, à medida que novas vilas eram fundadas.

Na região onde atualmente se localiza a cidade de Goiás, temos o nome de José Joaquim da Veiga Valle (1806-1874) como um artista importante do século XIX, que produziu esculturas sacras em madeira dourada e policromada e, dentre suas obras, encontramos algumas imagens de Jesus Menino retratado de pé e individualizado cuja iconografia é denominada Menino Deus.

Observamos que essas esculturas apresentam, de modo geral, proporção anatômica, cânones clássicos compatíveis às figuras infantis, formas arredondadas, sutileza nos detalhes da talha, ausência de demarcação óssea proeminente na anatomia, harmonia na distribuição e dimensão dos olhos, nariz e boca. A policromia possui textura lisa e polida na carnação, sobrancelhas pintadas e douramento nos cabelos.

Em se tratando de proporcionalidade, a análise acerca dos cânones das imagens infantis é objeto de nosso estudo. Segundo os preceitos clássicos, as esculturas que representavam adultos variavam entre 7,5 a 8,5 vezes a altura da cabeça. No que se refere às imagens infantis, Eduardo Etzel (1995, p. 55) afirma que, “ao nascer esta relação é de quatro cabeças para a altura do corpo, passando na infância a quatro e meia”. Esse autor baseou-se nos estudos apresentados por Stephen R. Peck (1951) nos quais estabelece que nos primeiros anos de vida, a medida do corpo corresponde a quatro vezes a altura da cabeça. Dois anos depois, essa relação passa a equivaler a quatro vezes e meia. Aos oito anos, o comprimento do corpo tem cerca de seis vezes e meia a medida da cabeça. Finalmente, na puberdade, essa proporção se aproxima de sete vezes a altura da cabeça (PECK, 1951, p. 216). (Figura 2).

Contudo, o português Filipe Nunes (1767), em seu livro “Arte da Pintura, Simetria e Perspectiva”, ressalta que o cânone definido já no século XVI por João Darfe1, para representar um menino aos três anos de idade, corresponde à medida de cinco rostos2 (Figura 3). O autor espanhol vai além dos cânones infantis, ao estabelecer que “a carne das crianças deve ser arredondada e com algumas dobras ou pregas de pele, e destas, duas devem ser colocadas nas coxas por baixo das nádegas, outras devem ser vistas nos pulsos e gargantas, e covinhas nos joelhos e cotovelos”3 (ARPHE y VILLAFAÑE, 1585, p. 164, tradução nossa). Tais características estão presentes nas imagens infantis de Jesus atribuídas ao artista goiano.

Analisando as imagens de Menino Deus atribuídas a Veiga Valle (Figura 1), nota-se que a maioria das esculturas tem o cânone de aproximadamente 4,5 cabeças, de acordo com parâmetros clássicos estabelecidos para a infância.

Além disso, nota-se na confecção de algumas imagens a posição de contraposto4, o que denota um conhecimento técnico apurado do artista quanto à representação da anatomia humana. As pesquisas sobre Veiga Valle não são conclusivas quanto ao seu aprendizado artístico. Existem algumas conjecturas de quem poderia ter sido seu mestre, como o padre Manoel Amâncio da Luz, por exemplo, ou até que teria sido um “autodidata” ou um “inspirado”, a partir da observação de obras devocionais pré-existentes nas igrejas de Goiás.

Fato é que, independentemente de como aprendera os ofícios a que lhe são atribuídos, podemos levantar a hipótese de que o artista goiano teria também, acesso a “modelos” da representação de Meninos Deus, seja por meio de esculturas ou gravuras, uma vez que há informações de que o artista não se afastou de Goiás.

A obra completa atribuída a Veiga Valle demonstra a excelência da oficina do artista goiano de meados do Século XIX, que perpetuou a obra produzida no século XVIII.

Ana Carolina de Souza Cruz

Brasília, DF, 26 de novembro de 2021.


