Escultura & Texto

Figura 01: São Moisés Anacoreta, Igreja do Carmo, Olinda.

Acervo IPHAN – Recife.


Foto: JORDÃO, 2019, p.103

Catálogo MASPE, Editora Cepe,

SÃO MOISÉS ANACORETA: SANTO NEGRO CARMELITA, RECIFE, PE

Escultura: São Moisés Anacoreta

Autoria: desconhecido

Técnica: madeira policromada e dourada

Dimensão aproximada: 140 x 80 x 53 cm

Procedência: Igreja de N. Sra. do Rosário dos

Homens Pretos, Recife, PE

Época: Século XVIII


A Ordem Carmelita, dentre todas as instituições religiosas fundadas na Idade Média, foi a que teve mais necessidade de demonstrar a sua longevidade de criação, relacionando-se ao Profeta Elias. Na opinião de Santiago Sebastián, para se entender o programa iconográfico da ordem carmelita, é necessário conhecer as querelas em que a Ordem esteve envolvida, devido exatamente à pretensão de ser a mais antiga da cristandade1 .

Nos séculos XVII e XVIII percebeu-se a necessidade de inserir no roll dos santos venerados pela Igreja alguns de origem africana, fato que veremos ocorrer principalmente entre Franciscanos e Carmelitas. Portanto, santos negros que chegaram ao Brasil, em particular na capitania de Pernambuco, via Portugal, podemos elencar os franciscanos São Benedito e Santo Antônio de Noto (Categeró); os carmelitas Santo Elesbão, Santa Ifigénia e São Moisés Anacoreta; e ainda, o rei mago Baltazar e um negro diácono identificado como São Filipe, que abordaremos em um texto futuro. Foram cultos importantes pois eram exemplos de negros santificados, servindo de propaganda da fé e de vida cristã entre a numerosa população de escravizados, tanto do reino, quanto da colônia.

Neste pequeno aporte vamos destacar o terceiro santo negro carmelita, pouco difundido no Brasil, pois só conhecemos duas esculturas e nenhuma pintura: São Moisés Anacoreta. As duas obras estavam no fim do século passado no Acervo do IPHAN (5ª SR) de Recife, identificadas como provenientes da Igreja do Rosário e do Carmo de Olinda, em Pernambuco. (Figura 01)

As duas esculturas apresentam o hábito carmelita e repartem a mesma gestualidade, com sutis diferenças fisionômicas, o da Igreja do Carmo tem o rosto forte de um homem maduro, e possivelmente serviu de inspiração para a peça do Rosário de Olinda, que tem a fisionomia mais jovem e idealizada. Este segundo, de volta a Igreja do Rosário de Olinda, figura em um dos nichos laterais do altar-mor, consagrado a Virgem do Rosário, ao lado de Santo Elesbão, e ambos apresentam a mesma fatura, podendo ser de uma mesma autoria.

Portanto, vamos nos deter na obra da Igreja do Carmo, peça erudita, de aproximadamente 1.40 cm de altura, da primeira metade do século XVIII. A escultura foi confeccionada em madeira e apresenta vestígios de uma boa policromia, incluindo douramento. A cabeça erguida tem o olhar forte direcionado para o alto, e características fisionômicas não idealizadas, podendo ter sido inspirada em um tipo regional. O gesto dos braços é largo, com o da direita aberto a altura do quadril, enquanto o da esquerda está posicionado ligeiramente mais alto, a altura do peito. As mãos apresentam a postura de segurar um objeto, a da direta leva uma disciplina (pequeno chicote de até sete cordas simbolizando os 7 pecados ou as 7 virtudes) enquanto a da esquerda perdeu seu atributo.

