Escultura & Texto

Figura 1: - São Pedro Mártir. Escultura em madeira policromada. Dim.:130x60x43,2cm (conforme Ficha do Acervo Artístico da UFMG) Depois da restauração no Cecor, em 1999,

Foto: Cecor, 1999.

Figura 2: Cabeça antes da remoção da repintura.

Fonte: Atelier de Restauração. 1977.

Figura 3: Cabeça após remoção da repintura.

Fonte: Atelier de Restauração. 1977.

Figura 4: São Pedro Mártir. Pintura de Pedro Berruguete. (sem data)

Fonte: Wikipedia, em 22-0202022.



UM SANTO QUE

ERA OUTRO SANTO


Escultura: São Pedro Mártir (Figura 1)

Autoria: Não identificada

Técnica: Escultura em madeira esculpida

com partes policromadas

Dimensão aproximada: 130 x 60 x 43,2cm

(Conforme ficha do Acervo da UFMG)

Propriedade: Reitoria da Universidade Federal de Minas Gerais

Época: Possivelmente séc. XIX


Esta imagem faz parte da história da conservação e restauração na Escola de Belas Artes (EBA) da UFMG, pois foi a primeira escultura restaurada na Escola, logo que começou a ser introduzida lá a restauração, antes mesmo de ter início o curso de Especialização em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (1978) e o Centro de Conservação e Restauração (Cecor) em 1980.

Em 1977, como já estava havendo um trabalho de restauração de telas em um pequeno ateliê, foi encaminhada à EBA pela Reitoria, uma escultura religiosa, com o nome de São Domingos de Gusmão, fundador da Ordem dos dominicanos, pois estava precisando de intervenção de conservação e restauração. Tinha poeira acumulada, ataque de insetos e muitos desprendimentos da policromia.

Orientava os trabalhos o técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan/MG) Geraldo Francisco Xavier Filho, conhecido como Ládio. Tratava-se da representação de um homem ainda jovem, em pé, posição frontal, portando um livro na mão esquerda e com gesto de segurar algo na mão direita. Vestia hábito branco e capa preta, escapulário e capuz, formas e cores do hábito dos frades dominicanos. Os cabelos eram escuros, anelados, com costeletas pintadas na cor cinza chapada, como todo o contorno do cabelo, que tinha uma tonsura no alto da cabeça. Foi feita uma verificação do estado de conservação, e constatada a presença de galerias, de insetos, e má qualidade da policromia, que se apresentava com grandes desprendimentos e perdas.

Fizemos a limpeza da superfície, tratamento contra os insetos xilófagos, obturação de galerias causadas pelos cupins, quando o Ládio informou que a cabeça da escultura estava toda coberta por uma repintura sobre a original, devendo ser removida. Ao iniciar a remoção, apareceu uma pintura de cor vermelha, representando sangue, sobre as orelhas e, na tonsura, um corte, grande e cheio de gesso e pedaços de papel. (Figura 2 e 3). Veio então a dúvida se aquela era mesmo uma representação de São Domingos de Gusmão, que era o fundador da ordem dos dominicanos e não havia sido martirizado. Se não era ele, que santo dominicano seria?

Foi então feito o primeiro estudo iconográfico no que viria a ser, posteriormente, o Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis da Escola de Belas Artes, o Cecor. O hábito, preto e branco, não deixava nenhuma dúvida sobre a ordem a que ele pertencia. O livro significava que era possuidor de grande sabedoria. Com os poucos recursos de que se dispunha, foram estudados alguns santos dominicanos, especialmente mártires, até se chegar à conclusão de que se tratava de São Pedro Mártir, conhecido também como São Pedro de Verona, lugar na Lombardia (Itália) onde nasceu, em 1205. Este santo é, em geral, representado em pé, com a palma de martírio na mão direita, um instrumento cortante no alto da cabeça, indicando a forma do martírio e, em geral, com um livro na mão, em sinal de conhecimento e sabedoria (Figura 4). Foi importante pregador e o segundo santo canonizado na história dos Dominicanos.

