Escultura & Texto

Figura 1: -Imagem de vestir/roca de Nossa Senhora das Dores (com vestes) - Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Sabará, M.G.

Foto: Alessandra Rosado 2003.

Figura 2: Imagem de vestir/roca de Nossa Senhora das Dores (sem vestes), Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Sabará, M.G.

Foto: Maria Regina Emery Quites, 1996.

Figura 3: Detalhe do busto da Imagem de vestir/roca de Nossa Senhora das Dores. Atenção para o orifício na lateral esquerda da obra e para a placa de metal no centro do peito

Foto: Cláudio Nadalin, ateliê de fotografia do CECOR/2002

Figura 4: Desenho esquemático da secção transversal da face para colocação de olhos de vidro e radiografia X da cabeça da imagem de Nossa Senhora das Dores. A área mais escura da radiografia compreende a região escavada e as áreas esbranquiçadas de superfície convexa, presentes no globo ocular, são as lentes de vidro pintadas no verso simulando esclera, íris e pupila.

Foto: Alessandra Rosado 2002. Radiografia: CECOR, 2002



A IMAGEM DE VESTIR/ROCA DE NOSSA SENHORA DAS DORES: UMA POSSÍVEL MUDANÇA DE ICONOGRAFIA


Escultura: Nossa Senhora das Dores

- Nossa Senhora da Soledade

Autoria: Não identificada

Técnica: Imagem de vestir/roca/

escultura em madeira policromada

Dimensão aproximada: 152 cm de altura, 38 cm de largura e

33 cm de profundidade

Procedência: Ordem Terceira do Carmo – Sabará, MG

Época: Século XVIII/XIX


A imagem de vestir/roca de Nossa Senhora das Dores (Figura 1 e 2) é uma obra pertencente ao acervo da Igreja da Ordem Terceira do Carmo localizada no município de Sabará, Minas Gerais. O inventário de Bens Móveis e Integrados do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN, atual IPHAN), realizado em novembro de 1986, apresenta a imagem como obra de origem mineira, de autoria não identificada e datada do fim do século XVIII e início do XIX.

Em 2002, essa escultura foi objeto de estudo do primeiro trabalho de monografia sobre imagem de vestir, desenvolvido no Curso de Especialização em Conservação Restauração de Bens Móveis CECOR, cujos resultados demostraram a importância dessa tipologia escultórica no contexto cultural, histórico e artístico da Minas Setecentista. As documentações primárias levantadas no Arquivo da Ordem Terceira do Carmo de Sabará (AOTCS), as modificações e intervenções identificadas na imagem de Nossa Senhoras das Dores indicaram a possibilidade da iconografia original ter sido a de Nossa Senhora da Soledade. Lembramos que ambas as representações iconográficas estão relacionadas ao sofrimento de Maria frente ao sacrifício de seu filho Jesus.

O Livro de Compromisso da Ordem, do século XVIII, registra no Capítulo 41 a existência de um andor de Nossa Senhora da Soledade que participava da procissão da Sexta-feira Santa: “Senhora da Soledade ao pé da cruz e o Santo Sudário nas mãos”; este Livro não cita a imagem de Nossa Senhora das Dores. Além disso, no inventário de Alfaias da Ordem de 1836, que lista os bens móveis da Igreja, não menciona a escultura de nossa Senhora das Dores.

As fotografias do rosto da imagem, sob radiação de luz ultravioleta, revelam marcas de lágrimas invisíveis a olho nu, que foram removidas. Essa intervenção também corrobora com a hipótese da mudança de iconografia, pois a Nossa Senhora da Soledade era representada com os olhos, marejados de lágrimas, geralmente voltados para o céu ou para a cruz. (MEGALE, 1986).

É importante acrescentar que a imagem possui cinco atributos: um lenço de tecido, uma espada de prata, um diadema de sete estrelas, um halo de metal e sete espadas de prata dispostas em forma de leque aberto. As fotografias da imagem realizadas pela Ordem Terceira do Carmo de Sabará na década de 1990 e as fotos do inventário dessa imagem realizadas pelo SPHAN, mostram a imagem de vestir portando o halo, o lenço e, durante a Semana Santa, as sete espadas.

A espada é um atributo encontrado tanto nas representações de Nossa Senhora das Dores quanto nas representações de Nossa Senhora da Soledade. As sete espadas de prata, da imagem em questão, são datadas do século XIX (inventário SPHAN,1986) e há uma placa de metal, retangular com orifício rosqueado ao centro, encaixada na região central do tórax da imagem, para a fixação desse atributo.

