Escultura & Texto

Figura 1: Nossa Senhora da Boa Morte, e detalhe, século XIX. Igreja São Francisco de Assis, Rio Pardo/RS

Foto: Gabriela Luz, 2019


Figura 2: Vista da coleção de vestidos de noiva doados à imagem de Nossa Senhora da Boa Morte. Museu de Arte Sacra de Rio Pardo, Igreja de São Francisco de Assis, Rio Pardo/RS

Foto: Gabriela Luz, 2019


Figura 3: Sapatos bordados pertencentes à imagem de Nossa Senhora da Boa Morte. Igreja de São Francisco de Assis, Rio Pardo/RS.

Foto: Gabriela Luz/2019



NOSSA SENHORA DA BOA MORTE E A LENDA DA NOIVA DE RIO PARDO, RS


Escultura: Nossa Senhora da Boa Morte

Autoria/Atribuição: Não identificada

Técnica: Escultura de vestir em madeira policromada

Dimensão aproximada: 150 cm de largura

Origem: Não identificada

Procedência: Rio Pardo/ Rio Grande do Sul

Época: Século XIX


Na Igreja de São Francisco de Assis, localizada na cidade de Rio Pardo no Rio Grande do Sul, encontra-se a imagem de vestir de Nossa Senhora da Boa Morte (Figura 1), cuja iconografia foi atrelada à imagem das noivas por conta de uma lenda local. Trata-se de uma escultura em madeira policromada. A talha possui características realistas, assim como a policromia, da qual podemos destacar a habilidade empregada na realização da carnação do rosto. A representação da pele é homogênea, sem marcas ou excessos, e com as bochechas levemente rosadas. Os cílios são desenhados fio a fio, e as sobrancelhas finas formam arcos sobre os olhos. As mãos são o centro da imagem, o elemento que atrai o olhar em um primeiro momento. Os dedos são bem delineados, as falanges são finas e as unhas possuem formato oval.

A escultura encontra-se colocada em um nicho em formato retangular, projetado especificamente para ela. Ele possui o tamanho ideal para a acomodação da imagem, é decorado com renda e damasco, e há em um travesseiro no qual a cabeça da imagem repousa. Há uma porta de vidro que, ao mesmo tempo que a protege, permite-nos visualizá-la.

Nossa Senhora da Boa Morte é também chamada pelo nome do evento que representa: o Trânsito de Nossa Senhora. Trata-se de uma figura deitada e com mãos unidas em posição de oração. Essa devoção representa “a dormição de Maria”, ou seja, a passagem da Virgem Maria da vida terrena para a glória dos céus. Entretanto, não se trata de uma representação mortuária: é muito mais um sono profundo, marcado pelas pálpebras semicerradas e pela boca entreaberta.

A iconografia de Nossa Senhora da Boa Morte faz parte da narrativa sobre a "Assunção de Maria", cunhada a partir de um texto apócrifo que, em sua versão latina, intitula-se Aprocrifum de assumptione Virgini, atribuído a São João Evangelista. Esse texto, de fato, foi escrito em grego no século IV, mas especialmente popularizado pela Legenda Áurea, de Jacopo de Varazze, publicada por volta de 1260. Apesar de amplamente divulgada entre os fiéis e representada por artistas e artífices muitos séculos antes, a Assunção da Virgem foi proclamada dogma da Igreja Católica apenas em 1° de novembro de 1950, através da Bula da Constituição Munificentissimus Deus, proclamada por Pio XII1 . O que era discutido e representado desde o século V, e já havia se tornado devoção, foi reconhecido como doutrina da Igreja Católica apenas no século XX. (VARAZZE, 2020, p.657-681)

Nesse ponto, é importante esclarecer que o documento escrito pelo papa que proclamou o dogma não descreve com riqueza de detalhes como, exatamente, “teriam ocorrido os eventos”; tampouco reproduz textos apócrifos. O que baliza as iconografias desse dogma, surgidas muito antes de sua oficialização, são os relatos apócrifos e as construções populares.

Nesse sentido, encontramos uma singular imagem de Nossa Senhora da Boa Morte, que é associada à lenda da noiva de Rio Pardo. Conta-se que uma moça em idade de casamento, filha de militar de alta patente, teria se interessado por um rapaz que avistara em uma missa, e teria proposto aos pais contrair matrimônio com o jovem. Fez promessa à Nossa Senhora da Boa Morte: se conseguisse casar com seu escolhido, doaria seu vestido de noiva à imagem da Igreja de São Francisco de Assis. O pai, observando que se tratava de um soldado raso, sem a perspectiva financeira ou origem familiar desejável para sua abastada filha, foi contra o enlace. Para evitar que tivessem contato, mesmo sem sua permissão, providenciou que o soldado fosse transferido para outro posto.

