Escultura & Texto

Figura 01: Nossa Senhora das Dores, visão frontal


Figura 02: Nossa Senhora das Dores, visão frontal, sem vestes


Figura 03: Detalhe , sem vestes


Fonte: Cláudio Nadalin, 2018. Cecor/EBA/UFMG

NOSSA SENHORA DAS DORES:

CURIOSIDADES ICONOGRÁFICAS DE UMA VIRGEM DOLOROSA,

EM SABARÁ, MG

Escultura: Nossa Senhora das Dores

Autoria/atribuição:Mestre de Sabará (conforme SPHAN, 1986)

Técnica: Escultura em madeira policromada, imagem de vestir/roca

Dimensão aproximada: (A x L): 141 X 34,5 cm

Origem: Não identificada

Procedência: Igreja de São Francisco de Assis, Sabará, MG

Época: Século XIX (data provável)


As representações da Virgem Dolorosa são as referências mais enfáticas do sofrimento de Maria nos eventos da Paixão de Cristo. Entre as principais invocações, a considerar a sequência das dores de Maria desde a Crucificação até o Calvário, estão: Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora das Angústias, Nossa Senhora da Soledade e Nossa Senhora da Piedade.

A iconografia de Nossa Senhora das Dores corresponde ao momento da Crucificação, cujo principal atributo são sete espadas cravadas no peito ou no coração (ou uma espada em algumas representações). É representada de pé ou sentada, tem feição angustiada e, algumas vezes, lágrimas. Traja roxo (mais azul ou mais vermelho) e está envolvida por um manto. Pode levar uma auréola de sete medalhões ou um resplendor de sete estrelas. Nossa Senhora das Angústias representa Maria no momento do Descendimento. Habitualmente traja roxo, apresenta fisionomia angustiada e segura um lenço nas mãos. O evento posterior ao Descendimento é representado por Nossa Senhora da Piedade, quando Maria carrega Cristo morto nos braços. Nossa Senhora da Soledade representa Maria sozinha em sua dor após o traslado do corpo do filho ao Sepulcro. Apresenta feição de desolamento, lágrimas e olhar voltado para cima, tendo as mãos unidas e uma espada cravada no peito. (Figura 01)

A imagem de vestir/roca apresentada é reconhecida pelo IPHAN/MG e pela comunidade de Sabará como Nossa Senhora das Dores. É retabular e processional, uma das mais cultuadas na Semana Santa. Além da veste roxa, são seus atributos as lágrimas, um resplendor de sete estrelas, uma espada – possui apenas um orifício acima do seio esquerdo – e um lenço branco. É valido salientar três aspectos importantes para sua leitura iconográfica. Primeiro, seus atributos fazem referência a pelo menos três iconografias. Segundo, tem os seios talhados e policromados. Por fim, as articulações outrora estavam revestidas em couro. Esses pormenores levantam dúvidas em torno de sua representação original e são nesses pontos que residem sua singularidade. (Figura 02 e 03)

Analisando a referida imagem sob o prisma iconográfico das invocações da Virgem Dolorosa, observam-se referências a três iconografias da Paixão de Cristo: Nossa Senhora das Dores (veste roxo, resplendor e uma espada cravada no peito, apesar de serem clássicas sete destas), Nossa Senhora das Angústias (lenço e veste roxa) e Nossa Senhora da Soledade (espada única cravada no peito e lágrimas). A entrevista realizada com pessoas da comunidade em ocasião do estudo desta imagem, em 2018, revelou que ela leva resplendor e espada apenas na Semana Santa – na ausência do resplendor, aproxima-se à Soledade pelas lágrimas e espada única. No restante do tempo, quando repousa no altar, carrega nas mãos apenas o lenço e geralmente traja roxo, aproximando-se das Angústias.

A discussão iconográfica não se encerra na Virgem Dolorosa, pois a imagem possui elementos curiosos que suscitam dúvidas sobre sua representação original. Nos seios a talha é arredondada com leve proeminência, e as camadas pictóricas definem-se em carnação, auréolas e mamilos; abaixo do orifício onde se crava a espada escorre um fio de sangue. Os estudos estratigráficos realizados na imagem demostraram ser uma intervenção, logo, trata-se de repintura. Ademais, havia resquícios de couro afixados por cravos que outrora recobriam as articulações, característica típica de imagens que se desnudam, sendo também uma intervenção.

Conforme os estudos iconográficos, as representações femininas cujos seios estão desnudos referem-se a Margarida de Cortona e Maria Madalena, ambas santas pecadoras. Certas representações de Margarida de Cortona, franciscana penitente, permitem rebaixar seu hábito até a cintura com os seios seminus, cobertos parcialmente pelas mãos ou cabelos. Já Maria Madalena pode aparecer com o corpo parcialmente desnudo, com sua vasta cabeleira recobrindo-o.

A fusão dessas características deveras curiosas resulta em enigmas. Teria a imagem de Nossa Senhora das Dores representado no passado uma dessas duas iconografias, principalmente à Santa Margarida de Cortona por pertencer à Igreja de São Francisco de Assis? A verdade não se sabe, mas ficam as conjecturas. A imagem não traz marcas de flagelos nas costas comuns à santa, até porque na igreja a qual pertence existe uma imagem de vestir representando Margarida de Cortona, cujos seios são talhados e encarnados, porém atualmente, e por equívoco da comunidade, representa Maria Madalena.

A despeito do atual reconhecimento da imagem como Nossa Senhoras das Dores, as combinações e interferências dos atributos e das intervenções acima mencionados conferem-lhe múltiplas interpretações, corroborando a ideia de que a imagem de vestir, dadas as suas características técnicas e natureza mutável, está suscetível a ressignificações, transformações anatômicas ou até mesmo mudança de gênero, sejam por motivos específicos ou não intencionais.


Andreza Conde Araújo

Belo Horizonte, , 28 de maio, 2021



Referências Recomendadas:

ARAÚJO, Andrezza Conde. A imagem de vestir/roca de Nossa Senhora das Dores de Sabará: a essência da devoção e seus contextos processional e retabular. 2018. Monografia (Graduação em Conservação-Restauração de Bens Culturais Móveis) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.

ARQUIVO CENTRAL DO INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTISTICO NACIONAL. Inventário nacional de bens móveis e integrados: Igreja de São Francisco de Assis – Sabará/MG. Série Inventário, Caixa MG126, pasta 2, 1986.

CADERNO DE PESQUISA IEPHA. Iconografia. Belo Horizonte: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, 1982. vol.1.

MEGALE, Nilza Botelho. Invocações da Virgem Maria no Brasil: história, iconografia e folclore. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2008. 478p.

QUITES, Maria Regina Emery. A Imaginária Processional na Semana Santa em Minas Gerais: Estudo realizado nas cidades de Santa Bárbara, Catas Altas, Santa Luzia e Sabará. 1997. 133f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Belas Artes, Universidade de Minas Gerais,

Belo Horizonte, 1997.

Data de recebimento: 28/05/2021

Data de aprovação: 04/06/2021