Escultura & Texto

Figura 01: S. Ifigênia em seu nicho do retábulo colateral parte inferior, Igreja N. Sra do Rosário dos Homens Pretos, Salvador, BA


Figura 02: S. Ifigênia, imagem frontal


Figura 03: S. Ifigênia em detalhe do rosto e atributos


Fonte: Paul R. Burley/2019, Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Igreja_de_Nossa_Senhora_do_ Ros%C3%A1rio_dos_ Pretos_Salvador_Imagem_Santa_Ifig%C3%AAnia_2019-1567.jpg. Acessada em 13 de maio de 2021

SANTA IFIGÊNIA, ICONOGRAFIA ATÍPICA NA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DOS PRETOS, SALVADOR, BA


Escultura: Santa Ifigênia

Autoria/atribuição: Não identificada

Técnica: Escultura em madeira policromada e dourada

Dimensão aproximada: 0,85m altura

Origem: Salvador, Bahia

Procedência: Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos

Época: Século XVIII


Salvador foi um próspero núcleo que recebeu missões evangelizadoras principalmente Carmelitas e Franciscanas. A Irmandade da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, estabelecida no Brasil desde 1685, uma das mais antigas da América Portuguesa, recebeu a permissão do arcebispo D. Sebastião Monteiro de Vide para a construção de uma igreja própria nas Portas do Carmo. Na época, a igreja era um local próximo de uma das portas da cidade antiga e fortificada, em caminho ao Convento do Carmo, e que atualmente corresponde ao fim da atual ladeira do Pelourinho no Centro Histórico.

A Igreja de Nossa Senhora do Rosário foi então construída em 1704 pelos confrades negros que compunham a irmandade. No fim do séc. XIX, a irmandade elevou-se a Venerável Ordem Terceira. Tombada como Patrimônio do Brasil, pelo IPHAN desde 1938, no templo encontram-se várias imagens de devoção negra. Em um de seus altares laterais em estilo neoclássico, está uma peculiar imagem de Santa Efigênia em madeira policromada e dourada. Seu nome, e as variantes: Efigênia, Iphagenia; Iphegenia; Ephigenia; Ephygenia; tem origens do grego e pela etmologia significa "forte desde o nascimento" ou " de descendência forte".

A Santa tem sua hagiografia descrita na Lenda Dourada, também conhecida como Legenda Aurea, Historia Longobardica ou Flos Sanctorum, obra literária do cronista italiano Jacobus de Voragine, compilada por volta de 1275 DC. Segundo essa fonte, a princesa negra era filha de Eufenisa e Eggipus, reis da Abssínia, Noba ou Núbia, localizada no nordeste africano e atual Etiópia. Ifigênia teria sido batizada e dedicada a Deus por Mateus, o Apóstolo e Evangelista em missão no continente africano junto a povos gentios.(Figura 01)

Oliveira (2008, p.4.) apresenta a versão hagiográfica baseada na obra do Carmelita Frei José Pereira de Santana cuja obra de dois volumes publicada em Lisboa entre os anos 1735 e 1738, baseada em mitos seculares, e que visava difundir a Ordem Carmelita, a devoção da santa junto aos negros e como deviam ser representadas essas imagens1. De acordo com as fontes anteriores, Hírtaco, tio paterno da princesa Ifigênia, sucedeu ao pai da santa, como novo soberano da Núbia após usurpar o trono de Efrônio, o primogênito e herdeiro legítimo. O novo rei teria prometido metade de seu reino a Mateus, o Evangelista, caso persuadisse a princesa a se casar com ele. Enfurecido após a negativa de Mateus que alegou que a princesa fora consagrada ao Senhor2, o rei ordenou sua morte aos pés do altar, episódio que teria transformado o Evangelista num mártir da fé cristã.

Após abdicar sua riqueza e ter cumprido seus votos, a princesa Ifigênia teria se tornado religiosa. Em desforra, o rei ordenou que fosse ateado fogo ao convento edificado e habitado por ela e outras religiosas. Pelas orações e intercessão de Ifigênia, a edificação teria sido milagrosamente salva e, a religiosa apontada como importante na recuperação do trono por seu irmão, restabelecendo o bom governo na Núbia, a paz e a difusão dos ideais cristãos após a morte do ambicioso Hitarco. O convento em chamas tornou-se um de seus principais símbolos o que a faz ser conhecida como a santa protetora das moradias contra os incêndios, e padroeira dos militares e bombeiros.