Consternada, a menina iniciou uma greve de fome. Ao perceber que a filha definhava, o pai decidiu chamar o soldado de volta para Rio Pardo e permitir que os jovens contraíssem núpcias. Os preparativos foram realizados, o vestido cosido, mas já era tarde: fraca, a noiva mal conseguia caminhar até o altar, e morreu nos braços de seu amado, na porta da Igreja de São Francisco de Assis, após trocar as alianças ali mesmo. Sua mãe, mesmo diante da dor pela perda da filha, resolveu cumprir a promessa feita pela menina à Nossa Senhora da Boa Morte e doou seu vestido de noiva para vestir a imagem pertencente à igreja onde se realizou o casamento. Curiosamente, até hoje muitas mulheres doam seus vestidos de noiva à imagem, que já possui um guarda-roupa com 24 vestidos, todos expostos no museu anexo à igreja (Figura 2).

A imagem de Nossa Senhora da Boa Morte encontra-se ricamente vestida com um dos vestidos de noiva doados por devotas. O vestido costuma ser trocado apenas quando está com sujidades aparentes. A última troca foi realizada em 2014. Possui sapatos dourados e bordados, mais antigos que o vestido, aparentemente datados do século XIX (Figura 3). Possui cabeleira natural com penteado de tranças – também doada por devota –, sobre a qual está colocado o véu e a grinalda. Entre os dedos, carrega um terço de contas cristalinas.

É possível encontrar imagens de Nossa Senhora da Boa Morte com vestidos brancos, que podem remeter à concepção de noiva que circula atualmente na cultura ocidental. Todavia, nem todas elas estão explicitamente ligadas à figura da noiva como está, através da lenda, a escultura localizada em Rio Pardo.

Pode-se pontuar alguns paralelos existentes entre a noiva e Nossa Senhora da Boa Morte e que são muito bem representados pelo vestido branco. O casamento é, no século XIX – época em que, possivelmente, a imagem foi esculpida –, o rito de passagem mais importante da vida de uma mulher, pois é a abertura para sua vida adulta, o momento em que desempenhará o papel para o qual “foi destinada”: constituir uma prole e educá-la. Tanto Nossa Senhora da Boa Morte como a noiva vivem ou simbolizam um rito de passagem para uma nova vida, sendo a primeira a vida no paraíso, e a segunda a vida conjugal. Segundo Heller, a cor branca possui caráter feminino, nobre e de fraqueza, representando o silencioso, tranquilo e passivo (HELLER, 2013, p. 280). Essas características remetem muito a como Nossa Senhora é descrita dentro do catolicismo, como o exemplo de modéstia, de uma mulher que se fez “invisível” durante sua vida terrena. Esse ideal é também muito semelhante ao que deveria ser alcançado por uma jovem candidata ao casamento no século XIX2.

Essa imagem de Nossa Senhora da Boa Morte está inserida em um conjunto de esculturas devocionais presentes no Rio Grande do Sul que intentamos valorizar através da pesquisa. Muitas dessas imagens possuem ainda funções devocionais nas comunidades. Todavia, carecem de cuidados do ponto de vista da conservação e restauro, e de serem vistas como patrimônio cultural que fala da arte e da história das localidades em que se encontram. Através da criação de um inventário parcial das imagens de vestir no Rio Grande do Sul buscamos destacar a presença e a importância dessas imagens como bens culturais, e acreditamos que a divulgação científica e a educação patrimonial são dispositivos importantes para a união da devoção com a preservação desses bens.


Gabriela Carvalho da Luz

Canoas, 25 de março de 2022

Notas:

1 PAPA PIO XII. Constituição Apostólica Munificentissimus Deus. 1º de novembro de 1950. Disponível em: https://www.vatican.va/content/pius-xii/pt/apost_constitutions/documents/hf_p-xii_apc_19501101_munificentissimus-deus.html. Acesso em: 28 de março de 2022.

2 O estudo da iconografia da imagem de Nossa Senhora da Boa Morte, localizada em Rio Pardo/RS, foi aprofundado em um dos capítulos da dissertação de mestrado da autora, intitulada Um corpo para a ausência: inventário das imagens de vestir no Rio Grande do Sul (2021).

Referências Recomendadas:

HELLER, Eva. A Psicologia das cores: como as cores afetam a emoção e a razão. São Paulo: Gustavo Gili, 2013.

LUZ, Gabriela Carvalho da. Um corpo para a ausência: inventário das imagens de vestir no Rio Grande do Sul. 2021. 351 f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2021. Disponível em: < http://hdl.handle.net/10183/236271>. Acesso em: 26 de março de 2022.

MOREIRA, Fuviane Galdino. A beleza do divino: vestes como ornamento na imaginária cristã. In: Revista dobras, 11, 2018. Disponível em: ˂https://dobras.emnuvens.com.br/dobras/article/view/710˃. Acesso em: 17 de outubro de 2021.

SANT'ANNA, Sabrina Mara. A Boa Morte e o Bem Morrer: culto, doutrina, iconografia e irmandades mineiras (1721 a 1822). 2006. 142 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Belo Horizonte, 2006. Disponível em: ˂http://hdl.handle.net/1843/VCSA-6X6PTL˃. Acesso em: 17 de outubro de 2021.

VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

XIMENES, Maria Alice. Moda e arte na reinvenção do corpo feminino do século XIX. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2011.

Data de recebimento: 19/03/2022

Data de aprovação: 29/03/2022