Deixou sua família na adolescência e continuou seus estudos na Universidade de Bologna, onde se preparou intelectualmente e, além disso, viveu em oração, austeridade e penitência. Ingressou na ordem dominicana quando seu fundador, São Domingos de Gusmão, ainda era vivo e acabava de fundar a Ordem dos Dominicanos, onde ele logo foi aceito, recebendo a missão de evangelizar. Foi o que fez, viajando por toda a Itália, espalhando suas palavras fortes e um discurso de fé que convertiam as massas. Todas as suas pregações eram acompanhadas de graças, que impressionavam toda comunidade por onde passava. E isso logo despertou a ira dos hereges. Primeiro inventaram uma calúnia contra ele, mas, achando que aquilo era uma prova de Deus, Pedro não tentou provar inocência. Aguardou que Jesus achasse a hora certa de revelar a verdade. Foi afastado da pregação por um bom tempo, até que a mentira se desfez sozinha, e ele foi chamado de volta e aclamado pela comunidade.

Voltando às viagens evangelizadoras, seus inimigos o afrontaram de novo tentando provar que suas graças não passavam de um embuste. Um homem fingiu estar doente, e outro foi buscar Pedro. Este, percebendo logo o que se passava, rezou e pediu a Deus que, se o homem estivesse mesmo doente, ficasse curado. Mas, se a doença fosse falsa, então que ficasse doente de verdade. O homem foi tomado por uma febre violentíssima, que só passou quando a armadilha foi confessada publicamente. Perdoado por Pedro, o homem se converteu na mesma hora. Pedro anunciou, ainda, o dia de sua morte, e as circunstâncias em que ela ocorreria, mas, mesmo tendo esse conhecimento, não deixou de fazer a viagem em que morreria. (https://arquisp.org.br/liturgia/santo-do-dia/sao-pedro-de-verona).

No dia 6 de abril de 1252, quando regressava de Como a Milão, Pedro foi assassinado com uma machadada na cabeça e com uma estocada no peito por um ateu, chamado Carino de Bálsamo. Seu companheiro, Domingo, tentou fugir, mas foi atingido por uma flexa (Réau, 2002, p. 69). Carino, porém, mais tarde confessou o crime e, cheio de remorso, se internou como penitente em um convento dominicano.

Imediatamente, o culto de São Pedro se difundiu em meio a comoção e espanto dos fiéis, que passaram a visitar o seu túmulo, onde as graças aconteciam em profusão. Apenas onze meses depois, o papa Inocente IV o canonizou, fixando a festa de São Pedro de Verona para o dia de sua morte, 6 de abril. Seu corpo foi transladado a Milão e hoje descansa na Igreja de Santo Eustórgio, recebendo grande número de devotos.

Voltando ao tema da escultura, em 1977, depois de tratada, foi devolvida à reitoria, com um relato e a orientação para que o nome de São Domingos de Gusmão fosse substituído por São Pedro Mártir ou de Verona. Foi esse fato que me fez escolhê-la para constar do Projeto Singularidades.

Vinte e dois anos depois, em 1999, ela voltou à Escola, desta vez ao Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (Cecor), onde recebeu novo tratamento, que constou de limpeza, obturação de galerias e apresentação estética, ficando com o aspecto que se encontra atualmente.

Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho

Belo Horizonte, 24 de fevereiro de 2022.


Referências Recomendadas:


GIORGI, Rosa. Santi: Dizionari dell’Arte. Mondadori Electa, Milano, 2002. P. 318/319.

ARQUIDIOCESE de São Paulo. Santo do dia. Disponível em: < https://arquisp.org.br/liturgia/santo-do-dia/sao-pedro-die-verona>, acesso em 22 de fev. 2022.

AGÊNCIA Católica de Informações. São Pedro de Verona. Disponível em: <https://www.acidigital.com>, acesso em 22de fev. 2022.

RÉAU, Louis. Iconografia del arte Cristiano. Iconografia de los santos. De la P a la Z. Repertórios. Ediciones del Serbal. Barcelona, 2002. P.69/72.

ROIG, Juan Ferrando. Iconografia de los Santos. Ediciones Omega S.A. Barcelona, 1950. P. 222/224.

SCHENONE, Héctor. H. Iconografia del arte colonial. Los Santos, V.II. Fundación Tarea, 1992. P.624.

TAVARES, Jorge campos. Dicionário de Santos. Lello Editores, Porto, 2001, 3ª edição. P. 123.


Autor(a):

Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho

beatrizrvcoelho@gmail.com

https://orcid.org/0000-0003-2958-7872

http://lattes.cnpq.br/1995961914706579

Data de recebimento: 24/02/2022

Data de aprovação: 25/02/2022