Notas:


1 Filipe Nunes “aportuguesou” o nome do artista espanhol Joan de Arfe y Villafañe (1535-1603), que foi ourives, escritor e escultor. Escreveu sobre os modelos e teorias artísticas espanholas durante a segunda metade do século XVI, relacionadas à escultura, à arquitetura e à ourivesaria (tradução nossa). Disponível em: http://dbe.rah.es/biografias/7765/juan-de-arfe-y-villafane. Acesso em: 27 mai. 2021.

2 O autor não utiliza o termo cabeças, mas sim rosto que “se entende, do nascimento do cabello da testa, até a ponta da barba, e não se conta mais hum terço, que vay por cima da testa” (NUNES, 1767, p. 35-36).

3 “La carne de los niños à de hazerse redonda y con alguna arruguillas y de estas an dos dellas de ponerse en los muslos debaxo las nalguillas otras en las muñecas an de verse y en la garganta, pies y pantorrillas en rodillas y cobdos van hoyuelos que no se muestran dentro huesezuelos” (ARPHE Y VILLAFAÑE, 1585, p. 164). Disponível em: https://www.sedhc.es/bibliotecaD/1585_Juan_Arphe_varia_commensuracion.pdf. Acesso em: 28 mai. 2021.

4 Segundo Hill (2012. p. 2), “[...] o contraposto é a postura do corpo humano de pé e em repouso. Nela, enquanto o peso do corpo assenta sobre uma das pernas (perna apoiada), a outra, estando livre, desempenha a função de um esteio elástico, para assegurar o equilíbrio do corpo, possibilitando uma representação anatômica dinâmica e natural. Na avaliação do contraposto, é importante observar que o ponto formado pela articulação entre a perna apoiada e a bacia fica mais alto que o da articulação da perna livre. Para compensar o desnível da bacia, o ombro do lado da perna apoiada desce, fazendo quem o outro suba”.


Referências Recomendadas:


CRUZ, Ana Carolina de Souza; QUITES, Maria Regina Emery.

Meninos de Veiga Valle: um olhar aprofundado sobre as obras do artista. 2021. 295 p., Dissertação (mestrado) –

Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Belas Artes.

ETZEL, Eduardo. Anjos barrocos no Brasil: angeologia.

São Paulo: Kosmos: Giordano, 1995.

HILL, Marcos César de Senna. Forma, erudição e contraposto na imaginária colonial luso-brasileira. Boletim do CEIB, Belo Horizonte v. 16, n. 52, jul. 2012. Disponível em: https://www.eba.ufmg.br/boletimceib/index.php/boletimdoceib/article/view/83/60.

Acesso em: 30 dez. 2021.

NUNES, Filipe. Arte da pintura, symmetria e perspectiva.

Lisboa: Officina de João Baptista Alvares, 1767. Disponível em: https://purl.pt/777/4/ba-1604-p_PDF/ba-1604-p_PDF_24-C-R0150/ba-1604-p_0000_capa-capa_t24-C-R0150.pdf.

Acesso em: 30 dez. 2021.

PASSOS, Elder Camargo de. Veiga Valle: seu ciclo criativo.

Goiás, GO: Museu de Arte Sacra, 1997.

PECK, Stephen Rogers. Atlas of Human Anatomy for the Artist. Oxford Univesity Press: New York, 1951, p. 216.

Disponível em: https://pdfslide.net/documents/stephen-roger-peck-atlas-de-anatomia-humana-para-artistas.html.

Acesso em: 30 dez. 2021.

SALGUEIRO, Heliana Angotti. A singularidade da obra de Veiga Valle. Goiânia, Universidade Católica de Goiás, 1983.

Autor(a):

Ana Carolina de Souza Cruz

carulasc@yahoo.com.br

https://orcid.org/0000-0003-2007-3103

http://lattes.cnpq.br/5743587659001044

Data de recebimento: 26/11/2021

Data de aprovação: 25/12/2021