Escultura & Texto

Figura 01: Senhor Morto (Túmulo/ Sepulcro) no esquife sob o altar-mor – Igreja de São Francisco de Assis / Sabará

Fonte: Memorial da Arquidiocese de Belo Horizonte – 29/10/2014


Figura 02: Senhor Morto (Túmulo/ Sepulcro) - cabeça frente – Igreja de São Francisco de Assis / Sabará

Fotos: Flávia Costa Reis – 06/03/2021


Figura 03: Senhor Morto (Túmulo/ Sepulcro) - cabeça perfil – Igreja de São Francisco de Assis / Sabará .

Fotos: Flávia Costa Reis – 06/03/2021


Figura 04: Imagem do Senhor Morto (Túmulo/ Sepulcro) durante as cerimônias da Semana Santa.

Fonte: Cristo no sepulcro em plena função devocional. Folha de Sabará - 01/04/2015



SENHOR MORTO DO

MESTRE DE SABARÁ:

EXPRESSÃO DA DEVOÇÃO

Escultura: Senhor Morto (ou Senhor no Túmulo1)

Autoria/atribuição: Mestre de Sabará

Técnica: Escultura em madeira policromada;

imagem de vestir anatomizada

Dimensão aproximada: 1,83 m X 0,87 m X 0,41 m

Origem: Desconhecida

Procedência: Igreja de São Francisco de Assis,

Sabará, Minas Gerais

Época: século XVIII / XIX



Peça datável de fins do século XVIII, ou início do XIX, atribuída ao Mestre de Sabará, ou Mestre de São Francisco de Sabará, em inventário realizado pelo Iphan (1986), em estudo de Olinto Rodrigues dos Santos Filho (1987, 2002 e 2005) e de Myriam Ribeiro de Oliveira (2000 e 2005). A maioria das peças atribuídas a esse artista se encontra na Igreja de São Francisco de Assis, de Sabará, vindo daí seu nome, mas existem obras com seus estilemas em outras igrejas e capelas da mesma cidade.

O artista e sua oficina atuaram na região de Sabará no período mencionado, sendo seu verdadeiro nome ainda desconhecido, existindo, entretanto, a hipótese de que se trate de Domingos Pinto Coelho, que no ano de 1822 foi contratado para a fatura de uma imagem de São Francisco e uma de Santo Antônio, podendo, ainda, se tratar de Antônio Pereira dos Santos, contratado em 1820 para a execução de uma imagem de Nossa Senhora das Dores (SANTOS FILHO, 2002, p. 4). Em documento elaborado pelo Sphan, datado de 1937, entretanto, consta a informação de que a imagem do Senhor Morto teria vindo de Lisboa “para a Irmandade da Senhora dos Anjos”. Essa informação foi citada como proveniente de Termo de Assentamento da Arquiconfraria que, infelizmente, não pode ser localizado, não podendo, portanto, ser confirmada.

Peça de grande importância artística, histórica e devocional, no ano de 1958, Dr. Rodrigo Mello Franco de Andrade, então diretor do Dphan (atual Iphan) envia carta ao Diretor do Museu do Ouro, Dr. Antônio Joaquim de Almeida, solicitando exame detalhado da peça e fotografias "que permitam ajuizar possível autoria ou influência de Antônio Francisco Lisboa" (ARQUIVO CENTRAL DO IPHAN). Posteriormente Oliveira (2000, p. 68) aponta que as obras do Mestre de Sabará possuem certa semelhança com aquelas executadas por Aleijadinho, apresentando certo “ar de família” com suas obras.

Também entre a documentação encontrada no Arquivo do Iphan, consta a informação de que, como hoje, a imagem se encontrava em esquife sob o altar-mor: “[...] saindo, apenas, na Sexta Feira da Paixão”. Apesar de hoje não ser usada na cena do descendimento e crucificação originalmente foi executada para esse propósito, devido à existência das articulações nos ombros. Além disso, em ficha de inventário consta que tem "parafuso com tarraxa e gancho atravessando o corpo para fixar na cruz (entre as pernas)." (SPHAN, 1986).

Os tradicionais ritos da Semana Santa, na Igreja de São Francisco de Sabará, persistem atualmente com a abertura do sepulcro na quinta-feira Santa, a vigília do corpo de Cristo e a bênção dos ramos de manjericão. Dentre as tradições relacionadas à imagem, está aquela em que os orifícios das chagas de Cristo são preenchidos com pedaços de algodão perfumado, sendo substituídos na Semana Santa seguinte e doados para os enfermos. Durante a madrugada da Sexta-feira Santa, ocorre a solene procissão da Penitência e Via Sacra, partindo da Igreja de São Francisco, ponto de encontro dos fiéis que, ao som das matracas, seguem para a Capela do Senhor Bom Jesus, no Morro da Cruz.

Apesar de hoje ser conhecido na comunidade como Senhor Morto, trata-se uma representação do Crucificado com os olhos abertos, incomum a essa iconografia. Porém, como a peça é utilizada na cerimônia do sepulcro, participando, portanto, do teatro sacro a ela relacionado, podemos considerar que permite mudanças iconográficas, de acordo com o momento das solenidades. Ressaltamos, aqui, que a representação do Cristo com os olhos abertos traz maior expressividade à escultura, demonstrando o suplício sofrido com a Paixão.

