Escultura & Texto

Figuras 1 e 2: Cruzeiro de Martírio (Adro da Igreja Matriz de São Gonçalo, São Gonçalo do Rio Abaixo-MG) e detalhe.

Foto: Daniela Ayala 2017


Figura 3: Desenho esquemático do Cruzeiro do Martírio

Fonte: Esquema de Daniela Ayala 2017



CRUZEIRO DE MARTÍRIO DE SÃO GONÇALO DO RIO ABAIXO, MG


Escultura: Cruzeiro de Martírio

Autoria/Atribuição: Não identificada

Técnica: Madeira entalhada

Dimensão aproximada: 17,5m de altura

Propriedade: São Gonçalo do Rio Abaixo, MG

Localização: Adro da Igreja Matriz de São Gonçalo

Época: Possivelmente séc. XIX


Cruz é uma haste atravessada por outra, quase no alto, com um braço para cada lado, como se vê nos crucifixos, onde padeceu Jesus. Crucifixo é quando a cruz tem a imagem do Cristo, morto ou agonizante. E o cruzeiro é uma grande cruz que se coloca nos adros das igrejas (BLUTEAU, p. 350, 351, 352)

Afonso Ávila, no seu tradicional Barroco Mineiro: Glossário de Arquitetura e Ornamentação (1979), define Cruzeiro como:

1. Grande cruz, erguida nos ADROS, cemitérios, largos, praças etc. Alguns cruzeiros apresentam a forma conhecida como "Cruz dos Martírios", que traz os instrumentos do suplício de Cristo. 2. A parte da igreja compreendida entre a CAPELA-MOR e a NAVE central.


A cruz é o mais conhecido símbolo religioso do cristianismo e quando é representado com a figura do Cristo recebe o nome de crucifixo. No “cruzeiro de martírio”, não temos a figura do Cristo, mas estão presentes os instrumentos da crucificação ou símbolos que remetem à paixão de Jesus Cristo no calvário.

Segundo Flexor (2016, p. 232), as representações dos Mistérios, ou Passos da Paixão de Cristo no Brasil colônia, seguiam as recomendações tridentinas. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia reproduziram essas recomendações e estabeleceram que a Cruz não podia ser pintada nem erguida em locais imorais, estar debaixo de janelas e nem sob paredes e/ou lugares sujos e indecentes. Eram permitidas de pau ou pedra ou mesmo pintadas em lugares públicos, estradas, ruas, caminhos. No entanto, sempre quando possível deveriam estar levantadas do chão “[...] longe de lugares úmidos, o que explica sempre a cruz estar representada com o seu “calvário”, isto é, sobre um pedestal significativo de algum relevo [...].”

Os “cruzeiros de martírios”, mais comuns de se encontrar em Minas Gerais, são os de madeira, erguidos como marcos devocionais, sendo demonstração da devoção na representação da Paixão de Cristo nos séculos XVIII e XIX, atingindo as classes sociais menos favorecidas, nas quais, o sofrimento de Cristo despertava sentimentos piedosos.

Com um mestrado em andamento, sobre Cruzeiros de Martírios em Minas Gerais, fizemos um recorte apresentando o Cruzeiro (Figuras 1 e 2) instalado no adro da Igreja Matriz de São Gonçalo, no município de São Gonçalo do Rio Abaixo, MG. Do conjunto pesquisado até o momento é o que possui o maior número de símbolos do martírio de Cristo e possui boa conservação.

Segundo o Dossiê de Tombamento1, nos primeiros anos do Padre Vinagre (pároco ordenado em 13 de abril de 1845) à frente da paróquia de São Gonçalo, foi realizado um inventário dos bens da Matriz – “Inventário dos Bens e Alfaias da Matriz de São Gonçalo do Rio Abaixo - 1871”2 onde temos a seguinte informação sobre o Cruzeiro da Matriz:

O Abaixo assignado desejando que orico cruzeiro desta Matriz de São Gonçalo do Rio abaixo se conservar por largos annos no estado em que deixa eseja sempre tratado pelos fieis que aquella devoção ereverência que marca por ser osimblo da nossa redenpção lhe aprove nomiar zeladores perpétuos so Sr. Antonio Glvs. Guedes e Estevão Gonçalves de Barcellos, aos quais só e exclusivamente pertencerá achave do cofre com aobrigação regojozíssima de empregar odinheiro que ahi acharem em conservar limpo olargo sagrado e empassar uma mam de tinta todos os annos no cruzeiro e emfestejar solenemente odia aneverçario doseu levantamento ou no domingo seguinte aos 21 de Maio. São Gonçalo 21 de Maio de 1871. Note bem. Na morte dos Zeladores acima passará achave do cofre aofilho mais velho, ou aoparente mais xegado nafalta do filho.3

