Escultura & Texto

Figura 1: Nossa Senhora da Conceição Aparecida, sem manto, dimensão: 36 centímetros de altura.

Foto: Alves (2005, p.132).

Figura 2: Nossa Senhora da Conceição Aparecida, com manto, dimensão: 36 centímetros de altura.

Foto: Alves (2005, p.132).



VESTIR IMAGENS: INDICAÇÕES DOS PRIMEIROS REGISTROS DE MANTOS DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO APARECIDA,SÉCULO XVII

Escultura: Nossa Senhora da Conceição Aparecida

Atribuição: Frei Agostinho de Jesus (SOUZA, 1993, p. 38)

Técnica: Escultura em terracota com manto têxtil

Dimensão aproximada: 36 cm de altura

Procedência: Basílica de Nossa Senhora Aparecida

Época: Século XVII

(Possivelmente esculpida no ano de 1650,

conforme o Padre Júlio Brustoloni)

Vestir as imagens é uma prática que remonta à antiguidade. Durante as festas religiosas em homenagem a Atena, oferecia-se à escultura em madeira dessa deusa grega exposta no templo de Erecteion uma vestimenta chamada de Peplos (DELFOSSE, 2004). Já na Acrópole, existia um santuário dedicado à Artemisa Brauronia, a quem as mulheres, após o parto, destinavam seus vestidos.

No Ocidente cristão, esse uso religioso das vestimentas em esculturas remete ao século XIII. Conforme Marta Sanchez Marcos (1997), identificaram-se nos inventários do Museu de Salamanca datados desse período doações de mantos às imagens de devoção. Na escultura sagrada, o manto acarreta diversas funcionalidades que estão relacionadas à sua simbologia e a um tipo de processo ritualístico.

Aqui destaco o ritual de vestir a escultura original de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, prática que parece ter existido desde os primeiros tempos após a imagem ter sido encontrada no rio Paraíba do Sul em 1717, e que seria posteriormente decretada padroeira brasileira em 1930. A própria representação iconográfica dessa Virgem se constrói a partir da integração de sua estrutura original de terracota com a complementação de um manto têxtil, como mostram as fotos a seguir (Figuras 1 e 2).

Os primeiros registros de mantos de Nossa Senhora da Conceição Aparecida foram identificados no primeiro inventário dos bens da capela dessa imagem, concluído em cinco de janeiro de 1750. Acessei esses dados na Arquidiocese de Aparecida, em Aparecida consultando as cópias destes três documentos: 1) Livro do tombo da Paróquia de Santo Antônio de Guaratinguetá, datado de 1757 a 1858; 2) livro sobre a Instituição da Capela de Nossa Senhora Aparecida, de 1743 a 1867, com cópia feita em 1895; e 3) desse mesmo livro, localizei uma cópia feita em 1978 pelo padre Júlio João Brustoloni, que compreende os anos de 1745 a 1750. Nestes três manuscritos, consta o mesmo inventário do século XVIII, com acréscimos e supressões, que nos informam sobre a existência de sete mantos no primeiro registro; dez no segundo; e seis no terceiro.

A título de exemplo, apresento o mesmo manto1 , com algumas alterações de descrição de acordo com o documento: “um manto de gala com ramos de ouro e com renda de prata”. “[...] um manto de gala encarnado com ramos de ouro e renda de prata com forro de tafetá carmesim (concedido à Senhora após o término do inventário)”; e “[...] um manto de gala encarnado, com ramos de ouro e renda de prata, forrado de tafetá carmesim (MOREIRA, 2021, p. 215).

No inventário dos bens da Capela apresentado na cópia do livro do tombo da Paróquia de Santo Antônio de Guaratinguetá, por exemplo, verificam-se os seguintes dados:

(...) quatro mantos mais hú (...) Entregou mães pertencª a Srª e C. Ambrosio Prª dous mantos, hú de galam e outro de Seda com ramos douro e ambos com rendas, hú de prata, outro de ouro. (...) os Mantos por todos dão sete” (LIVRO DO TOMBO, 1757–1858, p. 125-126v).

Esses exemplos nos mostram que já naquela época os fiéis da Virgem Aparecida tinham o costume de oferecer mantos à sua imagem devocional. O manto já fazia parte da iconografia dessa escultura mariana, e, ao que tudo indica, esses devotos já sabendo disso, aproveitavam-se desse atributo para agradecer à Virgem Aparecida pelas promessas alcançadas, expressando esse ato de forma não só religiosa, mas, também, artística e cultural.

Os mantos de têxtil que contam a história da devoção à Virgem da Conceição Aparecida teriam sido inventariados para assegurar a sua proteção. No entanto, essas vestes do século XVIII não foram encontradas, o que nos mostra que mesmo estando registradas não eram submetidas a procedimentos de conservação, como ainda ocorre com algumas vestes que ornam esculturas sagradas.

Preservar esse esse tipo de artefato têxtil é imprescindível. Felizmente, há hoje três vestes da padroeira brasileira no Museu Nossa Senhora Aparecida, dentre as quais duas datadas do início do século XX. Esse tipo de objeto torna acessível expressões artísticas e religiosas simplesmente esquecidas pelos membros de suas comunidades. Os mantos da Virgem Aparecida assumem desde o século XVIII um importante papel cultural para as nossas sociedades.

Fuviane Galdino Moreira

Vitória, 23 de fevereiro de 2022.


Notas:

1 O mesmo inventário foi apresentado com algumas alterações nos três documentos, mas essas descrições são as únicas que falam de manto de gala encarnado.


Referências Recomendadas:

DELFOSSE, Annick. Vêtir la Vierge: une grammaire identitaire. In: Quand l’habit faisait le moine. Une histoire du vêtement civil et religieux em Luxembourg et au-delà. Bastogne, 2004. p.199-208. Catálogo. 2004.

FRANÇA, João Lopes. Inventário dos bens da Capella de Nossa Senhora Aparecida a cinco de Janeiro de 1750. Inventário dos bens da Capella de Nossa Senhora Aparecida 1745-1750. In: Instituição da Capella de Nossa Senhora Aparecida, 1750. (cópia feita por Júlio João Brustoloni em 1978).

FRANÇA, João Lopes. Inventário dos bens pertencentes à Capella de Nossa Senhora Apaparecida, 1750. In: Instituição da Capela de Nossa Senhora Aparecida 1743–1867, v. 2 (cópia feita em 1895).

LIVRO de Instituição da Capela de Nossa Senhora Aparecida 1743–1867. Aparecida: Arquidiocese de Aparecida, 1743–1867, v. 2 (cópia feita em 1895).

MARCOS, Marta Sanchez. La Virgen de las Nieves. Transformaciones de una imagen vestidera. Codex Aqvilarensis: cuadernos de investigación del Monasterio de Santa María la Real, Aguilar de Campo, p. 97-111, 1993. Disponível em: http://www.romanicodigital.com/documentos_web/documentos/C9-4_Marta%20S%C3%A1nchez%20Marcos.pdf. Acesso em: 20 mai. 2017.

MOREIRA, Fuviane Galdino. Vestes e Imagens: funções identitárias dos mantos de Nossa Senhora da Conceição Aparecida — origens e trajetórias nas décadas de 1940 a 1960. 2021. Tese (Doutorado em Artes Visuais) — Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.

Autor(a):

Fuviane Galdino Moreira

moreira.fuvi@hotmail.com

https://orcid.org/0000-0002-6861-7045

http://lattes.cnpq.br/0085464740753410

Data de recebimento: 22/02/2022

Data de aprovação: 24/02/2022