Escultura & Texto

Figura 01: Santa Gertrudes, escultura em madeira policromada, coleção particular, 2ª metade do século XVIII.

Foto: Marcos Hill


Figura 02: Santa Gertrudes, detalhe.

Foto: Marcos Hill


Figura 03: Santa Efigênia, escultura em madeira policromada atribuída a Vieira Servas, Capela do Rosário de Mariana, segunda metade do século XVIII

Foto: Beatriz Coelho

SANTA GERTRUDES,

E A "LINHA DA BELEZA", COLEÇÃO PARTICULAR, MG


Escultura: Santa Gertrudes

Autoria/atribuição: Não identificada

Técnica: Escultura em madeira policromada

Dimensão aproximada: 1,10 (alt.)x 35,5 (larg.)x 28,5 (prof.)cm

Origem: Não identificada

Procedência: Coleção particular, MG

Época: Segunda metade do séc.XVIII


Contextualizar historicamente uma escultura é procedimento desejável na fundamentação de análises formais, estilísticas e iconográficas. Mas como fazê-lo? Apesar de ser operação complexa, ela permite, contudo, múltiplas abordagens. No caso específico da imaginária religiosa, há, entretanto, pistas que podem ser rastreadas, desde que consideradas como parte de um conjunto compósito de características, conduzindo a hipóteses úteis.

É o que acontece quando se verifica o material do suporte. Contando-se já com suficiente conhecimento sobre este assunto, tanto no Brasil Colônia quanto após a Independência, a utilização do barro, da madeira, da pedra e do gesso pode ser um indicativo cronológico significativo. Outra pista considerável é o modo como o escultor concebe a estrutura anatômica da imagem. Sim! Aquela que jaz subjacente à volumetria do panejamento. Uma meticulosa análise formal desta anatomia indica, com certa clareza, o período de execução da peça assim como a qualidade técnica do próprio artífice, conduzindo a uma melhor análise formal do panejamento cuja dinâmica estará sempre impregnada de tendências estéticas vigentes, contribuindo para uma melhor contextualização da imagem estudada.

Há interesse em observar como a tendência estética do momento vincula-se intrinsecamente à história do corpo e a dos costumes, tudo permeado por correntes filosóficas que, num determinado período, são absorvidas por instituições como, por exemplo, a Igreja Católica portuguesa, reconhecendo-se sua inegável supremacia sobre as mentalidades de regiões tropicais sob sua influência geopolítica.

Por último, vale sempre especular a função da peça em foco, o que ajuda a esclarecer alguns segredos menos evidentes como sua finalidade devocional e a localização para a qual a mesma foi concebida, estimulando a percepção de detalhes como a direção do olhar, a dinâmica gestual e a própria altura da peça, o que facilita o vislumbre da escala referente ao espaço que originalmente a imagem ocupava.

É o que ocorre com a imagem de Santa Gertrudes. Trata-se de uma obra de notável valor artístico, reiterado pela qualidade de sua fatura escultórica e da policromia, definindo características marcantes da época em que provavelmente foi concebida, a saber, a segunda metade do século XVIII. (Figura 01)

Mas, por que situá-la nesse período? Como já foi sugerido, a primeira pista refere-se ao suporte que, no caso, é a madeira, prioritariamente utilizada em imagens executadas na época suposta. Une-se a isto a qualidade formal de sua estrutura anatômica que, além da perfeição naturalista, observa o esquema da “linha da beleza”1, definida pela sinuosidade de um “S” que inicia-se na delicada inclinação da cabeça para a direita, escorrendo pelo ombro esquerdo, provocando um vinco na virilha e terminando elegantemente no pé esquerdo, projetado para a frente.

O vinco do panejamento na virilha esquerda caracteriza a singularidade de um corpo que, mesmo encoberto por pesado artefato têxtil, evidencia uma elegância formal impregnada de sutil erotismo, não raro em imagens religiosas femininas do mesmo período como é o caso da Santa Efigênia da Capela do Rosário de Mariana, atribuída a Francisco Vieira Servas.(Figuras 02 e 03)

Podendo ser considerada como um traço canônico devido à sua significativa reincidência em corpos femininos representado, esta sutil sensualidade vincula-se ao hedonismo2, influente tendência filosófica vigente na Europa das Luzes, pano de fundo do estilo Rococó, surgido no segundo quartel do século XVIII.

Como comenta Philippe Minguet, estudioso do estilo,

O que é novo é o ideal de um amor reduzido cada vez mais ao prazer, ao esforço para dar à libertinagem o aspecto de decoro. O erotismo rococó é essencialmente epidérmico e espiritual. [...] A nudez de Boucher, a nudez do século XVIII em geral, é a nudez “vestida”. É significativo que um dos temas mais recorrentes da pintura galante seja o olhar indiscreto, desde os Patins de Lancret até O Balanço de Fragonard. Isto basta para indicar o caráter um tanto cerebral desta sensualidade.3

Concluindo, vale ressaltar que o decoro desta “nudez vestida”, tanto observável na Santa Gertrudes quanto na Santa Efigênia de Mariana é ainda encontrada em imagens como a Santa Cecília da Matriz de Sabará, entre várias, definindo uma singularidade que, como pista, pode respaldar estudos futuros sobre outras esculturas atribuíveis ao mesmo período.

Marcos Hill

Belo Horizonte, 27 de julho de 2021.

Notas:

1CONTI, Flávio. Como reconocer el arte rococó. Barcelona:

EDUNSA, 1993. p. 42.

2 Hedonismo: Doutrina que considera que o prazer individual e imediato é o único bem possível, princípio e fim da vida moral: “Ligações mais próximas com o rococó podem ser detectadas no segundo conceito mencionado, o hedonismo que atravessa o século, fazendo da busca da felicidade e do prazer a obsessão constante do homem setecentista.” OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O Rococó Religioso no Brasil e seus antecedentes europeus. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 52.

3 MINGUET, Philippe. Estética del Rococó.

Madrid:Catedra,1992. p. 192.


Referências Recomendadas:

CONTI, Flávio. Como reconocer el arte rococó.

Barcelona: EDUNSA, 1993.

MINGUET, Philippe. Estética del Rococó.Madrid: Catedra,1992.

OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O Rococó Religioso no Brasil e seus antecedentes europeus. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

Data de recebimento: 27/07/2021

Data de aprovação: 31/07/2021