A forma inapropriada como essa placa foi incorporada à escultura demonstra que o conjunto das sete espadas são intervenções posteriores. Já a presença de um orifício original, pintado de vermelho por dentro (Figura 3), serve para o encaixe da espada de prata que está sob a guarda da Ordem. É um atributo original e inacessível ao público, segundo informações dadas em 2001 pelo Prior da Ordem José Arcanjo Bouzas e notadas no inventário SPHAN de 1986.

A escultura possui também aspectos incomuns. Os olhos são de vidro em forma de lente e pintados no verso, cuja inserção é feita através da secção longitudinal da face e escavação interna do globo ocular deixando a esclera vazada. Nessa região, os olhos são encaixados, posicionados e fixados (Figura 4).

Ao contrário do normal, nessa imagem de vestir, as partes que ficam escondidas pelas vestes possuem detalhes de douramento, presentes no friso do decote, nas mangas da túnica e nas tiras da sandália, que fazem da policromia dessa obra um caso particular de requinte.

A única referência sobre Nossa Senhora da Dores, encontrada no AOTCS, está no Livro de Tesouraria da Ordem. Na página 7 desse livro, há a seguinte despesa descrita no dia 23 de dezembro de 1917: “Pago ao Senhor Luiz Nepomuceno Gomes a quantia de oito mil reis de um frontal de madeira para o altar de N. S. das Dores como consta no recibo n. 11.”

Esse altar, datado do início século XX, possivelmente efêmero, não pertence mais ao acervo da Ordem e não existe registro sobre o seu destino. Ademais a imagem de vestir de Nossa Senhora das Dores é provavelmente do final do século XVIII e início do XIX e não possui altar específico na igreja. Há registros fotográficos de sua exposição na Capela do Santíssimo, na Sacristia e na capela da torre do relógio. Inferimos, portanto, que a data da construção desse altar, juntamente com a fatura das sete espadas, indica o final do XIX, ou início do XX como um possível marco temporal no qual a imagem teve sua iconografia de Nossa Senhora da Soledade modificada para Nossa Senhora das Dores.

Na “relação das imagens e objetos existentes na Igreja do Carmo de 31/05/1968 consta: imagem grande de N.S. das Dôres (sic). Pasta de inventário: Ig. de N.S. do Carmo. MG/Sabará-Arquivo Central Rio – SPHAN/Pró-Memória” (Inventário de Bens Móveis e Integrados, SPHAN, 1986/1987). Este registro refere-se a imagem de Nossa Senhora das Dores e indica que essa iconografia era reconhecida pelos fiéis da igreja de Nossa Senhora do Carmo de Sabará, desde a década de 1960.

A alteração iconográfica das imagens de vestir era comum devido a facilidade que possuem, de terem suas indumentárias modificadas, incluindo atributos, perucas, membros articulados, estruturas de ripas (roca) que propiciam, inclusive, mudanças de gênero. Na maioria dos casos, essas transformações ocorriam para atender a variações culturais de gosto devocional ou a necessidade de suprir a falta de um santo de devoção.

As procissões e cerimonias da Semana Santa organizadas pelo Leigos da Ordem Terceira do Carmo de Sabará, que ocorrem no mês de março, demonstram a permanência da função religiosa da imagem de vestir/roca de Nossa Senhora das Dores ao longo do tempo. Essas cerimônias nos presenteiam com tradições barrocas que resistem ao tempo e à modernidade.

A discussão sobre a identificação iconográfica da imagem de Nossa Senhora das Dores da Igreja do Carmo de Sabará confirma a necessidade das imagens de vestir coloniais serem analisadas considerando a essência teatral que possuem e a complexa rede de relações existente entre os fiéis e suas imagens devocionais.

Alessandra Rosado

Belo Horizonte, 24 de fevereiro de 2022.


Referências Recomendadas:


Arquivo da Ordem Terceira do Carmo de Sabará – AOTCS: Livro de Compromisso, Século XVIII; Livro de Inventário de Alfaias, 1836; Livro de Receita e Despesa (tesouraria), 1917.

QUITES, Maria Regina Emery. Esculturas Devocionais: Reflexões sobre critérios de conservação-restauração. Belo Horizonte: São Jerônimo, 2019.

MEGALE, Nilza Botelho. 112 invocações da Virgem Maria no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1986.

ROSADO, Alessandra. As Dores de Nossa Senhora; procedimentos específicos para a conservação e restauração de uma escultura de Roca e elaboração de uma cartilha de conservação-preventiva. 2002. monografia (Especialização em Conservação Restauração de Bens Culturais) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002.

Data de recebimento: 24/02/2022

Data de aprovação: 25/02/2022