Figura 1: São Vicente de Paulo,
Foto: Valtencir Almeida Passos
Figura 2: São Vicente de Paulo, detalhe com menino no colo
Foto: Valtencir Almeida Passos
Figura 3: São Vicente de Paulo, detalhe de menina ao seu lado
Foto: Valtencir Almeida Passos
SÃO VICENTE DE PAULO,
DE DORES DO TURVO E A TÉCNICA DA "CARTAPESTA"
Escultura: São Vicente de Paulo
Autoria: Não identificada
Técnica: Escultura em Cartapesta (Papel machê) policromada
Dimensão aproximada: 1,43 x 0,72 x 0,60 m
Origem: Itália
Procedência: Dores do Turvo/ Minas Gerais
Época: Século XIX/XX
Apresentamos a imagem de São Vicente de Paulo, do acervo da Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores, no município de Dores do Turvo, situado na Zona da Mata, Minas Gerais. A escultura devocional de origem italiana está ligada à fundação da Sociedade São Vicente de Paulo, que se dá, naquela localidade, nos primeiros anos do século XX. A singularidade dessa obra está em sua técnica, conhecida como Cartapesta1, que equivale à técnica do papiermaché. Esse tipo de suporte tem sido encontrado nos acervos da imaginária religiosa da região da Zona da Mata de Minas Gerais.
Temos identificado a ocorrência da técnica em processos de catalogação e proteção de acervos culturais, através do Inventário de Proteção do Acervo Cultural – IPAC, desenvolvido pelos municípios mineiros no âmbito do Programa de Municipalização da Proteção do Patrimônio Cultural, coordenado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA-MG. A título de exemplo, registra-se também a imagem do Arcanjo São Miguel, da Igreja Matriz de São Miguel e Almas, de Santos Dumont, MG, de autoria de Luigi Guacci, um dos mais importantes artistas a utilizar essa técnica na Itália na transição dos séculos XIX e XX.
Nessa imagem, São Vicente de Paulo é representado idoso, trajando hábito preto, com gola branca, com um menino no colo e uma menina ao seu lado. (Figuras 1, 2 e 3) Sua representação tomou como fonte a recorrente ‘Alegoria da Caridade’, que, na iconografia de São Vicente de Paulo, passa a contar, em posição central, com o retrato do santo francês, invocado como padroeiro das crianças abandonadas, enfermeiros, escravos e prisioneiros2. Seu socorro é invocado também quando se perdem os pais. Foi proclamado padroeiro das associações católicas de caridade pelo Papa Leão XIII, em 12 de maio de 1885. O final do século XIX e o início do século XX viriam propagar a devoção com a criação de conferências vicentinas por várias partes do mundo.
Tecnicamente, as imagens de Cartapesta são constituídas de um tipo diferenciado de suporte que se subdivide em três partes: estrutura, preenchimento e acabamento. A estrutura é constituída de peças de madeira cerrada, unidas por parafusos, criando uma forma esquemática da peça, unindo-se à base da escultura. Após a criação da estrutura, o artista fazia a moldagem com fibra vegetal comprimida em feixes para a definição das formas básicas da escultura, afixando-a com fios naturais. Somente após a moldagem das partes principais era feito o acabamento do suporte, com aplicação de camadas de papel, adesivos e compressão a quente com ferramentas. As imagens recebem finalmente uma camada de preparação muito fina, de cor cinza claro, sobre a qual é aplicada a policromia. O uso de diferentes tipos de suportes usados na escultura devocional em Minas Gerais foi apontado por COELHO, QUITES (2014). Embora elenquem alguns suportes raros e inusitados como a “tela encolada”, a técnica da Cartapesta ou papel machê não havia sido identificada na bibliografia da arte religiosa no Brasil.