Portanto, sabemos que São Moisés é um santo maduro originário da África e no Brasil foi venerado pelos carmelitas, o atributo é um instrumento de penitência, conhecida como disciplina, atributo específico dos santos anacoretas ou de vida muito austera. Nas principais listas de santos carmelitas a sua identificação não é conclusiva, e nos dicionários de santos, esse nome refere-se quase sempre ao Profeta Moisés do Antigo Testamento. No entanto, o dicionário de Attwater faz menção a um Moisés, o Negro:

Moíses era etíope, homem de grande força física e caráter rufião. Trabalhava para uma família egípcia mas foi despedido por suas pilhagens e depredações. Tornou-se, então, chefe de uma quadrilha de ladrões. Não se sabe como se deu a conversão desse homem velhaco, mas ela aconteceu de fato. Moisés converteu-se tão completamnete que se juntou a alguns monges no deserto de Skertis. A tentação do pecado não havia desaparecido mas ele perseverou valentemente, e com tal efeito, que foi escolhdo para o sacerdócio. Após a ordenação, vestido todo de branco, o bispo lhe disse: Agora o homem negro tornou-se branco. Moisés replicou: Apenas externamente. Deus sabe que, por dentro, ainda sou negro. Moisés morreu quando o mosteiro foi atacado pelos berberes, de quem se recusou a se defender. Ainda há monges vivendo no mosteiro onde São Moisés foi enterrado, Dair al-Baramus, em Wadi Natrum2 .


Procurando a referência ao Mosteiro, onde ainda hoje encontra-se as suas relíquias, foi possível identificar algumas publicações. Destacamos em particular a de Tatjana Starodubcev que aborda a história da veneração do Santo Moisés, o Etíope ou o Negro, a partir de textos gregos, copta, sírio, árabe e da antiga igreja Eslava. A autora analisa e relaciona as representações do santo na Idade Média e sua ligação com o Mosteiro de Baramus no deserto de Sketis, no norte do Egito3.

Nestas representações medievais o santo figura com a cor de pele escura e com cabelos e barbas grisalhas, a aparência é de um homem forte, porém idoso, o que o afasta da idealização da representação pelos carmelitas. Para finalizar, sem concluir, no Martirológio Romano4 , ele é lembrado como um famoso salteador que se fez Anacoreta “insignis anachoreta”, daí vem a sua alcunha anacoreta, sendo desta forma incorporado pela Ordem do Carmo. É o exemplo perfeito da transformação do homem pecador em obediente e penitente, servindo de exemplo para a população, em particular a negra do Brasil. Portanto, acreditamos que esse parece ser mais um dos casos de apreensão de um rol de santos desconhecidos, ou quase desconhecidos, pelos carmelitas, a fim de legitimar a antiguidade da Ordem.

Fátima Justiniano

Niterói, Rio de Janeiro, 30 de outubro de 2021.


Notas:


1SEBASTIAN, Santiago. Contrareforma y barroco. Madrid: Alianza editorial, 1989, p. 240. A Ordem foi questionada pela ala erudita da Igreja (Bolandistas), durante boa parte do período moderno até o assunto ser resolvido pelo Papa Bento XIII, que, em 1727, permitiu a veneração ao profeta Elias, colocando, inclusive, na Basílica de São Pedro, uma escultura do santo, junto aos fundadores das outras ordens religiosas.

2 ATTWARD, Donald. Dicionario de santos.

São Paulo: Art Editora, 1991, p. 216.

3 STARODUBCEV, Tatjana. St. Moses the Ethiopian or the black. Cult and representation in the Middle Ages. Janeiro, 2019. Disponível em: (PDF) St. Moses the Ethiopian or the black. Cult and representation in the middle ages (researchgate.net)

4 “Natural de Ethiópia, o qual de famoso salteador se fez um afamado Anacorea, e converteu a muitos ladrões, e os levou consigo para o seu Mosteiro.

Martirológio Romano. Lisboa: Na regia officina Sylviana, e da

Academia Real, 1748, p. 219.


Referências Recomendadas:


ATTWARD, Donald. Dicionário de santos. São Paulo: Art Editora, 1991.

SEBASTIAN, Santiago. Contrareforma y barroco.

Madrid: Alianza editorial, 1989,

STARODUBCEV, Tatjana. St. Moses the Ethiopian or the black. Cult and representation in the Middle Ages. Janeiro, 2019. Disponível em: (PDF) St. Moses the Ethiopian or the black. Cult and representation in the middle ages (researchgate.net). Acesso em 22 -10-2021.

MARTIROLÓGIO Romano. Lisboa:

Na regia officina Sylviana, e da Academia Real, 1748.

Data de recebimento: 28/10/2021

Data de aprovação: 30/10/2021