A imagem representa Cristo jacente, demonstrando elaboração apurada de detalhes do rosto, cabelos e anatomia, além de notável teatralidade. Possui fisionomia expressiva, com musculatura tensionada na região da testa, denotando sofrimento, e o tratamento realista na carnação, notadamente na execução das chagas. A técnica de aplicação de couro permite o simulacro da ferida aberta com a pele levantada expondo a carne e aumentando ainda mais a dramaticidade e persuasão da imagem.

Podemos classificá-la como imagem de vestir, onde somente a região do quadril não é anatomizada, sendo completada por um perizônio em tecido. É executada em madeira, apresentando articulações à altura dos ombros revestidas por couro. Sua cabeça encontra-se levemente tombada à direita, apresentando rosto ovalado, magro, alongado, com olhar voltado para baixo, cujo desenho do contorno dos olhos mostra arco mais pronunciado (curvo) junto à pálpebra inferior, deixando o olhar “caído”. O sulco palpebral superior é realçado e acompanha a linha de contorno do globo ocular. Apresenta, ainda, carúncula lacrimal levemente estendida.

Os olhos são de vidro e por meio de radiografias, realizadas recentemente2 pode-se identificar que têm formato de calotas convexas, semelhantes à “lentes de contato”, pintadas pela parte interna. No exame radiológico também encontramos dois grandes cravos, na parte superior da cabeça, utilizados para a fixação da face à cabeça.

Suas sobrancelhas têm desenho em curvas acentuadas, com supercílio esculpido de forma ressaltada, apresentando forte franzir de cenho, sulco do filtro bem demarcado, boca arroxeada, bigodes saindo das narinas, de formato curvilíneo, composto por estrias finas em C e S. A barba de mesma composição, forma mechas retorcidas na porção frontal. Toda a ossatura representada na imagem é bem demarcada, dando-se destaque aos dedos, representados alongados, tanto nas mãos quanto nos pés.

O Cristo Morto atribuído ao Mestre de Sabará é uma escultura emblemática, de grande força estética, apuro técnico, documento histórico e, principalmente, permanece até os dias de hoje como forte expressão da devoção na comunidade religiosa de Sabará, perpetuando a tradição das cerimônias na Semana Santa em Minas Gerais.


Flávia Costa Reis

Belo Horizonte, 20 de dezembro de 2021.


Notas:


1 A peça consta em inventário realizado pelo Sphan (atual Iphan) no ano de 1986, sob título Senhor no Túmulo em ficha catalográfica de código MG/86-0002.00024. Em inventário manuscrito da Ordem Terceira de São Francisco, datado de agosto de 1900 (ARQUIVO CENTRAL DO IPHAN) a peça é chamada de “Nosso Senhor no Sepulchro”.


2 As radiografias foram realizadas no dia 03/09/2021 na Igreja de São Francisco de Assis, com aparelho de Raios-x portátil administrado por profissional.


Referências Recomendadas:


ARQUIVO DO INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTISTICO NACIONAL. Igreja de São Francisco de Assis.

Cidade: Sabará. Monumento: Prateleira 3. Série 1. Pasta 907 e 909.

Belo Horizonte: IPHAN, 1937-1991.

CLARK, Glaucia Melo. Tradição religiosa é marco na cultura sabarense. Folha de Sabará. Sabará, 01/04/2015.

Disponível em: <https://folhadesabara.com.br/noticia/553/tradicao-religiosa-e-marco-na-cultura-sabarense > Acesso em dezembro de 2021.

INVENTÁRIO do Patrimônio Cultural da Arquidiocese de

Belo Horizonte. Igreja de São Francisco de Assis -

Sabará. Belo Horizonte, 2015.

OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. A Escola Mineira de Imaginária e suas particularidades. In: COELHO, Beatriz (Org.).

Devoção e arte: imaginária religiosa em Minas Gerais. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. p. 15-26.

OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. A imagem religiosa no Brasil. In: Arte Barroca: Mostra do Redescobrimento. São Paulo: Associação Brasil 500 anos Artes Visuais e Fundação Bienal de São Paulo, 2000.

PASSOS, Zoroastro Viana. Em torno da história do Sabará.

Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1942. Volume 2.

QUITES, Maria Regina Emery. A imaginária processional da Semana Santa em Minas Gerais: Estudo realizado nas cidades de Santa Bárbara, Catas Altas, Santa Luzia e Sabará. Orientador: Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho. 1997. 133 p. Dissertação (Mestrado em Artes) - Universidade Federal de Minas Gerais –

Escola de Belas Artes, Belo Horizonte, 1997.

QUITES, Maria Regina Emery. Imagem de vestir: revisão de conceitos através de estudo comparativo entre as Ordens Terceiras Franciscanas no Brasil. 2006. 383p. Tese (Doutorado em Artes). Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, 2006. Disponível em: <http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/280544>.

SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues dos. Características específicas e escultores identificados. In.: COELHO, Beatriz. Devoção e Arte. Imaginária religiosa em Minas Gerais. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. P. 123-150.

SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues. Mestre de Sabará: Santeiro do Período Rococó Mineiro. Boletim do Ceib.

Belo Horizonte, v.6, n.21, fevereiro, 2002.

SPHAN. Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados:

Igreja de São Francisco de Assis – Sabará/MG. Brasília:

Ministério da Cultura, 1986.

Data de recebimento: 17/12/2021

Data de aprovação: 18/12/2021