A imagem apresentava péssimo estado de conservação, com presença de danos estruturais, como apodrecimento do suporte, presença de ataques generalizados de insetos e brocas com muitos orifícios antigos e ataques ativos, que fragilizaram a estrutura da escultura. A figura da menina apresentava-se desprendida do conjunto escultórico. Havia preenchimentos indevidos, incompatíveis com o material original, além de trincas, abertura dos blocos constituintes da base, em função de exposição à variação de umidade, perdas de partes e presença de intervenções anteriores. Também havia danos estéticos, como repinturas com tintas de qualidade técnica muito inferior à original.
A execução das intervenções, como desdobramento do processo de inventário e ação integrante das ações municipais de preservação do acervo do referido município3, constituiu-se em momento de aprofundamento do estudo dos materiais e técnicas da escultura. Além do resgate e valorização de sua devoção, assim como a revalorização de sua história como objeto histórico e cultural, especialmente por ela documentar a importância da presença vicentina no município, também puderam ser desenvolvidas reflexões do ponto de vista da identificação técnica dessa obra, incomum nos estudos da imaginária brasileira. Essa técnica possibilitou a produção de imagens de grande vulto e extremamente leves. Ressalte-se que sua conservação se demonstra bastante complexa, dada a fragilidade dos suportes, que apresenta significativa perecibilidade pela alta suscetibilidade a agentes físicos e biológicos.
Embora não tenha sido possível comprovar a autoria da imagem através de documentação histórica, depoimentos de moradores indicam que a imagem teria sido adquirida na Itália pelo Padre Vicente do Cunto Pinto, que, além da sua devoção homônima, era descendente de italianos e foi um relevante propagador vicentino na região da Zona da Mata. Assim, a imagem resgatada constitui-se em um importante bem cultural por seu testemunho histórico, artístico e religioso do lugar. Documenta também a circulação de outras técnicas de escultura religiosa em Minas Gerais, especialmente no contexto da imigração promovida massivamente a partir do século XIX.
André Vieira Colombo
Rio Novo, 01 de março de 2022.
Notas:
1 A técnica também pode ser conhecida como “cartão-pedra”, do francês carton-pierre, como registra Regina Real em seu Dicionário de Belas Artes (1962).
2 As ‘alegorias’ ganharam muita força como suporte para a retórica barroca, mas vem sendo usadas, na arte e na literatura, desde era Clássica. A escultura neoclássica européia se utilizou de vários esquemas narrativos das alegorias. Com o estabelecimento de São Vicente de Paulo como “patrono das obras de caridade”, no final do século XIX, a representação iconográfica do santo seria elaborada a partir da Alegoria da Caridade. Na imagem de São Vicente de Paulo as crianças no colo simbolizam o acolhimento aos inocentes e órfãos e a criança no chão representa o cuidado os marginalizados.
3A restauração dessa imagem, assim como da imagem do Arcanjo São Miguel, de Santos Dumont, citada acima, foi executada no Atelier Relicário, sob coordenação do conservador-restaurador Valtencir Almeida dos Passos.
Referências Recomendadas:
COELHO, Beatriz R. V.. QUITES, Maria Regina EmeryEstudo da escultura devocional em madeira / Beatriz Coelho,, 1ª ed. Belo Horizonte: Fino Traço. 2014.
INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO DE MINAS GERAIS - IEPHA/ Prefeitura Municipal de Dores do Turvo. Inventário de Proteção do Acervo Cultural – Ficha de Inventário de bens móveis – Dores do Turvo – Vol. 1. 2015.
INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO DE MINAS GERAIS - IEPHA/ Prefeitura Municipal de Santos Dumont. Inventário de Proteção do Acervo Cultural – Ficha de Inventário de bens móveis – Santos Dumont – Vol. 1. 2011.
REAL, Regina M. Dicionário de Belas Artes: termos técnicos e matérias afins. Fundo de Cultura. Rio de janeiro. 1962. Vol. I e II.
Data de recebimento: 02/03/2022
Data de aprovação: 03/03/2022