O Cruzeiro de Martírio da Igreja Matriz de São Gonçalo é singular por possuir uma altura diferenciada, 23 instrumentos do sacrifício de Cristo e principalmente por possuir o cofre de doações para a sua manutenção, como citado acima.

Nas visitas pastorais de Dom Frei José da Santíssima Trindade (1821-1825) é citado que a capela de São Gonçalo tem 3 altares com muita decência, boas imagens, mas ainda não tem cercado o adro. Não é mencionado o cruzeiro que estaria posicionado neste adro. Levantamos a hipótese deste cruzeiro não existir no início do século XIX, mas de acordo com o inventário de 1871 era obrigação fazer sua conservação.

O cruzeiro da Igreja Matriz de São Gonçalo traz em toda a sua extensão 23 símbolos da paixão de Cristo confeccionados em madeira e metal (galo) policromado, sendo eles na Stipes (haste vertical): galo, placa (JNRJ), frasco, cálice, pano de Verônica, jarra e bacia, cravos, santo sudário, mão, dados, cana, túnica sem costura, espada e estandarte, coluna para açoite e corda, caveira e tíbias, placa e cofre e no Patíbulo (haste horizontal): archote (tocha), lança, vara com esponja, lanterna, martelo, torquês, chicote e escada. (Figura 3)

Os Cruzeiros de Martírio são pouco conhecidos e executados com material “menos nobre” merecendo, com essa pesquisa, sua valorização como patrimônio de esfera regional e importante para a identidade cultural de Minas Gerais.


Daniela Ayala Lacerda

Belo Horizonte, 25 de março de 2022

Notas:

1 Arquivo Digital. Documento disponibilizado pela Secretaria de Cultura de São Gonçalo do Rio Abaixo.

2 Documento preservado no Arquivo do Centro Pastoral de São Gonçalo do Rio Abaixo.

3 Inventário dos Bens e Alfaias da Matriz de São Gonçalo do Rio Abaixo (manuscrito). Arquivo do Centro Pastoral de São Gonçalo do Rio Abaixo.

Referências Recomendadas:


ÁVILA, Affonso; GONTIJO, João Marcos Machado; MACHADO, Reinaldo Guedes. Barroco mineiro glossário de arquitetura e ornamentação. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, [Belo Horizonte]; Fundação João Pinheiro, 1979. 220 p.

AZZI, Riolando. A Paixão de Cristo na tradição luso-brasileira. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, fasc. 209, p.114-149, mar. 1993.

BÍBLIA. Bíblia Sagrada. Edição Pastoral-Paulus: São Paulo, 2015.

BLUTEAU, R. Vocabulário portuguez e latino. Lisboa: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. 8v., 2supl.

FLEXOR, M.H.O. O Concílio de Trento e as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia: “programa” da arte sacra no Brasil. In: HERNÁNDEZ, M.H.O., and LINS, E.Á., eds. Iconografia: pesquisa e aplicação em estudos de Artes Visuais, Arquitetura e Design. Salvador: EDUFBA, 2016, pp. 206-251. ISBN: 978-85-232-1861-4.

JOSÉ DA SANTÍSSIMA TRINDADE, Bispo; OLIVEIRA, Ronaldo Polito de.; LIMA, Jose Arnaldo Coelho de Aguiar.; FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO Centro de Estudos Históricos e Culturais.; INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIM. Visitas pastorais de Dom Frei José da Santíssima Trindade: (1821-1825). Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais: Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, 1998. 446 p.

MUSEU DE ARTE SACRA DE SÃO PAULO – Crux, Crucis, Crucifixus: o universo simbólico da cruz. Porto Alegre, 2011. 39 p.

POEL, Francisco van der. Dicionário da religiosidade popular: cultura e religião no Brasil. Curitiba: Nossa Livraria, 2013.

Data de recebimento: 16/03/2022

Data de aprovação: 25/03/2022