Pouco se sabe além dessas lendas de teor inverossímil e a história da princesa Ifigênia precede a fundação da Ordem Carmelita. De acordo com as hagiografias, a santa teria vivido no Ano I d.C, cerca de 1200 anos antes da fundação da Ordem dos Irmãos da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo. Apesar da conexão da religiosa aos Carmelitas permanecer misteriosa, é considerada como a primeira santa de etnia negra responsável pela difusão do cristianismo na África. Os primeiros registros de sua devoção nos templos Carmelitas, foram verificados em Cádiz, Andaluzia, comunidade autônoma espanhola, migrando a Portugal e consequentemente ao Brasil3.

De forma geral a Santa é representada invariavelmente com o hábito dos carmelitas, que frequentemente se apresenta como uma túnica em lã crua, ou seja, de coloração castanha ou marrom; um véu, que pode simbolizar os votos perpétuos feitos pela religiosa: a castidade, a pobreza e a obediência á Deus; um cinto de couro amarrado a cintura; uma capa de cor mais clara, que é sobreposta ao hábito. Algumas vezes apresenta um crucifixo e um escapulário que pende do peito em cor marrom. (Figuras 02 e 03)

A imagem em análise, não apresenta o escapulário, um símbolo de proteção espiritual4, que afirma e representa a herança dos fundadores da Ordem do Carmo, o compromisso, suas regras, modo de vida e dimensão mariana do carisma, numa vida de oração, fraternidade, em serviço ao próximo conforme os dons particulares e vocação. Do latim escapulae, a peça têxtil recorrentemente aparece nas representações da S. Ifigênia. e outros santos Carmelitas. Segundo a tradição católica, Nossa Senhora do Carmo teria aparecido ao eremita São Simão Stock, em 1251, trazendo o escapulário de tecido na mão e dizendo: Hoc tibi et tuis privilegium: in hoc moriens salvabitur, cuja tradução diz que aquele que morrer usando a peça com devoção não padecerá no fogo do inferno. Posteriormente o escapulário foi popularmente adaptado para dois pedaços de pano unidos por um cordão, usado no pescoço como símbolo de proteção maternal aos devotos.

Nesta escultura de Santa Ifigênia analisada, observa-se além dos trajes carmelitas, uma palma, um livro, que aberto permite a associação ao Evangelho que teria recebido do Apóstolo São Mateus, e uma possível liderança da religiosa no convento que fundou, segundo os mitos, a pedido do próprio Jesus. Na iconografia cristã, a palma é apropriada na representação de mártires, perseguidos e mortos por anunciar o Evangelho.

A respeito das imagens da Santa Ifigênia, Alves (2005, p.70) avalia que das 27 inventariadas em Minas Gerais, 26 apresentam a miniatura de uma igreja em chamas em sua mão esquerda, e a palma de martírio ou crucifixo na esquerda, e apenas uma única leva curiosamente um livro aberto5. O crucifixo ou a palma são atributos verificados nas imagens. Alves não abordou a presença do escapulário nas esculturas.

Á propósito, a Igreja São Francisco, da Ordem Primeira, no Centro Histórico de Salvador, Bahia, abriga uma outra escultura de composição iconográfica similar, em trajes carmelitas, sem escapulário, portando apenas o livro. De forma mais comum, no Nordeste e Sudeste brasileiro se observam de forma predominante, registros das imagens da Santa com a pequena capela em chamas, pontuando portanto, como seu atributo principal.

Encontram-se em países Latino-Americanos, com destaque ao Peru e Cuba, algumas poucas esculturas e pinturas derivadas do hibridismo entre as matrizes Católica e Africana, em que a santa é representada com o hábito carmelita e desprovida de atributos.


Fábio Mendes Zarattini

Belo Horizonte,13 de maio, 2021


Referências Recomendadas:


1SANTANA, Frei José Pereira de, Os dois atlantes de Etiópia. Santo Elesbão, imperador XLVII da Abissínia, advogado dos perigos do mar & Santa Efigênia, princesa da Núbia, advogada dos incêndios dos edifícios. Ambos carmelitas, 1735-1738. In: OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção negra: santos pretos e catequese no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Quartet; FAPERJ, 2008, p.3.


2OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção negra:

santos pretos e catequese no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Quartet; FAPERJ, 2008, p.4.


3LOPES, Inês Afonso. A Memória das Imagens:

Os Santos Negros da Igreja de Santa Clara do Porto. Revista da Faculdade de Letras. Ciências e Técnicas do Património. Porto, vol. IX-XI, 2010-2012, p.215.


4PROVÍNCIA CARMELITANA DE SANTO ELIAS

O que é o Carmelo?

Disponível em: https://www.ordem-do-carmo.pt/index.php/os-carmelitas/o-carmelo. Acessada em 13/05/2021.


5ALVES, Célio Macedo, Um estudo iconográfico.

In: COELHO, 2005, p.70.

Data de recebimento: 13/05/2021

Data de aprovação: 15/06/2021